Por Germano Xavier
Tenho feito um exercício bastante peculiar nos últimos anos e isso não é novidade para ninguém que acompanha este O Equador das Coisas há algum tempo: ler ao máximo a nova literatura pernambucana para, primeiramente, entender um pouco mais acerca deste espaço territorial nordestino que, antes de ser o estado natal do meu velho pai, é hoje o lugar onde gasto a minha vida desde o fim de 2013, quando vim morar em Caruaru, cidade do interior situada à região meridional do setor agreste. E, em sendo assim - não tinha como ser diferente -, o Prêmio Pernambuco de Literatura (agora Prêmio Hermilo Borba Filho), assim como as publicações da Cepe Editora, sempre foram dois grandes norteadores para esta minha atividade, convenhamos, ainda recente de pouco mais de 5 anos.
Todavia, alguns autores locais, terminaram por fincar raízes em editoras além-Pernambuco, como é o caso de André Balaio, autor de QUEBRANTO (Patuá, 2018), seu premiado livro inaugural, eleito Melhor obra de ficção escrita em 2018 pela Academia Pernambucana de Letras - APL. Para minha grata surpresa, QUEBRANTO se mostrou um livro bastante convincente dentro de uma seara temática por demais explorada na literatura brasileira e, também, universal, e que possui grandes representantes espalhados pelos séculos e séculos da tradição literária. Mistério, quase-terror, segredos sombrios, desvendamentos, ilusões, revelações e manobras que beiram ou beijam o surreal-real são alguns dos líquidos preciosos que dão vida ao corpo de um dado corpúsculo engendrado nas teorias do fantástico e do noir impresso no papel pelas mãos treinadas, lúcidas e operantes de André Balaio.
QUEBRANTO é um livro simples (eu disse simples, não simplório), bom de ser lido, que conta com um forte apego e um amplo prestígio ao rápido endereçamento do leitor ao clímax das narrativas expostas, sem deixar de causar um alumbramento necessário ao interlocutor ao longo da leitura transcorrida, como se feito a partir da melhor receita para brumas e névoas: a desfaçatez. O "nocaute" cortazariano é dado por Balaio aos flancos, de leve, quando menos se espera dele um soco ou um chute, com golpes lentos porém contundentes, nunca de frente, escancarados feito jebs desfloradores e nada criativos. O significado é o que parece importar ao fim, ou o rumo a uma dada cosmovisão, mas o caminho, justamente a graça de todos os percursos, é a ordem máxima dos passos dados pelas personagens, verossímeis de tão reais - ou vice-versa.
A respectiva obra é um alerta para nossos sonos diários, nossas malemolências vitais, nossos desacreditamentos. Humanos que somos, introjetados num sistema de vida de trejeitos nefastos e soturnos, maquinados dentro de afazeres sem sentido pleno, perdemos a capacidade de ver além, como se fôssemos acometidos por uma catarata eterna que nos oprime e nos cega dia após dia, noite depois de noite. Destarte, deixamos de ver a Beleza, o Real, o Mítico, o Filosófico, o Rude, a Bondade, o Desperdício, a natureza de todas as coisas e de todos os sentimentos... aí vem e se alteia e se altera Balaio e nos devolve o fantasmagórico de nossas jornadas que um dia chegarão ao fim - mesmo tudo permanecendo -, o que está pelas nossas costas, um tempo de olhos bem abertos, em brasa sempre acesa.
André Balaio, nos 13 contos do livro, tende sempre a tirar a pelagem das inúmeras civilizações alheias a nós-todos, que vagam pela vida e pela morte e por todas as outras dimensões possíveis, populações inteiras construídas a partir da mesma matéria do escuro, da noite, do breu total, do que é ainda opaco ou translúcido e de tudo aquilo que não enxergamos ou que certo dia deixamos de vislumbrar. Sabedor de toda a jogatina e de toda a lida contista, Balaio age feito um alfandegário: bole-bole, separa-separa, escolhe-escolhe e, de quebra, ainda nos desloca desses "mundos-todos" para cenários bem pernambucanos, como sítios, fazendas, usinas... Resultado de tamanha arquitetura? Um livro com virtudes próprias, exato, ativo e leal ao que se propõe. Enfim, mais um belíssimo exemplar desta nova literatura pernambucano-nordestina que está aí a vencer fronteiras outrora tidas como intransponíveis e/ou irredutíveis, apesar de nossa larga tradição (a dos escritores do Nordeste) em derrubar todos os muros que, porventura, teimaram em nos atravancar o caminho.
breve entrevista com o autor
Germano Xavier – “Os homens de imaginação – eles vibram facilmente demais e são de sua natureza tempestuosos”, frase presente em Correspondência, de Eça de Queiroz, datado de 1885. Você concorda com tal afirmação? Quem é e como se porta o escritor André Balaio perante as possibilidades de vida e de morte ante o caos criativo?
André Balaio – A vibração existe, é necessária, vem do pathos criativo e do atrito com a vida. O caos surge diante da incerteza e da inevitabilidade da morte. Mas é preciso dar forma. Escrever é uma tentativa de organizar o caos. Extrair dele algo novo e questionador.
Eu, como escritor, busco uma conexão baseada na identificação e no encantamento. Preciso que o leitor sinta o que os meus personagens sentem, que os compreenda, que as histórias dos personagens de alguma forma o atinjam. Uma vez uma pessoa que leu o Quebranto, que aliás um ótimo poeta, me disse que não conseguia tirar um conto da cabeça. Ele não explicou o motivo, mas esta informação se bastou para me deixar contente. Não existe maior recompensa para um escritor do que marcar a lembrança de um leitor.
Germano Xavier – O mesmo Eça de Queiroz, neste mesmo livro supracitado, disse que “um livro de contos é um livro ligeiro de emoções curtas”. O que você pensa sobre esta assertiva, Balaio? E por que o conto? Quais os motivos para esta escolha?
André Balaio – Não acho que as emoções sejam curtas. Elas são condensadas, reprimidas. Precisam ser moldadas num espaço curto. Talvez por isso mesmo sejam tão intensas: estão a ponto de explodir, de fazer a tampa voar.
A opção pelo conto foi justamente essa capacidade de acertar o queixo e levar a nocaute (obrigado, Cortázar). O arrebatamento. Também influiu o fato de serem histórias surgidas quase na mesma época e que, apesar de tão diferentes entre si, tinham a mesma ideia do sobrenatural e do fantástico como ruptura diante da normalidade.
Germano Xavier – Lendo o seu QUEBRANTO, remontei-me a uma tradição muito peculiar a nós, amantes da boa literatura, produzida por nomes como J. J. Veiga, Horacio Quiroga, Isabel Allende, Guy de Maupassant, H. P. Lovecraft e, claro, o grande mestre Edgar Allan Poe. De onde veio a matéria-prima do seu primeiro livro de contos, Balaio? Quais as tuas fontes primárias de inspiração? E de que forma você se deixa influenciar por elas?
André Balaio – “Os Cavalinhos de Platipanto” de J. J. Veiga é uma fonte à qual sempre retorno. O mesmo acontece com vários contos e poemas de Poe. Maupassant e Lovecraft são referências importantes da minha formação. Há também Shakespeare, com a erupção emocional dos personagens. Na busca de uma linguagem precisa e cortante, Graciliano Ramos precisa ser lembrado. Cortázar vem com a sensação de estranhamento frente ao insólito, da quebra da realidade em pedaços que não mais se colam. “A Casa Tomada”, aliás, é um dos contos estrangeiros que mais gosto. Existem muitos outros autores como Raimundo Carrero, Herman Melville, Juan Rulfo, Guimarães Rosa (“A terceira margem do rio” é meu conto brasileiro preferido), Lygia Fagundes Telles (o “Seminário dos ratos” é grande lembrança) e Hilda Hilst. Todos também estão por ali, espreitando de alguma forma.
Talvez seja um enorme lugar comum dizer que a matéria-prima da minha escrita esteja nos livros que li, nos filmes e peças que assisti e nas pessoas com quem convivi, mas é isso mesmo, são essas as principais fontes. Hamlet inspirou o conto “O resto é silêncio”. Paulo Honório de “São Bernardo”, personagem que muito me assombra, foi referência para um personagem de “Eu sou o filho do homem”. Uma história maravilhosa da família da minha esposa foi a base para “O lado de lá”, e quando a ouvi pela primeira vez parece que ela pedia para ser escrita. Por fim e não menos importante estão minhas relações familiares e meus demônios que de um jeito ou de outro se entranham no que escrevo.
Germano Xavier – Albert Camus disse, certa vez: “Não desejo mais ser feliz, e sim estar mais consciente”. Entendo que a literatura tem esse papel, também, o de despertar consciências. Você acredita nisso, Balaio? Se sim, que tipo de consciência o seu livro QUEBRANTO ou a literatura em si pode despertar nos leitores?
André Balaio – Escrevo para tocar algum nervo do leitor. A emoção, se não é superficial, pode levá-lo a uma pequena revolução interna. Esta revolução deve despertar a consciência. Não acredito que a arte tenha outro papel que não seja o impacto estético. Este impacto pode levar à reflexão e à consciência.
Apesar dos meus contos serem narrativas fantásticas o que mais procurei foi a dimensão humana dos personagens. As inadequações dos personagens, diante das vidas que levam e da morte, geram a tensão. E é no momento no momento da ruptura que surge o elemento fantástico. São quase sempre pessoas comuns colocadas em situações limite. Situações geralmente provocadas por quem está próximo: o pai, a mãe, o filho. Meus fantasmas não são distantes e misteriosos, são próximos, muito próximos, e estão sempre à espreita.
Germano Xavier – Fale-nos um pouco mais sobre o processo de elaboração, de escrita e de publicação deste teu QUEBRANTO. Como você enxerga o cenário atual da literatura brasileira? Em quê apostar daqui para frente?
André Balaio – Quebranto foi escrito durante aproximadamente três anos num processo de aprendizagem e de amadurecimento como autor. Foi quando passei a ver a escrita de uma forma mais intensa e várias questões surgiram. Os contos não são fotografias antigas que encontrei numa gaveta e colei no álbum. Foram pensados com uma ideia de unidade. Quase todos têm o conceito que o téorico Tzvetan Todorov apresenta em seu “Introdução à literatura fantástica”: o fantástico baseia-se na dúvida. Aquilo de fato está acontecendo ou é fruto da perturbação do personagem? Coloquei essa questão em pessoas que podemos encontrar na rua, no banco, num consultório médico. Meus personagens são agricultores, advogados, mendigos, jornalistas, fazendeiros, estudantes, office boys, comerciantes, usineiros. Todos se encontram em situações limite. E é aí que o fantástico se apresenta.
Com relação ao cenário atual da Literatura no Brasil, vivemos um momento interessante de mudança. Há muitos autores publicando por editoras independentes ótimos livros que não se encontram nas livrarias. Mas há uma falta absurda de leitores, principalmente os de boa ficção. Ainda lembro de quando O Nome da Rosa e Memórias de Adriano eram bestsellers e falávamos deles como hoje falamos de uma série de sucesso da Netflix. O grande desafio é formar novos leitores e chegar aos que existem. Para isso, é preciso colocar o livro debaixo do braço e partir para o corpo a corpo.
Obs: o livro pode ser encontrado no site da Editora Patuá.
* Imagens: https://zinebrasil.wordpress.com/2018/03/09/andre-balaio-lanca-quebranto-na-casa-cultural-villa-ritinha-em-recife/