segunda-feira, 20 de abril de 2020

Entre Mares e Marés: Conversas Epistolares (Parte XVII)




Querido amigo Viana,

Eu vou começar por lembrar-te aquele chiste de dois ingleses que jogavam uma partida de xadrez tranquilamente quando um deles exclama, sem tirar os olhos do tabuleiro: “Acaba de passar um Bugatti Chiron”. Ao cabo de dez minutos, o seu adversário, sem tirar os olhos do tabuleiro, responde: “Não era só um Bugatti Chiron… era um Centodieci”. Finalmente, passados mais alguns minutos, o primeiro atalha assim esta promissora conversa, levantando-se e procurando o seu sobretudo: “Lamento, meu caro, mas não vim aqui para discutir. Receio que tenhamos que interromper esta partida”. (Já contei esta história milhentas vezes, e tu não terás escapado a ela, certamente…).

Esta é a maneira como em certa época se caricaturava a fleuma atribuída aos britânicos. Não sei se tem fundamento ou não, porque nunca tive oportunidade de comprovar a visão irónica acerca de um povo que na verdade não conheço por dentro. Em todo o caso estereótipos como este e outros valem o que valem mas não devemos deixar de sorrir apesar dos tempos sombrios que nos cercam. A visão do “homem encurralado” torna-se cada vez mais corpórea. Nós dois adiámos esta conversa por demasiado tempo e por isso me lembrei destes senhores britânicos que aqui tão bem nos representam (não me refiro, obviamente, ao diferendo deles por um motivo que nos pode parecer tão fútil e risível, mas à tranquilidade vagarosa com que interagem, na camaradagem, no esgrimir de argumentos ou nas quase-zangas subtis).





A última prosa (nossa) por esta via ocorreu no “longínquo” ano de 2018. E digo longínquo propositadamente para referir tudo o que ocorreu nas nossas vidas desde então, como indivíduos e peças desta engrenagem maravilhosa que é a humanidade. Desde logo tivemos oportunidade de conhecer-nos pessoalmente no momento pré-catástrofe sanitária. Foi uma bênção para todos, incluindo para as nossas famílias, pois nos dias que correm, tal não seria possível. É um presente raro da vida podermos estar diante das pessoas que tanto admiramos e com quem trocámos já tantas experiências e conhecimento ao longo de vários anos. Acredito que serão muitos mais daqui por diante, os anos, as décadas e as partilhas, como fazedores de literatura e como leitores compulsivos. Em todo o caso na vida tudo acaba por acontecer no momento certo.

Hoje vivemos tempos excecionais de angústia, de prudência, de adrenalina, em que mais do que nunca é importante fazer uma correta triagem da informação relevante para não perdermos tempo com futilidades e desinformação, maldosa ou simplesmente inconsciente. Não me vou alongar muito sobre isso porque é tema de conversa diária inclusive na imprensa e entre pessoas que se estimam. Apesar disso abro um parêntesis para desabafar contigo sobre o quanto me preocupa que a insanidade de alguns, incluindo líderes de grandes nações, possa pôr em perigo milhões de vidas, mais do que já estão. Estes são momentos que nunca vivemos (a tua geração ou mesmo a minha), mas talvez voltemos a conhecer ainda algumas vezes durante a nossa passagem pelo planeta, por isso é bom que aprendamos a agir em situações de risco, atualizando o conhecimento dia a dia em função dos novos dados.




Porém, há coisas que são sempre válidas, que não devem mudar nunca: a solidariedade entre todos e em relação aos mais vulneráveis, a consciência de que todos nós (sim, todos nós, e não apenas os supostos “grupo de risco”, expressão que é infelizmente usada muitas vezes com uma certa condescendência e sobranceria), somos potenciais vítimas e portadores de uma doença que pode causar outras tantas vítimas de gravidade variável.

Quando ouvia a minha avó materna, ou a minha Mãe, falarem da “pneumónica” de 1918, aquilo para mim era sobretudo uma referência histórica, embora me tocasse tremendamente pela dimensão trágica da doença, arrasadora, impiedosa, que vitimou muitas pessoas da geração da minha avó, nascida em 1885. Hoje a ameaça da “ceifeira” é real, apesar de termos meios tecnológicos e sistemas de saúde razoavelmente sólidos (em alguns países) para nos precavermos um pouco mais do que em zonas do planeta onde não se pode contar com essas estruturas, já frágeis e insuficientes em tempo normal. Quando passar esta imensa crise talvez nos lembremos que na hora da verdade contamos sobretudo com o Serviço Nacional de Saúde e que por isso talvez devêssemos investir mais, muito mais, nesta estrutura que é o nosso suporte, nos seus profissionais abnegados, na formação e equipamento.

O futuro dirá o que aprendemos com tudo isto. Para já digo-te que a minha buganvília cor-de-rosa, indiferente a tudo e a todos e concentrada apenas na sua própria beleza — e na primavera, que teima em revelar-se —, está a florir de dia para dia, junto com uma violeta africana e um aspargo que não para de crescer. Elas são assim mesmo, leves e quase levianas, livres e exuberantes em qualquer circunstância, por mais dramática que se nos afigure. Não sei porquê eu pensei também — e pelas mesmas razões— na Nina e na Lola, sempre belas e sorridentes, porque no mundo delas está sempre tudo bem, desde que existam livros e carinho. Elas são encantadoras e soltas, imunes a tristezas e preocupações, não é?



Entretanto, neste lapso de tempo em que nos calámos um perante o outro saiu para o público um novo “MARÇO Entre Meridianos” e uma “Fabulosa Galinha de Angola” que começou timidamente o seu périplo, este ano, em Lisboa. Projetos que começaram um trajeto agora interrompido porque, como se diz e bem, valores mais altos se levantam. A literatura pode esperar, a vida não. Além disso os livros podem circular de forma alternativa, e para isso cá estamos para tentar conciliar vontades, interesses e prioridades.

Por ora digo-te que estou a frequentar uma oficina de escrita criativa online (gosto da palavra oficina!); surgiu a oportunidade e quis experimentar. Nunca tinha pensado nisso antes seriamente, mas acontece que a pessoa que está a ministrar o curso, pro bono, é uma romancista luso-moçambicana com um vasto conhecimento e experiência como historiadora e ficcionista. Daí o meu interesse, até porque pretendo melhorar as minhas ferramentas de comunicação escrita, sobretudo de textos longos. Não tenho ainda estaleca para escrever uma novela e muito menos um romance, escrever um conto de média dimensão para mim já é um “grande” feito; mas confesso que se um dia conseguir fazê-lo, de maneira a prender um leitor da primeira à última linha, com coerência, rigor, humor e interesse (tal como acontece com muitos e bons autores que leio desde a infância), ficarei muito satisfeita.

Tu és uma daquelas pessoas em que me miro e com quem mais aprendo, e agora falo especificamente das tuas vivências como ficcionista e ensaísta, como poeta também. Porque consegues estabelecer uma fronteira confortável entre prosa e poesia, deixando que uma dialogue com a outra e se entreajudem, sem no entanto perder o fio narrativo e conseguindo sempre adaptar a linguagem e o estilo ao efeito pretendido. Mas nota-se que nada é forçado, e isso é uma coisa verdadeiramente invejável, fruto de um dom natural, certamente, mas também de muito treino, imagino, como leitor e como escritor. Tens também uma grande facilidade de comunicar oralmente com eficácia (aí sobressai o professor!) e fluidez máxima: isso para mim é ainda mais extraordinário porque não me sai nunca espontaneamente, a não ser entre amigos, quando me sinto segura e confortável.



Há também outra forma de expressão que me atrai desde a infância, creio que já comentámos, que é o desenho; embora faça longas pausas injustificáveis nos meus rabiscos e exercícios. Já a nossa Cris vai evoluindo dia após dia, com treino intenso, inspiração e dedicação, procurando superar-se ensaiando novas técnicas e métodos. Por isso vou recorrendo a ela quando preciso de algo mais específico, um certo tipo de traço rápido e realista, com uma interpretação impregnada de humor, colorida e jovial. Assim é a Cris e também os seus desenhos.

Os dias são pequenos para encaixar neles tudo o que queremos: partilha familiar, trabalho criativo e rotineiro, atividade física, higiene e desinfeção redobrada dos locais e dos objetos…mas nunca pode faltar o tempo para nós mesmos, para fazermos alguma coisa prazerosa, e quem gosta do que faz pode multiplicar esses momentos em cada atividade, em cada pequeno gesto, por mais simples que pareça.

Não vou cansar-te mais, Viana, com as trivialidades às quais já te habituei e que escutas há anos mercê de uma inesgotável paciência e generosidade.

Aguardo notícias de ti, do Brasil, esse país-mundo tão próximo dos nossos afetos e preocupações.

Um abraço fraterno e gigante,
Clara


Lisboa, 28 de março de 2020



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Clara,

paramos a prosa, sim, para olhar melhor para além da poesia do mundo, das pessoas, das nossas atitudes, para além de nossos engraçamentos ou desaforos individuais. É sabido, nunca paramos por completo, apesar de nossos encurralamentos diários, sazonais, temporais, quase que ritualísticos. Nesse ínterim, absorvemos todas as dores do universo, os amores, cumprimos as ordens dos dias e tentamos, quando necessário, burlar os movimentos naturais do ser e da vida. Paramos, sim, mas nos movemos.

Eu mesmo me fui em navegâncias, Clara, a correr mares inóspitos, mesmo trilhando, por vezes, o trivial das rotas dos destinos insondáveis. Eis o segredo. Ir. Ir apenas. Sobreviver para ir apenas. Ir apenas para viver. Se não consegui por completo chegar aos locais por ora pretendidos, eis aí um outro detalhe, ou melhor, um mero detalhe. Um mero detalhe, sim. O importante é que andei tentando, mesmo deixando pelo caminho atalhos antes prazerosos por conta das paisagens bonitas. Necessário seguir a trilha que escolhemos. Escolhemos, sempre. 

Outra coisa não, mas explorar todas as nossas tolerâncias e capacidades de resiliência foi o que fizemos durante todo este tempo em que nos dispomos a estancar nossos diálogos, mesmo que inconscientemente. Muita coisa aconteceu, muita coisa nos aconteceram. Você sabe. O Brasil é um país que, vira e mexe, surpreende-nos, tanto positivamente quando negativamente. Nos últimos tempos, negativamente em 90 % das vezes. Sim, claro que estou citando aí o campo político nacional. É de se suspeitar que, com um sujeito desse naipe “comandando” esta nau desvairada o assunto não poderia ser outro. Mas bem que poderia, sim. Pode, sim. Esquivar-se é também um golpe artístico, por vezes.

Sem zanga nem nenhum sentimento de desperdício de tempo ou qualquer coisa de culpa no ar, cá estamos, ressuscitados de nós mesmos, de nossas próprias mortes diárias, mensais, anuais. Bom notar o quanto nos reerguemos, o quanto nos refazemos mesmo diante de tantas quedas ou travessias abortadas no meio dos passos. Precisamos passar. Somos passantes.

E eis que veio esta pandemia.



Sim, Clara, encontrar você às margens do Tejo, aos som dos sóis e dos frios imemoriais de um janeiro de ventos, foi tão bom quanto me sentir vivo até o prezado instante de encontrá-la. Eu que, timidamente, insisto na ideia de que fora um reencontro. Digo a você e exponho aqui a todos os nossos leitores: você é igualzinha à persona que imaginei em mente. Mesma força e mesma beleza. Também creio que nossos laços de amizade e parceria se incluam em campos temporais bem mais distantes que os visíveis a olhos nus. Então, isto só está a começar. Fomos sortudos. Ainda deu tempo de podermos nos abraçar. Se demorasse mais, nem isso.

Temo, Clara. É incrível saber que a história está sempre a se repetir diante do Tempo e quase não percebemos. Mais, e pior, e daí vem meu temor maior, incrível é saber o quanto nós, seres humanos, recusamo-nos a aprender com os erros cometidos no passado. Uma espécie de eterno retorno Não foram poucas as chances que tivemos para deixar de errar, Clara, e também de nos precaver diante de situações desta natureza. Você bem sabe. As consequências serão devastadoras, principalmente para os mais desfavorecidos Por que diabos insistimos tanto nos erros, Clara? Para onde vamos com tamanha ignorância ou desprestígio ao saber real? O temor é crescente e se expande. O que é mesmo o futuro?



O vir-a-ser, o depois-de, como será? Como seremos após isto tudo cessar? Haverá mesmo alguma mudança na maneira de pensarmos a engrenagem vital? Alguma incrível e transformadora novidade que valha a pena a espera? Ou tudo continuará freneticamente a remoer os nossos últimos alicerces e ossos? Temo, temo, temo. Não sei como isso irá se dar. O que serei? O que serás? Eu preciso mesmo pensar sobre isso? E se for perda de tempo? O que fazer? O que é o melhor a se fazer? O que é o pior a se fazer? Estamos sucumbindo?

O Brasil não está preparado, Clara. Verdade seja dita. O Brasil nunca esteve preparado para lutar contra uma dor geral invisível tão aterrorizante e alastrante. Acho até que nunca estaremos preparados para algo do tipo, nunca mesmo. Mente quem diz o contrário. Mente o presidente, este idiota partícipe da necropolítica que assola o mundo hoje. Bolsonaro é o lixo do lixo, a coisa mais degradante. Aqui, neste país de meu deus, não sabemos qual mal é maior e mais perigoso, se é o vírus ou se é o presidente. Enfim, nós que lutemos para derrotar estes males. É o que nos resta.

Mudando de assunto. Nina e Lola são, sim, imunes a tudo isto. São nossas criaturinhas que nos acordam em pulos sobre a cama ou em ranhuras na lateral do lençol. Ideia de minha esposa tê-las em nossa companhia. Onde morava antes, eu tinha o Sam, um vira-lata branco que muito alegrou minha família. Acabei me despedindo dele muito cedo quando por outras paragens citadinas tive de aportar. Nina e Lola meio que resumem meu amor para com o meu velho Sam. Não esqueço dele. E elas me fazem recordá-lo. 

Nina é calma, inteligentíssima e é de esquerda também, como Lola (risos). Lola é mais nervosa, gosta muito de passear e de correr. Lola é mais dependente, sempre quer carinho. Nina é mais autossuficiente. Mas não fica muito atrás de Lola no quesito apego. As duas se completam, as duas se complementam. Por termos horários de trabalho bastante diferentes, a companhia delas supriu um pouco de nossas ausências mútuas. São excelentes companheirinhas, fofinhas e não dão nenhum trabalho. Gostam de brincar e até conversam com seus sinais já compreensíveis por nós.

Seus livros são essenciais, Clara. Daqui os observo, guardo, compartilho impressões e leituras. E muito obrigado por ter tido a oportunidade de lê-los. Suas inquietações referentes à aprendizagem do fazer literário são oportunas e válidas. Aqui também estou sempre de olho em algumas oportunidades de aprimoramento, apesar do tempo que às vezes nos parece escasso e faltante. Escrever é o que somos. Precisamos continuar. Por isso, cuide-se. Cuide de tudo que importa a você e aos seus. Precisamos continuar, apesar do mundo e das pessoas. Apesar das histórias que a História insiste em nos contar. Precisamos. Por isso, vamos. 

Um beijo. 


Caruaru, 14 de abril de 2020



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Clara e Viana são dois amigos de longa data que se redescobrem e desenham o mundo à sua volta pelas palavras que encontram, que constroem e que usam para pintá-lo. (De longa data em face da finitude da vida, recentes diante da imensidão da eternidade). Mas, que importa isso? Eles propõem-se descobrir dois universos complementares, sem artifícios nem maquilhagem, para além das máscaras habituais, as que protegem o ser humano da solidão e das agressões.

Clara e Viana são dois heterónimos, duas personagens que ganham vida através do tempo, do ritmo da palavra e do sabor dos respectivos sotaques.

Luísa Fresta e Germano Xavier dão vida a este projecto.

As imagens são da queridíssima e talentosa Cristina Seixas.

quinta-feira, 16 de abril de 2020

Pandemia



Por Germano Xavier




todos pareciam dormir
todos pareciam alguma coisa
de antes

foram surgindo entre os becos
nas vielas
pelas avenidas

descerram os morros
subiram os elevados

todos aquietados
pasmos ainda

os passos eram surdos

os quintais foram se desafogando
os braços se despregando
do resto do corpo

tocaram as suas faces
enxugaram as lágrimas

olhei para o capacho
ao fechar a porta por fora
uma recordação

ENTRADA


* Imagem: google

quarta-feira, 8 de abril de 2020

As máquinas de costurar famílias



Por Germano Xavier


Um fato me chamou a atenção hoje quando me coloquei a pensar sobre coisas alheias e, por conseguinte, resolvi sentar e escrever este texto: as costureiras e as máquinas de costura sempre estiveram muito presentes em minha vida ou na vida das mulheres de minha família. Sim, das mulheres. Homens não, de jeito nenhum, é preciso que se diga. Praticamente todos os parentes (mulheres) mais próximos tinham alguma relação com o ato de costurar ou possuíam máquinas de costura em seus aposentos, para fins particulares de produção em pequenas quantidades ou simplesmente para efetuar reparos e até para dar vazão à imaginação na confecção de vestimentas próprias. 

Lá em casa mesmo, minha mãe, muito vaidosa, buscava sempre a ajuda de costureiras na cidade para apurar as linhas de peças de roupas as mais diversas, muitas delas criadas a partir de sua própria inventividade. Era comum a rotina quase semanal de ir visitar uma costureira ali nos idos dos anos 80 e 90 do século passado, exato tempo em que se passam estas minhas deambulantes recordações. Nas proximidades da casa onde morei até os 14 anos em Iraquara, na Bahia, havia duas costureiras que executavam com maestria as quase geniais e ousadas ideias maternas acerca do vestuário feminino. Existiam outras costureiras na pacata cidade, mas Gilda e Vera eram as preferidas da minha mãe. Lembro com carinho de toda aquela movimentação. 

As máquinas de costura, historicamente, acabaram por representar dois lados de uma paradoxal moeda social. Ora funcionaram como importante passo para a autonomia econômica das mulheres, ora representaram mais um empecilho para as suas respectivas emancipação e socialização. A máquina de costura é uma inovação oriunda da Revolução Industrial e as fábricas têxteis inicialmente simbolizaram, através do uso deste objeto, a possibilidade de criação de vínculos empregatícios para várias mulheres. Todavia, logo o esmagador sistema fabrico-patriarcal encobriria tal feito, substituindo um possível avanço por segregações ímpares, monitoramentos excludentes dentro e fora das próprias fabriquetas, desigualdades funcionais e salariais, bem como assédios sexuais por demais inadmissíveis. 

Enfim, as máquinas de costura não trouxeram consigo a libertação das mulheres, tão quista e possivelmente prometida. A vigilância era tão grande, que até setores ligados à medicina criaram teorias no mínimo nefastas para dificultar o acesso à este "utensílio de libertação" feminina, utilizando-se de discursos do tipo "a trepidação das máquinas de costura pode levar a mulher à infertilidade" ou coisas semelhantes. Sem dúvida, esta é uma matéria que merecia uma maior investigação por parte de nós, estudiosos e curiosos de plantão. No Brasil, costurar sempre foi tipicamente feminino. Há relatos de escravas costureiras já desde a época colonial, bem como de senhoras mais bem afortunadas. 

Minha avó Isaura possui uma máquina daquelas Singer dobráveis até hoje. Uma verdadeira relíquia. Recentemente, minha mãe comprou uma moderna e portátil para ela. Na família do meu pai, Tia Estelita se destacava. Tinha um quartinho com máquina e muitos rolos de tecido. "Costurava para fora", diziam. Mas costurava "para dentro" também. Lembro bastante de suas roupas de "senhora já viúva"(é possível dizer algo assim?). Algumas mulheres àquela época possuíam um jeito particular de se vestir. Tia Estelita vestia suas próprias ideias. Era mulher forte, destemida e resoluta. O quarto de costurar dela ficava bem no cômodo que dava para a rua. Aquela posição facilitava a entrada e saída de clientes. A máquina de costurar, para a minha tia, significava também proximidade e afeto. Sabia que ela também costurava roupas e cobertores para doar aos mais necessitados. Era bonito demais para a alma ver tudo aquilo. 

Hoje, por acaso do andar natural da vida, vim parar em uma região onde a máquina de costura tem um papel fundamental para o cotidiano de milhares de pessoas, em especial para a vida das mulheres. Caruaru, Toritama e Santa Cruz do Capibaribe, principalmente, são cidades pernambucanas que fazem girar altíssimos valores em dinheiro por conta da fabricação e da comercialização de produtos têxteis e de seus derivados. A integração homem-máquina de costura nessas redondezas é percebida facilmente nas ruas sob diversos prismas analíticos, assim como é bastante perceptível a dureza que é ter de lidar com as agruras deste mercado de trabalho, que entre as agulhas da informalidade e as linhas da necessidade, costura uma esperança humana num pano rústico de autocomiseração, labor e resiliência.


* Imagem: https://c1.staticflickr.com/3/2464/3855514241_2aa317a9c3_b.jpg

terça-feira, 7 de abril de 2020

Foi de lá que chegou



Por Germano Xavier


a manhã veio áspera. boca meio fétida. a alma parece ter sofrido durante o sono. quem sonha? quem sonha ainda? deveria ocorrer em breve. quão mínimo é máxima espera? sem paciência. arde tudo. um rubor. aqui dentro não tem brisa nem a última esperança existe. a manhã veio sem disciplina. pegou a todos. ave maria. cheia de graça. rogai por nós. alguma coisa da janela vejo e faz tudo balançar. alguma coisa para além. para ali. alguma coisa lá. baita rabisco no céu esquisito. louca besta solta. há um caminho entre meus olhos. um caminho que vejo. longo. áspero que nem a manhã. um caminho amanhecido e com cara de destino. ou desatino. meu caminho, lembrei. e o seu? qual é o seu caminho? ei, você que caminha, para onde estamos indo? o que é este caminho aí em frente? a linha nunca termina. parece jamais acabar. dentro da linha pode haver buracos. nos buracos podemos cair. o caminho é perigoso. é recheado de buracos o caminho dentro da linha do caminho. a linha pode bater numa pedra. a linha pode bater no caminho. a linha pode dar num buraco. dentro do buraco pode haver uma palavra. uma palavra ou uma esquina. aí eu nem entendo. mínima é a minha pedra. minha pedra sem linha. minha linha sem caminho. só buraco. a vida surge. não tenho caminho. tenho a palavra. e não é aqui que esta manhã termina. 


* Imagem: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEilib43IfY5k-3BRViOtJvDQJVCriIf4B9MlsCyKzdOUFRoFtfh4YwaZxmUw9lrDCuB3S5_efIYjnvwOfvp10Y8VtFvT3gom-IE0fo3WJx1S_xs-mulAcJdrp0mqoWADZkyhiKYxBGNoJQ/s1600/vento.jpg

segunda-feira, 6 de abril de 2020

Crime de lesa-vida



Por Germano Xavier



cúmplices: Arte e Vida.

"juntos
nos distrairemos
vendo o Tempo (este bobalhão)

passar"


* Imagem: https://quotecatalog.imgix.net/assets/title-N94qXDlAU83RLsizYgWBDefE/original.jpg?w=680&h=415&fit=crop&crop=top

quinta-feira, 2 de abril de 2020

Avalovara (e suas mulheres)




Por Germano Xavier


(Notas sobre Abel, a mulher sem nome, Roos e Cecília)


Osman Lins é um exímio construtor de máscaras, pois mascarados são seus personagens no enredo mítico de sua obra-prima: o romance AVALOVARA. Mascarados não por não conterem em si “nenhum caráter”, como o ilustre Macunaíma, de Mário de Andrade, mas sim por serem elas (as personagens) entidades existentes primordialmente numa esfera de imaginação onírica que, por diversos momentos, sufoca a presença de uma anunciada realidade. Osman Lins (1924-1978), pernambucano de Vitória de Santo Antão, literalmente põe as personagens sobre a palma da mão do leitor, como que almejando um fenômeno receptivo baseado em referencialidades mais espontâneas ou automáticas. Assim sendo, não basta a simples leitura, a mera decodificação dos códigos linguísticos, o comum debruçar-se sobre a obra para a boa compreensão da trama.

A atitude decisiva do leitor perante o texto é agora o que importa mais, pois o leitor tem diante das vistas um multilivro, um polilivro, cuja fabricação das compreensões vai se basear nos caminhos tomados por ele, sujeito que lê. Com o leitor podendo compor histórias variadas e variáveis a partir de uma história central, as personagens em Avalovara também passam a agregar dentro de suas existencialidades o caráter de mutabilidade, moldando-se, sempre que requeridas, a partir das rotas desejadas pelo leitor. Essa foi uma fórmula encontrada por Osman Lins para lutar contra o fantasma do fim/esgotamento do gênero romance – ideia muito em voga nos anos 70, década em que Avalorava foi publicado, mais especificadamente em 1973.

Para ele, com a disponibilidade escancarada do poder de coagir e coproduzir a narrativa, tanto o leitor quanto o romance se fortificariam enquanto sujeito e/ou gênero textual, respectivamente, e por conseguinte apagariam qualquer vestígio factual acerca da não-sobrevivência do romance dentro do vasto universo da literatura. O início dessa revolução estrutural na obra do escritor pernambucano se dá com a publicação de NOVE, NOVENA, livro de narrativas curtas datado do ano de 1966. Inclusive, e para fortificar a preocupação diante do referido tema, a questão da estrutura romanesca, principalmente os elementos espaço-temporais, foi objeto de pesquisa durante toda a vida acadêmico-intelectual do autor.

Segundo a professora doutora Ermelinda Ferreira, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE): “Sua insistência no estudo da estrutura, sobretudo a do espaço narrativo – tema de sua tese de doutorado – e sua exigência por um leitor participativo, presente em textos construídos como jogos verbais e visuais, vistas à luz das questões postas pelo avanço dos mais recentes meios de comunicação, adquirem aquela clareza a que ele tanto aspirava quando falava de sua obra”.

Comparável a O JOGO DA AMARELINHA (Rayuela), obra labiríntica máxima do belga-argentino Júlio Cortázar, AVALOVARA é, por assim dizer, um romance desprovido de sequenciamento lógico, onde o espaço (o quadrado) bifurca-se no contato com o tempo (a espiral) num movimento de contágio temático que beira o assombroso. O espaço é a própria edificação das personagens, que habitam inatamente o território da racionalidade, figurada pelo quadrado, e que sem cerimônia transitam sobre o plano simbólico-metafórico-onírico de um local que é apenas simulação, mas perfeitamente existível, a espiral. “Avalovara é uma obra virtual, se entendemos virtual como o oposto ao atual, e não ao real. Real sem ser atual e ideal sem ser abstrata, esta obra ditava, há três décadas, os preceitos de uma nova forma para a escrita e para a leitura, elaborando-se não como um romance de ficção científica, mas como uma ficção científica do próprio romance, como uma metáfora cibernética de um futuro possível para a literatura, projeção imaginária e idealizada de um suporte que viesse somar uma riqueza de possibilidades à palavra, potencializando-a e aos seus efeitos no mundo”, reforça a professora Ermelinda.

Sobreposta ao quadrado da razão, a espiral mágico-mitológica do enredo elabora a passos vagarosos e milimetricamente pensados os fragmentos de uma moldura única. Cada fragmento constitui uma personagem que, por sua vez, representa a necessária estrutura para que o outro passe a existir, mesmo que este outro aparentemente apareça destituído de realismo. Realismo, no caso de AVALOVARA, não é nem de longe um dos objetivos que norteiam o leitmotiv da obra. É como se o irreal, visto aqui como uma opção de recurso literário, funcionasse a vapores plenos em matéria de complexidade formal e conteudista.

Toda personagem surge de uma aresta, de uma esquina onde uma lacuna possibilita uma entrada, mesmo sabendo que só há uma entrada para o mundo da razão, ou seja, para o quadrado, que é pela ponta da espiral, ou seja, a voz do narrador: caminho sem-razão. Sendo assim, todo personagem é um só, o espaço delimitado e percorrido pela espiral: o quadrado. A espiral representa o infinito, o quadrado simboliza o além-infinito. A espiral está dentro do quadrado que, apesar de ser o ad infinitum, é um território demarcado, portanto finito em sua infinitude.

As personagens escorregam pelo corpo imaginário da espiral e elaboram um trançado de ações que se movimentam para um centro aglutinador de energia, para uma espécie de olho de furacão. De acordo com Ermelinda Ferreira, “Osman Lins acopla seus motivos clássicos, grande parte deles de influência medieval, traduzindo talvez um paradoxo que se percebe em toda a sua obra, tantas vezes verbalizado em seus textos de intervenção e de crítica: um misto de amor e de horror à tecnologia, à máquina, ao ruído contemporâneo, que o fazem desviar a atenção constantemente para a arte antiga. Este sentimento ambíguo de desejo e repúdio com relação à modernidade; este apreço confesso à história e ao ritual, ao lado da criação de procedimentos narrativos que aniquilam a linearidade e a sequencialidade históricas, encontram tradução em Avalovara, na busca de ambientação na arte medieval (pintura, música e literatura), representada pelos volteios da espiral, posta “sobre” ou “dentro” de um arcabouço racional (o quadrado)”.

Abel, personae-narrador do livro, divide seu protagonismo com o amor de sua vida: uma personagem mulher sem nome, representada por um símbolo gráfico circular pontuado ao centro e com duas espécies de aspas na parte superior. A mulher que não possui nome é criação de Abel, portanto também protagoniza o romance que Abel está escrevendo. Isso reforça a ideia de que AVALOVARA é, segundo o próprio Osman Lins, uma “alegoria da arte do romance”. Há um romance dentro de um romance, uma história dentro de outra, uma ficção no interior de uma ficção. A mulher sem nome na verdade não existe, ou existe para além dos muros da realidade que não é real, ou seja, a realidade do romance escrito por Abel. Para Marisa Balthasar Soares, professora doutora da USP, AVALOVARA “ficcionaliza sua própria elaboração”, onde “é proposto um enredo em jogo palindrômico, que nada tem de gratuito, mas, pelo contrário, promove a possibilidade de ruptura com a linearidade do tempo narrativo. A mesma ruptura perseguida pelo personagem central Abel, um escritor marcado pela tensão entre a história imediata e um projeto literário de cunho universalizante, fundado no tempo mítico e para quem o passado não se cristaliza, mas se faz, como na utopia benjaminiana, a condição de transformação do presente”.

Abel a descreve como sendo ela filha de um ciborgue, simulacro de duas existências, mulher feita de metades e junções. Ao passo que a ama, Abel também a odeia, por saber que a única verdade da personagem amada é que ela não pertence ao mesmo plano existencial que o seu. “É na experiência de amor e morte de Abel junto a três mulheres – que ambiguamente são personagens do romance, no mesmo grau de ficção em que está Abel e, simultaneamente, sugerem-se como personagens de segundo grau, isso é, criações dele – que surge a experiência do tempo único”, diz Marisa. A mulher sem nome é fruto da imaginação de Abel. Abel, por sua vez, é fruto da imaginação de Osman Lins e a entidade que melhor representa o quadrado.

“Em um mesmo corpo reúnem-se o mecânico e o orgânico, a cultura e a natureza, o simulacro e o original, a ficção científica e a realidade social, exatamente o que encontramos no romance de Osman Lins”, confirma Ermelinda. O corpo da personagem é um disco rígido, onde as memórias de Abel são armazenadas sem piedade. Tudo é depositado nela: dor, angústia, revelações, lembranças, alegrias, tristezas… Tudo amontoado numa caótica limpeza físico-espiritual da alma de Abel, por isso “ela circula numa atmosfera algo imprecisa e nebulosa à qual não escapam percepções que hoje nos parecem frutos de uma visão premonitória de um novo suporte técnico para a ficção, intimamente relacionado com a estrutura do hipertexto”, reitera Ermelinda. Como escreve o próprio narrador, ele se serve à mulher como “uma imensa máquina que mói e derrama sobre seu corpo, triturados, os anais do universo, a gigantesca massa de eventos e processos não só do mundo visível, mas do imaginado e do inimaginável”. A mulher sem nome é o amor em grau máximo para Abel, material significativo para explosões emotivo-racionais, o que lhe é causa para inúmeros destemperamentos e alguns vários rumores de desconfiança.

Mas não é só a relação com a personagem sem nome que é conflituosa e difícil. Com Roos – alemã, símbolo de um platonismo cru – os percursos que dão para o amor são tortuosos para Abel, muitas vezes nebulosos. Mesmo relacionada ao paradoxo do encontro desencontrado, Roos é o índice da compaixão. Roos é o próprio percurso, a estrada que leva Abel para a vida. Roos é o próprio pássaro Avalovara, no qual Abel viaja por imensidões inestimáveis montado em seu dorso de penas imaginárias. Sem Roos, nem Cecília nem a mulher sem nome existiriam. Já Cecília é o encontro, a certeza que se chega a algum lugar, mesmo que este lugar não tenha piso, parede, terra. Cecília é também o tempo, por isso é inesgotável e onipresente. Cecília está em Roos e na mulher inominada. Cecília está no plano do romance de Abel e no plano narrativo que Abel representa (o quadrado).

Todas as mulheres de AVALOVARA são metafóricas, imitações de um desejo. São elas o próprio romance que Abel está escrevendo, ou seja, A viagem e o rio. Uma depende da outra para ser, uma acontece depois da outra e antes da outra. Após a andança amorosa de Abel, que percorreu Pernambuco e Europa, e que por fim desemboca em São Paulo, ele encontra o percurso certeiro para o amor considerado perfeito. Abel morre e assim todo o mosaico está completo. O bordado terminado. A catedral, com suas naves repletas de simbologias, erguida aos céus dos sentidos. Com Abel morto, a mulher sem nome, Roos e Cecília se libertam do quadrado. São agora somente a espiral. E tudo pode acontecer. Só depende do leitor e de como ele fará a releitura, ou melhor, só depende de como e para onde ele seguirá, claro, preso às asas do pássaro mítico de Osman Lins.


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