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Por Germano Xavier
Para Belchior, selvagem homem de corações.
A casa da minha melhor infância era grande, de vários cômodos, duas salas imensas, uma dedicada somente às esporádicas visitas. Esta, a maior, vivia sempre arrumada e com um ar solene misto de silêncio e inacessibilidade. Lembro muito bem. Meados dos anos 90, eu já entendedor das coisas, um gosto musical amadurecendo por dentro. No centro da sala, encostado à parede branca, ao lado da porta principal da casa, um imponente Gradiente 3 em 1. Entrei na sala descalço. Piso gelado de um dia bom na minha Chapada Diamantina. Toquei o botão Power. Pequenas luzes por toda a face do aparelho beliscaram com brilho o mofo do tempo. Naquele dia, minha professora de português, de nome Dalva, havia me emprestado um disco que tinha um homem bigodudo na capa. “Você vai gostar”, disse ela ao me passar o objeto.
Nessa época eu começava a esboçar, dentro e fora do ambiente escolar, um certo gosto pela leitura e pela escrita. Gosto é só um modo de falar, pois para mim era mesmo uma grande obsessão. Claro que fiquei surpreso. Do nada, a professora me emprestara um disco pessoal. Logo após o almoço, fui ter com todo aquele mistério. Mistura de curiosidade e apreensão. Levantei a tampa, posicionei o LP na pista plástica circular, ajustei a agulha, xiiii... Som! “Se você vier me perguntar por onde andei/No tempo em que você sonhava/De olhos abertos, lhe direi:/Amigo, eu me desesperava/Sei que assim falando pensas/Que esse desespero é moda em 76/Mas ando mesmo descontente/Desesperadamente eu grito em português/Mas ando mesmo descontente/Desesperadamente eu grito em português”...
A música entrando na alma e meus olhos vidrados na capa, fitando a letra da canção, os detalhes, as cores, os melindres, os alcances dos sentidos que me formavam e que borbulhavam como um grande astro em fervura, arrastando-me dali em questão de segundos. “Belchior”, eu li. “Belchior”. “A palo seco”. “Que será que significa?” A música tocando. “A palo seco”. “Tenho vinte e cinco anos/De sonho e de sangue/E de América do Sul/Por força deste destino/Um tango argentino/Me vai bem melhor que um blues/Sei que assim falando pensas/Que esse desespero é moda em 76/E eu quero é que esse canto torto/Feito faca, corte a carne de vocês/E eu quero é que esse canto torto/Feito faca, corte a carne de vocês”...
Aquele canto torto, feito faca, cortando na pele, a pele que é deveras a parte mais profunda da gente, aquela voz desesperada a me revelar uma tonalidade de mundo bem mais forte da que eu suspeitava até então... “Belchior”, eu lia. “Belchior”, eu repetia aquele nome desordenadamente. A sala, naquele instante, havia sido preenchida por uma espécie de espuma invisível, que tomava conta dos quatro cantos a formar uma câmara acústica de tal modo perfeita que todos os sons imprestáveis do mundo haviam dado lugar à mensagem que aquela voz me trazia. Mensagem de rebeldia, de pertencimento, de chão, de poesia, de humanidade, de sensibilidade, de veracidade, de engrandecimento, de simplicidade. Dessa forma, e durante todo o disco, como um encontro às avessas, marcado pelo espanto alegre, escutei Belchior pela primeira vez em minha vida. E aquilo me soou como uma voz ancestral, meio mágica, meio mítica.
Dali em diante, Belchior faria parte de minhas andanças pelo mundo tal qual um oráculo sempre presente e prestes a aconselhar-me sobre minhas próprias forças individuais, sobre minha identidade, sobre meus passos. Já homem, crescido em meus pra-lá de 20 anos, estudante em terras estrangeiras, fiquei sabendo por telefone que aquele músico fantástico e tão amado por mim iria se apresentar no tradicional festejo de São João da cidade baiana de Iraquara, minha terra natal. Impossibilitado de ir vê-lo se apresentar, por inúmeros fatores, acabei escutando-o à distância, num compasso que transcendeu uma vontade irrefreável.
Tempos depois, vi algumas fotos do Belchior no pequeno palco montado no meio da praça Péricles Gama, empunhando seu violão selvagem e sua voz forte nordestina erguida numa jaqueta jeans de grosso pano. Vi, também, que ele até posou com moradores conhecidos do lugar que me viu nascer após o show. Certo é que jamais esqueci aquelas imagens. Era Belchior sob o céu estrelado da minha Iraquara. Era uma rota aberta no meio do meu espanto. Uma trilha salpicada de dores e amores a partir de um coração rebelde fincado na história de minha própria vida. Uma estrela que não vi passar, mas que senti, a palo seco, feito fúria engolida às vésperas de toda uma particular criação, como a iluminar o canto úmido de vida que há em minhas palavras.
* Imagem: http://www.deviantart.com/art/Belchior-251954440