sábado, 5 de agosto de 2017

Paname: a contemplação no encontro (ou Um texto sobre Paris)



Por Germano Xavier


para Ernest Hemingway  e Rainer Maria Rilke (in memoriam)
e para Luísa Fresta, que viveu uma Paris estudantil


Por muitos anos vivi me aprofundando no ofício da contemplação. Olhar, ver, enxergar, sentir, cheirar, tocar, imergir, emergir, afundar, sobrevoar as coisas, povoar e ser parte, tudo isso parecia um grande desafio há alguns anos. E continua sendo, um mistério. Aliás, continuará porque saber contemplar é uma arte que demanda muita sabedoria. Por mais que você se sinta capaz de absorver tudo com os seus próprios sentidos, sempre algo de muito valor é deixado para trás, como pegada perdida no vão do tempo.

Assim, com essa consciência galopada na mente, foi que olhei pela janela do avião após a passagem pela capital portuguesa, onde aconteceu uma breve escala, e vi de cima, por cima, uma das poucas cidades eternas do mundo, bem ali, pousada sob meus olhos como um imenso forte rebatedor de ventos hodiernos. Paris!, Paris!, meu coração gritou num profundo silêncio de contemplação. Eu só pude me acercar da ideia de que era preciso manter o exercício a postos. Segui, de olhos bem abertos, pois.

A grande cidade do reino de Frankia, a imponente cidade cercada por torres dos lutares sangrentos de encontro aos vikings, das iluminagens revolucionais, dos solares reis absolutos tão místicos, dos palácios especulares, das livrarias míticas, dos napoleões gigantes e também dos nanicos, das grandes avenidas suntuosas, das tantas histórias sobre tudo, dos escritores e da boemia, dos grandes pensadores e das renomadas correntes do pensamento global, das grifes mais charmosas, da gastronomia incomum, dos museus intermináveis, das pessoas livres ao ar livre, do mundo inteiro num só lugar, simplesmente Paris! Eu estaria apto a tamanho exercício de contemplação? Questionei-me, por longos minutos.

Hemingway, em seu “Paris é uma festa” nos disse em tons quase proféticos, em uma das várias passagens que dialogam com o fazer literário, para escrevermos a frase verdadeira, a mais verdadeira possível, tentar ela, sempre. Confesso que pensei muito numa frase que resumisse o estado de encantamento que esta cidade me proporcionou na primeira vez que nela desembarquei – até então a única, mas pretendo voltar quantas vezes me for possível. Paris é mesmo uma consagração. Tão falada por todos, tão desejada e tão verdadeira, apesar desse universo inteiro de coisas tão falsas que nos rodeia ultimamente. Paris é uma constatação, uma alegria descomunal aos olhos, um tempo inteiro e particular.

Soou clichê dizer tudo isso? Que importa? Pegue um avião e vá para Paris o quanto antes. Verás! Sentirás tudo que senti, mesmo que não olhes para Paris da maneira como a olhei. Que pena que Paris é tão distante para nós, pobres mortais. Mas não impossível. Conhecê-la, andar por seus bairros, rasgar suas ruas, olhar seus monumentos, viver suas escuridões e suas luzes, comê-la, é necessário em vida. Paris resume toda uma ópera europeia. E infeliz daquele que resolve conhecer Paris primeiro e só depois outras cidades do Velho Mundo, como eu fiz. Paris retira a graça das outras cidades, como quem anseia e tem fome, como quem sabe que é, de longe, a mais bela.

Não é de se espantar, portanto, o grande êxodo de artistas em geral e escritores para Paris no início do século XX. As muitas “gerações perdidas” nela se encontraram. Quando se lê um livro como “Paris é uma festa”, de Hemingway, logo se percebe toda a questão e de chofre suspeitamos de tamanha magnética encantatória que esta cidade reúne em si. Hemingway passeia por uma Paris que, praticamente cem anos depois, continua igual ou mais fascinante ainda.

Inspiradora, de aspecto físico-geográfico incomum e detentora de mil recantos maravilhosos, Paris é grávida de um rio que a torna muito erótica, mas também muito sombria, sórdida, como qualquer grande metrópole. Parece-me que as pessoas que vivem em Paris podem contar histórias de amor e de beleza a qualquer instante, mas também de vidas duras em HLM (Habitation À Loyer Moderé – alojamentos em edifícios com rendas muito baixas, para pessoas e famílias carentes). Paris não esconde nada aos olhos dos visitantes. Facilmente sentimos a discriminação e a invisibilidade social dos imigrantes.

É bem sabido que as pessoas hoje são desconfiadas, medrosas, que já não se podem dar nem doar espontaneamente. Perderam a inocência. E quem é medroso pode ser mais cruel que o próprio bandido, porque o medo antecipa a violência. Tristeza maior foi ver muitos sírios atirados ao chão a pedir ajuda. Nem tudo é perfeito, não é mesmo? Para lembrar que vivemos num mundo de muita crueldade, de muita desumanidade. Enfim... Talvez isso um dia mude. O mundo hoje é um local perigoso, a pobreza invadiu os salões, a tragédia rasgou os contos de fadas. As pessoas dos subúrbios podem, por incrível que se pareça, chegar ao ponto de não enxergarem a cidade, de não usufruí-la. Paris pode para eles estar muito longe.

Aprende-se a amar um lugar instantaneamente em Paris. Gente do mundo todo, os nativos livres em seus piqueniques à margem do Sena e nas praças, suas pontes, seu casario, os metrôs surrados, as grandes galerias, os cafés, aquela aura inexplicável e também irresoluta - a sensação é a de estar num lugar em que as pessoas estão à frente do seu tempo, em que a estética beira a perfeição e a harmonia, pois se percebe de cara uma ética na estética.

Para o turista, Paris se mostra muito acolhedora. Paris começa em Piaf, Montand, Aznavour, nas baguettes e nos croissants quentes, no humor próprio de seu gentio, no cigarro aceso nas bocas das belas mulheres, em sua dinâmica por vezes engraçada, mas Paris não termina aí. Ela também começa na desconfiança. Paris tem cheiro de pão quente e um olhar desconcertante sobre quem chega. Poética, musical, extremamente cultural, de comida bonita – nem sempre gostosa -, Paris é mesmo uma festa, onde chapéu de operário panamenho dita a moda, onde uma dança de periferia argentina (o tango) vira referência e até caracóis portugueses se transformam em “escargots”. Ah, Paris, você não existe!


* Imagem: http://dicasdefrances.blogspot.com.br/2011/09/fotos-historicas-de-paris.html

2 comentários:

Nadine Granad disse...

Bonito olhar!
Contemplado! ;-)

Germano Viana Xavier disse...

Obrigado pela visita bonita, Nadine.