quinta-feira, 27 de outubro de 2016

A palo seco (ou O melhor baile que não dancei)

*

Por Germano Xavier

Para Belchior, selvagem homem de corações.



A casa da minha melhor infância era grande, de vários cômodos, duas salas imensas, uma dedicada somente às esporádicas visitas. Esta, a maior, vivia sempre arrumada e com um ar solene misto de silêncio e inacessibilidade. Lembro muito bem. Meados dos anos 90, eu já entendedor das coisas, um gosto musical amadurecendo por dentro. No centro da sala, encostado à parede branca, ao lado da porta principal da casa, um imponente Gradiente 3 em 1. Entrei na sala descalço. Piso gelado de um dia bom na minha Chapada Diamantina. Toquei o botão Power. Pequenas luzes por toda a face do aparelho beliscaram com brilho o mofo do tempo. Naquele dia, minha professora de português, de nome Dalva, havia me emprestado um disco que tinha um homem bigodudo na capa. “Você vai gostar”, disse ela ao me passar o objeto.

Nessa época eu começava a esboçar, dentro e fora do ambiente escolar, um certo gosto pela leitura e pela escrita. Gosto é só um modo de falar, pois para mim era mesmo uma grande obsessão. Claro que fiquei surpreso. Do nada, a professora me emprestara um disco pessoal. Logo após o almoço, fui ter com todo aquele mistério. Mistura de curiosidade e apreensão. Levantei a tampa, posicionei o LP na pista plástica circular, ajustei a agulha, xiiii... Som! “Se você vier me perguntar por onde andei/No tempo em que você sonhava/De olhos abertos, lhe direi:/Amigo, eu me desesperava/Sei que assim falando pensas/Que esse desespero é moda em 76/Mas ando mesmo descontente/Desesperadamente eu grito em português/Mas ando mesmo descontente/Desesperadamente eu grito em português”...

A música entrando na alma e meus olhos vidrados na capa, fitando a letra da canção, os detalhes, as cores, os melindres, os alcances dos sentidos que me formavam e que borbulhavam como um grande astro em fervura, arrastando-me dali em questão de segundos. “Belchior”, eu li. “Belchior”. “A palo seco”. “Que será que significa?” A música tocando. “A palo seco”. “Tenho vinte e cinco anos/De sonho e de sangue/E de América do Sul/Por força deste destino/Um tango argentino/Me vai bem melhor que um blues/Sei que assim falando pensas/Que esse desespero é moda em 76/E eu quero é que esse canto torto/Feito faca, corte a carne de vocês/E eu quero é que esse canto torto/Feito faca, corte a carne de vocês”...

Aquele canto torto, feito faca, cortando na pele, a pele que é deveras a parte mais profunda da gente, aquela voz desesperada a me revelar uma tonalidade de mundo bem mais forte da que eu suspeitava até então... “Belchior”, eu lia. “Belchior”, eu repetia aquele nome desordenadamente. A sala, naquele instante, havia sido preenchida por uma espécie de espuma invisível, que tomava conta dos quatro cantos a formar uma câmara acústica de tal modo perfeita que todos os sons imprestáveis do mundo haviam dado lugar à mensagem que aquela voz me trazia. Mensagem de rebeldia, de pertencimento, de chão, de poesia, de humanidade, de sensibilidade, de veracidade, de engrandecimento, de simplicidade. Dessa forma, e durante todo o disco, como um encontro às avessas, marcado pelo espanto alegre, escutei Belchior pela primeira vez em minha vida. E aquilo me soou como uma voz ancestral, meio mágica, meio mítica.

Dali em diante, Belchior faria parte de minhas andanças pelo mundo tal qual um oráculo sempre presente e prestes a aconselhar-me sobre minhas próprias forças individuais, sobre minha identidade, sobre meus passos. Já homem, crescido em meus pra-lá de 20 anos, estudante em terras estrangeiras, fiquei sabendo por telefone que aquele músico fantástico e tão amado por mim iria se apresentar no tradicional festejo de São João da cidade baiana de Iraquara, minha terra natal. Impossibilitado de ir vê-lo se apresentar, por inúmeros fatores, acabei escutando-o à distância, num compasso que transcendeu uma vontade irrefreável. 

Tempos depois, vi algumas fotos do Belchior no pequeno palco montado no meio da praça Péricles Gama, empunhando seu violão selvagem e sua voz forte nordestina erguida numa jaqueta jeans de grosso pano. Vi, também, que ele até posou com moradores conhecidos do lugar que me viu nascer após o show. Certo é que jamais esqueci aquelas imagens. Era Belchior sob o céu estrelado da minha Iraquara. Era uma rota aberta no meio do meu espanto. Uma trilha salpicada de dores e amores a partir de um coração rebelde fincado na história de minha própria vida. Uma estrela que não vi passar, mas que senti, a palo seco, feito fúria engolida às vésperas de toda uma particular criação, como a iluminar o canto úmido de vida que há em minhas palavras.


* Imagem: http://www.deviantart.com/art/Belchior-251954440

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

Menina a caminho

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Por Germano Xavier

em diálogo com o conto Menina a caminho, de Raduan Nassar.



menina a caminho
sem caminho
menina sem carinho
menina sem arzinho
de menina a menina
a caminho do ventre seco
da vida, da madrugada alheia
a caminho da tarde sem seda
menina-descaminho
menina sem menina dentro
nem fora, menina com fome
de ser menina
a menina, ser, quer ser
caminho


* Imagem: http://www.deviantart.com/art/Aldeia-da-Roupa-Branca-156185887

Nada muito sobre filmes (Parte XXVIII)

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Por Germano Xavier



THINNER

Um advogado tem muita dificuldade para emagrecer. Certo dia, é vítima de uma maldição “fatal” após atropelar uma velha cigana. A maldição? Emagrecer até a morte! Aí começa uma corrida contra o tempo. É preciso reverter a maldição. Mas, como fazer isso? THINNER é um terror dirigido por Tom Holland em 1996. O filme é baseado num conto de Stephen King, que está presente em uma das cenas do longa. Não me surpreendeu.


A VOLTA DOS MORTOS VIVOS

De 1986, dirigido por Dan O'Bannon. Um vazamento de gás, de procedência muito esquisita e causado por dois funcionários de um armazém de produtos médicos, misteriosamente faz com que os mortos de um cemitério próximo retornem à vida. O filme é muito trash. À época, deve ter sido legal de ver. Hoje, dói de tão bizarro.


OS OITO ODIADOS

Em 2016, Quentin Tarantino lançou OITO ODIADOS. Para quem viu CÃES DE ALUGUEL, vai identificar traços típicos do diretor desde as primeiras cenas. Durante uma nevasca, um carrasco, uma prisioneira, um caçador de recompensas e um xerife se confinam em um velho armazém. No local, encontram mais quatro desconhecidos que também fogem das péssimas condições climáticas do momento. Com o passar do tempo, estas oito pessoas começam a travar uma guerra particular uns com os outros, a partir da descoberta dos segredos de cada um. O resultado é um confronto que parece não ter fim. O espectador, de camarote, assiste tudo sem saber quem está certo ou quem está errado. Mais um filmaço com a marca de Tarantino. Para quem não gosta de sangue e cenas de violência, melhor nem tentar. Recomendo a todos os mortais!


STRANGER THINGS

Série criada por Matt Duffer e Ross Duffer em 2016. Nostalgia pura, anos 80, fantasia, monstros, crianças, bicicletas, aventuras, trilha sonora belíssima, mundos paralelos, referências a The Goonies (meu filme preferido da infância), Winona Ryder... enfim, podem me chamar de infantil ou de qualquer outra coisa, mas eu gostei. Gostei muito. Recomendo a todos os mortais!


BRUNA SURFISTINHA

De Marcus Baldini (2011), o drama brasileiro sobre a mocinha de família que resolve largar tudo e virar uma garota de programa consegue ser melhor que o livro em que se baseia: O doce veneno do escorpião. Sim, eu li este livro! No fim, quando você junta tudo, não sobra nada de serventia. Se ela foi feliz com tudo isso, sorte a dela. Mas o livro e o filme são dois zeros à esquerda. Bláh!


NARCOS

A segunda temporada me causou um profundo desencanto. Da primeira temporada gostei. Aprecio as narrativas, muita das quais exageradas, que envolvem o traficante colombiano Pablo Escobar. Histórias que fazem parte do ser latino-americano diante do mundo. A história de Pablo Escobar tem muito a nos ensinar, em muitos sentidos. Agora é aguardar a próxima temporada...


A BUSCA

De 2013, filme de Luciano Moura. Um casal de médicos, que não está numa relação relativamente saudável, depara-se com o fato de o único filho ter fugido de casa quando de seu aniversário de 15 anos. O pai, prestes a se separar da mãe, resolve cair no mundo em busca do filho. Ao passo em que tenta descobrir pistas sobre o menino, vai aos poucos descobrindo mais acerca de si mesmo. Um filmezinho bom.


SEVEN - OS SETE PECADOS CAPITAIS

De David Fincher (1995). Dois detetives encarregam-se de investigar um serial killer que mata as pessoas de acordo com a ordem dos sete pecados capitais. Precisando lutar contra seus próprios egos, os dois travam um embate conjugal muito perigoso até as vias de fato. Confesso que esperava mais. Sigamos, bucaneiros!



* Imagem: http://mochilaonerd.com.br/category/cinema/

quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Poemas de Germano Xavier em Francês (Parte LXV)

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Por Germano Xavier

"tradução livre"



Sexta-feira, 20/05/2016
O velho lobo do mar


Le vieux loup de mer

"Que peut valoir la vie, si la première répétition de la vie est déjà la vie même ?"
(Milan Kundera, in l’INSOUTENABLE LEGERETÉ DE L’ÊTRE)


je me suis adossé à la mer plus d’une fois
et par crainte de l’inconnu, cette distance qui nous dévore
caché sous les fentes ondulantes des marées,
j’ai construit en moi le son des peurs réelles.

en partie conscient, j’ai su occulter
la bête indestructible des eaux dans les écumes.
en partie grâce à mes ruses, j’ai avorté des routes insensées
de vaillance vers les imprudences.

force est de constater que les histoires où je navigue
mes plus fortes campagnes en tant qu’homme
ont toujours été des traces jetées aux feux
et aux étoiles de l’âme.
tout se résume, donc,
jusqu’à présent (et ceci m’a sauvé la peau),
a une victorieuse carrière d’instants fugaces.


* Imagem: http://www.deviantart.com/art/Marujo-418521549

domingo, 9 de outubro de 2016

Poemas de Germano Xavier em Francês (Parte LXIV)

*

Por Germano Xavier

"tradução livre"



Domingo, 15/05/2016

Paraíso-quadro

À Adriano Ricardo, professeur d’étonnements

“Le paradis est, avant tout, un tableau”
(Bachelard)


Paradis-tableau

ce que j’ai vu, est vivant.

j’ai vu l’improbable
dans ce que j’ai abandonné de fait,
l’invisibilité des silhouettes, des motifs,
les mers devant la mer au delà de l’horizon.

j’ai vu mieux lorsque j’ai souffert
d’autres manières de voir, de vivre.
quand les mots banaux m’on teint
d’amour, d’angoisse, de rêve.

à l’aide de mes yeux comme unique instrument,
j’ai vu le mystique du visible. mais tout cela
n’aurait aucune valeur si la solitude s’accaparait de moi,
sœur en plongeons.

j’ai été l’heure littéraire, tel un poète
de mes rendez-vous échoués.

car j’ai vu la fantaisie, j’ai mieux vu
l’enchantement dans l’envie de l’être,
d’être là, lorsque ma musique m’a accusé
comme un soleil.

j’ai préféré le détour des routes là ou courent les enfants eternels,
ceux qui sauront encore jouer,
puissants, en priant de leurs voix immenses.

j’ai connu le sacré sur les lèvres isolées de la femme,
la but ultime de l’univers.

donc, j’ai vu
ce que j’ai simplement ignoré,
ce que je n’ai jamais imaginé,
le monde, le néant, le désir, l’organe ultime
de mes forces,

ma propre pourriture,
la mélodie inoubliable,
ce que la Grace a rendu sang et poignets

j’ai vu, enfin, ce qui a passé, ce qui est,
ce qui sera et, j’avoue, j’ai tout vu pour la première fois.


* Imagem: http://www.deviantart.com/art/Streuobstwiese-599088527