sábado, 14 de julho de 2018

Espetáculo Poeta Preto e a humana voz-dor em demasia




Por Germano Xavier


A noite entrava já em sua meia-idade quando aportamos na Rua da Má Fama, reduto artístico-boêmio da cidade de Caruaru, agreste meridional pernambucano. Havia fomes de todas as naturezas – o dia havia sido de correr-idas-vindas. Por isso direcionamos os passos até o bar Carvão, logo ali do outro lado. O poeta dos rebuliços literários caruaruenses Thiago Medeiros fazia o acolhimento das pessoas interessadas em pur'arte... Era noite de sentir, sabíamos. Palavras trocadas, rostos novos e velhos. Joana Dark em surgimentos. O álcool necessário, um carboidrato civil...

Pouco tempo depois, cruzamos a rua novamente. Endereço: Mercearia Ponta de Esquina. Aguardamos os preparativos. Fomos convidados a entrar. Fundos. Todos a postos. Som de terreiro, clima denso, atmosfera de propriedade artística-artesanal. Logo o texto do escritor Vanderson Santos começou a ganhar vida na pele’ncenação do visceral Rosbergg Alexsander, ator-mundo.

O local, intimista e bastante informal, anunciava em suas paredes o verbo onírico-infame da personagem-nascente: o Poeta Preto. A montagem teatral, dirigida por Pedro Henrique e com iluminação executada por Jackson Freire, burila o real esquizofrênico inconsciente-mais-que-consciente do poeta-homem senti-dor de tudo e abarca-dor de todos. O poeta, ali, representa a voz rouca de toda a plateia que, em um silêncio nada mudo, assiste à peça como quem é sufocada por sacos plásticos mortais fabricados por uma sociedade insana e insegura - tanto de si quanto de seu futuro.

De chofre, luzes e sombras nos apresentam o espanto, o insólito, o desconhecido, a sutileza do grito interior, a morte em vida. Em um só nos tornamos, repentinamente. Pressentimos união, junção de forças. Se há esperança? Não sabemos. Cada um que prestigia a agonia do Poeta Preto se familiariza com suas próprias máculas, remorsos, repressões. Ou não ousa se insinuar. Aliás, a revolta é solitária, apesar de comunitária. Nada é forçado, ninguém é impelido. O coração dos homens é frágil aquém e além dos pulsos. Cada um sai do Poeta Preto armado com o sofrimento necessário, com a força da mudança nas mãos.

Nada ali é medo. Tudo é desejo e arte.

O Poeta Preto, esse ser negro-branco tão branco-negro, de tantas faces, vai aos poucos nos consumindo, tal qual um predador impiedoso, boca-voraz, monstro-deus insaciável. Cumpre a trupe Veja Bem Meu Bem o expressar poético da dúvida, o temporal da matéria-corpo encarnado no ator em cena. O experimento é de grossa envergadura e vai se formando em inacabamentos, como tem de ser. O palco acolhe um poeta-nós e seus rudimentos, suas sinceridades. O público vitaliza-se via racionalização-debate dos preconceitos e pelo peso de ser. Ele divaga entre o poético e o terrível, reclamando sua verdade doída e onírico-energética ao mesmo tempo.

Há quem diga que o Poeta Preto é a maquiagem do difuso, o sorriso dos descompassos, a ironia dos desafetos, a fúria do impossível. Há quem possa imaginar que seja até a liberdade totalmente liberta. O homem livre-homem. E há quem nada suporte após. O ser-destempero, coração-pulso, arrebol, olhar de fragilidades incontestes. O espetáculo, de tão natural e promissor, enverga um verbo novo na garganta imunda do mundo: poetapretar. Poetapretar é, pois, o ato ou o efeito de ser quem se é. Um grande dilema contemporâneo, convenhamos.



A peça estará em cartaz no FIG 2018 (Garanhuns-PE).

Um salve ao Letras em Barro (na pessoa de Thiago Medeiros), e ao Teatro Experimental de Arte (TEA).


* Imagem: https://www.feteag.com.br/espetaculos

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