domingo, 15 de dezembro de 2024

O vestido


 

por Germano Xavier


para Débora Xavier


por baixo do vestido

dou-te meu sobrenome

bem antes de nosso amor nascido

já havia promessa de amor tingido

em laranja | ou rosa (sua cor) |

num natural mistério em manifesto


por baixo do vestido

recolho o mel da mulher que amo

uma ânfora poética inteira entre lábios 

e corações | minha nação de estar

de bem-estar


por debaixo do teu vestido

existe um lar em que habito

casa de um só corpo em alma única

sendo dois o número de nossa sorte:

a do encontro


porque eu prefiro teu evangelho de amar

e nossas bocas entrecortando as noites

nos retirando dos desertos de antanho

nos referindo às águas quentes do hoje

(nosso mar)


teu vestido cobre o feminino fatal

que mudou o rumo de meus passos

que ceifou a inverdade de uma vida 

refinando minha nada cega vontade 

de ter você



* Imagem: https://www.amazon.com.br/Mulher-Vestido-Laranja-Abstrato-60x40cm/dp/B0CBCR26QN

NEM TUDO O QUE HÁ NO MUNDO (ANTOLOGIA)


 

Neste vídeo, Germano Xavier fala sobre a antologia NEM TUDO O QUE HÁ NO MUNDO, que marca o início dos trabalhos da Editora Arrelique na região do agreste pernambucano, principalmente na cidade de Caruaru-PE.

A antologia está disponível de graça (Kindle Unlimited) ou via compra no site da Amazon.
Lista dos autores presentes na antologia: Alisson Pereira, Alyson Monteiro, Carolina Azevedo, Clécia Pereira, Daniela Celi, Dave H. Santos, Davi Geffson, Edlúcia Rodrigues, Germano Xavier, Ivan Nicolau Corrêa, Iyan Oliveira, Jénerson Alves, Joana Figueirêdo, Luciene Alves, Manu Monteiro, Silvano Barbosa, Silvia Jussara Domingos, Thiago Medeiros, Urbano Leafa e Vitor Vieira.

sábado, 7 de dezembro de 2024

A(mar) é


 

por Germano Xavier


para Débora Xavier


eu te saúdo

feito o sol que toca tua pele

ancorada no prazer

feito a água do mar que salga

tua alma malina | eu te embarco

na onda do amor mais puro

que vem descendo e que vem

tomando o inteiro horizonte

e te remeto ao certo e simples destino 

dos amantes | eu te navego

com o mapa do teu corpo

em minhas mãos e a maré...

e a maré...


e (amar) é

nossa flutuação



* Imagem: Google

sábado, 30 de novembro de 2024

BRANCA DE NEVE, dos Irmãos Grimm (por Tatiana Belinky)


 

Neste vídeo, Germano Xavier fala sobre o conto Branca de Neve, dos Irmãos Grimm, em versão de Tatiana Belinky.

Estrada de infinitos


 

por Germano Xavier


para Débora Xavier


reconheço meu lugar

em tua voz-terra

o futuro dos meus passos

alinhados em alinhavos

a estrada de infinitos

curvados pelo destino

que me mostra o coração

dos agoras-e-além


reconheço em você 

toda dor vencida

toda vitória reunida

sob a égide do amor


o escudo que carrego

nos ombros largos

é força tamanha (imperiosa chama)

de se quebrar barreiras e de rumar idas

para bem distante do mal


reconheço minha casa

em teus aromas de não-distância

e para lá me vou

unido ao mar das coragens

ancorado nas velas de resgate

que me retiram do breu e me devolvem

para muito perto 

do paraíso


* Imagem: Google

ÉPOCA DE MIGRAÇÃO PARA NORTE, de Tayeb Salih


 

Neste vídeo, Cristina Seixas fala sobre o livro ÉPOCA DE MIGRAÇÃO PARA O NORTE, de Tayeb Salih.

quarta-feira, 27 de novembro de 2024

Invisível aos olhos, o amor


 

por Germano Xavier


para Débora Xavier


as coisas são assim

simplesmente acontecem

como quem nunca espera o trem

da vida na primeira hora do dia

como quem jamais se ancorou na quimera

e nos sonhos sem cor: e estamos

onde estamos?


(tu)

chegaste como o sol 

que me banhou a pele na mais memorável

das semanas (e dentro do Tempo: uma espera de almas)

que se reconhecem na aurora dos sons

no alvorecer dos sorrisos

na boca úmida sem o beijo

na força humana do querer


quem me dirá que a noite já me era dona

na redoma das demoras e dos fastios?

mas você me retirou da imperiosa

sanha de morte dos meus desacontecimentos


agora tudo é fúria (tudo)

arranha e tudo forja a glória 


e a manha das manhãs nos teus olhos d'amor


em teus pulsos me leva você

ao pioneiro dos rumos: o de amar loucamente

uma mulher como quem ama

uma fé


no fim

(de tudo que agora se inicia)

fica feito em êxito o novo em que me aposso

do tamanho do que nunca senti

originalíssima invenção do Real


aquele de ir sem desistir

mistério fundado em te amar

e só



* Imagem: Google

domingo, 27 de outubro de 2024

O TEMPO VOA, de Pedro Dias


 

Neste vídeo, Germano Xavier fala sobre o livro O TEMPO VOA, de Pedro Dias. #otempovoa #pedrodias #literaturainfantojuvenil #canalliterário #oequadordascoisas

sábado, 17 de agosto de 2024

VIDA E OBRA DE CAROLINA MARIA DE JESUS (LIVE)


 

Neste vídeo, Germano Xavier, Catarine Gonçalo e Alayz Vasconcelos (mediadora) conversam sobre a vida e a obra da escritora mineira Carolina Maria de Jesus, numa Live organizada pela Escola Municipal Cordeiro Filho, de Lagoa dos Gatos-PE.

Semana Literária EMCF/2021.
#carolinamariadejesus #vidaeobra #quartodedespejo #canalliterário #oequadordascoisas

terça-feira, 13 de agosto de 2024

Sobre a escritora Luísa Fresta (Texto para o Canal do Poetariado - Youtube)


 

Por Germano Xavier, 

em especial para o CANAL DO POETARIADO (YOUTUBE).


É com enorme satisfação que esboço aqui uma apresentação sobre a escritora Luísa Fresta, voz poderosa de nossa literatura contemporânea em Língua Portuguesa. Sua carreira literária é marcada por textos de tonalidades muito diversificadas, perfazendo um percurso que vai da literatura infantojuvenil às formas mais clássicas e tradicionais da poesia, passando por outros importantes gêneros como o conto e a crônica.

Luísa Fresta é amplitude portuguesa e angolana, uma dupl'alma concentrada em uma força-motriz-feminina que entrelaça Angola, Portugal, Brasil, Áfricas e Mundos em um coração delicado e dedicado a enxergar a mais pura arte literária nas situações mais comuns ou nas circunstâncias mais rudes. Suas mãos tecem um conjunto de textos que pontuam suas múltiplas influências culturais e humanas como quem aborda o próprio espelho das grandezas da vida. Uma mulher que a todo instante nos apresenta à lusofonia e ao africano, uma mulher que não se cansa em opinar sobre livros, filmes, artes em geral... uma mulher em constante movimento.

Com a escritora Luísa Fresta, aprendi que o essencial está por vir, ainda no próximo verso, ainda no próximo parágrafo, porque a literatura está no que avança e no que nos desdobra, no que nos recobra e no que nos aplaina, apontando para as mazelas mundanas mais irrefutáveis. Com a escritora Luísa Fresta, aprendi que é necessário perceber e revelar os centros das pequenas coisas, os núcleos sísmicos dos elementos que fazem a vida de todas as pessoas, mesmo que estas fontes interiores e, por vezes, ulteriores de e acerca da vida sejam ou estejam integradas à própria faculdade vital do ser humano: o viver, o estar vivo-e-além.

Ao lado de Luísa Fresta, numa jornada de parcerias que já ultrapassa uma década, aprendi que o verdadeiro poeta fotografa o caos, que o verdadeiro escritor registra os medos de nós-gentes e articula a chama que fará o fogo-máximo de nossas idas e vindas, de nossas descobertas e, também, de nossas decepções. Luísa Fresta soa quase sempre maternal, como uma mãe que ensina as suas crias os segredos do caminho.

A escritora Luísa Fresta nos questiona, em seus textos, se a felicidade é um bônus ou uma guilhotina. Dentro de suas palavras, tombamos por cima das farturas e das fraturas dos símbolos mundanos, adentramos o sagrado nas coisas triviais e bulimos com o absurdo das naturalidades cotidianas oriundas de convenções sociais e institucionais. Tudo isso, regado com uma pessoalíssima dose de maturidade artística e pessoal. Aliás, ensinagens não faltam nas páginas dos livros e na obra geral escrita por Luísa Fresta. E isso me chama muito a atenção. Luísa Fresta sempre está a nos ensinar algo. E de uma forma muito espontânea e inteligente.

A escritora Luísa Fresta, por vezes, quase ignora o real para nos abrir um mundo de percepções suavemente surreais, quando no tempo das intermitências e das incertezas da vida, colocando-nos numa posição de combate e, também, de respeito perante o tempo futuro. Afinal, o que faremos da vida que nos resta? O que estamos fazendo com o nosso Hoje, com o nosso Agora? Aquela velha batalha já por demais esgotada e profética: cada dia que passa é um dia a menos, não um dia a mais. Luísa Fresta tenta parar o tempo para que possamos observá-lo, tamanho o seu poder perante todos nós. Luísa Fresta é, por fim, a voz de uma humanidade revista e ressonhada, cheia de memórias e refundada em anunciações. 


* Imagem: https://www.voaportugues.com/a/4324514.html

domingo, 9 de junho de 2024

EVANGÉLICOS E PANDEMIA, de Pierre Salama


 

Neste vídeo, Germano Xavier fala sobre o livro EVANGÉLICOS E PANDEMIA, de Pierre Salama. #evangélicosepandemia #pierresalama #neopentecostalismo #canalliterário #oequadordascoisas

terça-feira, 4 de junho de 2024

Nivaldo Tenório e as camadas do conto


Por Germano Xavier



Em seu terceiro livro de contos, intitulado de NÍNGUEM DETÉM A NOITE (Confraria do Vento, 2017), o garanhuense Nivaldo Tenório, autor do bem cotado DIAS DE FEBRE NA CABEÇA (2012), faz aquilo que em seu livro anterior já havia, diria, iniciado, como quem repercute uma marca pessoal e a expande: a fabricação ou composição do conto em camadas. Da mesma forma (ou com a mesma fórmula), as narrativas são curtas e circundam temas cotidianos, com toques enxutos de realidade fantástica, quase que imperceptíveis. A morte entra como pano de fundo central e a noite engloba boa parcela de seu simbolismo. Doenças, fragilidades de corpo e alma, fraquezas de conduta, amarguras e dissabores formam o arco-íris pintado em tons de cinza do livro do escritor pernambucano. Como em DIAS DE FEBRE NA CABEÇA, tudo aparenta estar em seu lugar. Mas não se engane, leitor. Ao menor sinal, perdemo-nos nos finais sem fim dos contos de Tenório. Fragmentados, somos atraídos por um imã-maior como cacos e, só assim, seguimos adiante na leitura. Uma pequenina coletânea de abismos é o que Tenório nos oferta neste livro. Os contos, formulados em pequenas cadências, com diálogos internos ou não, formam uma geometria avulsa, completamente organizada, mas indefinida a partir de sua respectiva angulação final. O olhar de Tenório sobre o básico e sobre o essencial da vida é o de quem sonda o imprevisível com respeito e arguta paciência. O autor desvia o leitor do caminho comum à medida que nos informa sobre outros mil nadas por demais preciosos. Cada mínima camada de suas fabulações é uma nova dúvida instaurada, um novo segredo camuflado, uma nova observação momentânea que se realiza dentro das miudezas e das minúcias das narrativas. Algumas imagens podem turvar o campo de visão do leitor mais desatento, como uma tartaruga que morre durante um passeio familiar em plena ditadura. É um livro triste, denso, duro, cru, cruel, que não tem pena de seu interlocutor. Assim se formou a verve de Nivaldo Tenório, sabedor astuto de que é na vida, dentro dela propriamente dita, que nos criamos feito bichos, que nos desenvolvemos feito astros, dentro dela que aprendemos a desaprender submissões e a desatar os nossos grilhões. Em Tenório há sempre um suicídio prestes a acontecer, tão provável que quase não mais assusta, pois é ele tão próximo que tende a ser a única certa defesa com a qual suas personagens podem contar quando necessário. A mensagem é a de fim de percurso, a de que o homem (todos nós, inclusive eu e você, amigo leitor deste blog) não tem mais para onde correr. Não há mais força nas pernas nem picadas a abrir nos matagais de pedra das cidades. A luz do dia ofuscou nossa derradeira esperança e ninguém, absolutamente ninguém, parece ser ágil o suficiente para deter a noite eterna das civilizações.


* Imagem: Acervo do autor

sábado, 13 de abril de 2024

O SEGREDO, de Rhonda Byrne


 

Neste vídeo, Rebeca dos Anjos fala sobre o livro O SEGREDO, de Rhonda Byrne. #osegredo #rhondabyrne #rebecadosanjos #psicologiapositiva #canalliterário #oequadordascoisas

quinta-feira, 11 de abril de 2024

Então você quer ser escritor?


Por Germano Xavier


Para quem gosta de contos, o livro ENTÃO VOCÊ QUER SER ESCRITOR?", do paranaense Miguel Sanches Neto é um prato a ser devorado com uma fome necessária. 16 narrativas perfazem o miolo. Personagens aparentemente simples, mas que portam angústias e conflitos nada medíocres, todos desenrolados com maestria. A verdade é que nada no livro impressiona muito. Nada há de exagero nem de estapafúrdio. O fantástico e o inominável passam longe de suas linhas. Há uma intensidade linear em todas as estórias, e por isso mesmo o livro ganha créditos nas mãos de quem o lê. É um livro suavemente denso e densamente sutil, mas ardiloso. A literatura contemporânea praticada em sua excelência, talvez. Linguagem corrida, deslizante. Diálogos avessos a qualquer tipo de ostentação linguística de estilo. A comunicação em primeiro lugar. Enfim, um livro de contos, com 16 contos muito bem instalados e cada um com vida própria. Diversidade, neste caso, interessa e muito. ENTÃO VOCÊ QUER SER ESCRITOR? não é nenhum mapa astral para quem quer ou está começando a se enveredar pelos caminhos árduos, traumáticos e prazerosos da literatura, como pode sugerir o título. Porém, se observado sob tal viés, o livro de Miguel Sanches Neto pode surpreender como livro-aula. É difícil dizer, numa primeira leitura, qual a principal qualidade do livro de Sanches. O livro habita um território onde todos podem estar. Os leitores são rapidamente levados a vivenciar tudo, pelo simples fato de que nada ali é irrealizável. Nota-se um esmero nas frases e no discurso das entrelinhas. Um livro de contos sem romantismo, mas com alto teor de nostalgia. Há sempre um momento a ser revisitado, não se sabe se pelo próprio autor ou se pelas personagens. Uma obra embriagada por ela mesma, posto que se sabe dentro de si e existível além: precondição nada para o tornar-se diferenciado. Longe de querer classificar o livro de Sanches utilizando de qualquer artifício, ele, o livro, é digno de leitura. Coisa rara hoje em dia, onde tudo que é escrito parece sair das genitálias dos "escritores", descarregados de muitos elementos básicos e fundamentais para o elaborado exercício da prática da escrita ficcional. Hemingway já dizia: "A maioria dos escritores vivos não existe" - esta citação está destacada no último conto de ENTÃO VOCÊ QUER SER ESCRITOR?, e me serve agora para dizer o fim destas poucas ideias. Miguel Sanches Neto está vivo e existe. Você duvida? Sugiro começar o livro pelo segundo conto, intitulado de Árvores Submersas. Talvez ele só já te prove alguma coisa em caráter de urgência, e aí você pode continuar o nado sem grandes tribulações na consciência sobre o uso do seu tempo.

domingo, 7 de abril de 2024

O ÚLTIMO SACI, de Renata Limão Campos


 

Neste vídeo, Germano Xavier fala sobre o livro O ÚLTIMO SACI, de Renata Limão Campos, com ilustrações de Juliana Scatolin.

#oúltimosaci #renatalimãocampos #julianascatolin #literaturainfantojuvenil #germanoxavier #canalliterário #oequadordascoisas

quarta-feira, 27 de março de 2024

Não haverá futuro


 

Por Germano Xavier


não haverá futuro

até que se aprenda a aproveitar o dia

como uma estrutura sólida de sempres

até que se possa viver o hoje 

sem o incômodo destemperado do Tempo

não haverá futuro

antes de mais nada que não seja nada

ou mesmo depois do pior

não haverá

futuro sem amor

se não intentarmos a ferina variação

dos nossos humores

dos rumores e dos tumores e dos temores

não haverá futuro

se continuarmos a espionar nossas presenças

com os olhos autogovernados dos sistemas

surpreendentemente secretos do amanhã


sobremaneira

não haverá futuro


somente o saldo romântico das contestações



* Imagem: https://www.notibras.com/site/solidao-vira-risco-para-o-futuro-dos-jovens/

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2024

OBRA LITERÁRIA, NÃO LITERÁRIA, ANTOLOGIA E COLETÂNEA, por João Fernando André


 

Neste vídeo, João Fernando André esclarece os conceitos de Obra Literária, Não Literária, Antologia e Coletânea.

#obraliterária #conceitosliterários #teorialiterária #joãofernandoandré #canalliterário #oequadordascoisas

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

Os abismos de Trevisan



Por Germano Xavier



Para começo de conversa, que capa belíssima a da segunda edição desse livro, datada de 1979! O título: ABISMO DE ROSAS. Que título, Dalton Trevisan! Só podia ser mesmo um livro escrito por vossa senhoria, mestre da amplificação semântica das palavras mínimas. Os minimamente iniciados nesta lida chamada de literatura já podem desconfiar: ABISMO DE ROSAS é um petardo vindo em direção ao coração do humano. Um sedutor furacão feito de palavras-além que arrasta homens e mulheres, meninos e meninas, crianças e adultos, para os centros das vivências instantâneas, para o vértice das experiências mais fugidias, furtivas, aligeiradas. Lugares triviais e espaços inesperados formam a selva representativa por onde as personagens nadam de braçadas em busca da vida e da morte, seduzidas pelas fragrâncias inequívocas das horas mais cotidianas.

Há alguns anos, eu tinha bastante dificuldade em engolir Dalton Trevisan. Não gostava do modo peculiar de escrita dele. Hoje, mais maduro, com mais envergadura leitora, consigo degluti-lo e também confirmar o grande literato que é. O ABISMO DE ROSAS é mais um livro poderoso do Vampiro de Curitiba. São 21 contos curtos por onde putas, “degracidos”, aliciadores, bêbados e outros personagens típico-clássicos de seu já consagrado repertório se integram num microcosmo que resume bem toda a aurora de nossos dias, tanto a que é vista/revista quanto a que é insistentemente camuflada e/ou interrompida propositalmente pelos meios de comunicação de massa, primordialmente.

Dia desses, participando eu de uma edição da Toca Literária, oficina de criação literária regida por Marcelino Freire, o autor pernambucano reiterou a importância do Dalton Trevisan para a literatura nacional e, também, como influência em sua carreira de contista. Convenhamos, todo livro do Trevisan é uma aula particular de como elaborar diálogos arrebatadores. Só por isso, já vale a leitura, não obstante o toque lírico que dá à temáticas envolvendo o escatológico, o bestial, o insano, ao que é tido como sendo de natureza imoral, às sanhas e idiossincrasias humanas. Enfim, eis um autor de estilo marcado, próprio, personal. Condenados estamos a este abismo gutural que é a vida. De rosas ou não, só vivendo e lendo mais para saber. 

Evoé, Trevisan!


* Imagem: https://www.skoob.com.br/abismo-de-rosas-648794ed650841.html

terça-feira, 6 de fevereiro de 2024

O GARIMPEIRO DO RIO DAS GARÇAS, de Monteiro Lobato


 

Neste vídeo, Germano Xavier fala sobre o livro O GARIMPEIRO DO RIO DAS GARÇAS, de MONTEIRO LOBATO.

#ogarimpeirodoriodasgarças #monteirolobato #literaturainfantojuvenil #germanoxavier #canalliterário #oequadordascoisas

Avalovara


 Por Germano Xavier

Notas sobre Abel, a mulher sem nome, Roos e Cecília.

Osman Lins é um exímio construtor de máscaras, pois mascarados são seus personagens no enredo mítico de sua obra-prima: o romance Avalovara. Mascarados não por não conterem em si “nenhum caráter”, como o ilustre Macunaíma, de Mário de Andrade, mas sim por serem elas (as personagens) entidades existentes primordialmente numa esfera de imaginação onírica que, por diversos momentos, sufoca a presença de uma anunciada realidade.

Osman Lins (1924-1978), pernambucano de Vitória de Santo Antão, literalmente põe as personagens sobre a palma da mão do leitor, como que almejando um fenômeno receptivo baseado em referencialidades mais espontâneas ou automáticas. Assim sendo, não basta a simples leitura, a mera decodificação dos códigos lingüísticos, o comum debruçar-se sobre a obra para a boa compreensão da trama. A atitude decisiva do leitor perante o texto é agora o que importa mais, pois o leitor tem diante das vistas um multilivro, um polilivro, cuja fabricação das compreensões vai se basear nos caminhos tomados por ele, sujeito que lê.

Com o leitor podendo compor histórias variadas e variáveis a partir de uma história central, as personagens em Avalovara também passam a agregar dentro de suas existencialidades o caráter de mutabilidade, moldando-se, sempre que requeridas, a partir das rotas desejadas pelo leitor. Essa foi uma fórmula encontrada por Osman Lins para lutar contra o fantasma do fim/esgotamento do gênero romance – idéia muito em voga nos anos 70, década em que Avalorava foi publicado, mais especificadamente em 1973.

Para ele, com a disponibilização escancarada do poder de co-agir e co-produzir a narrativa, tanto o leitor quanto o romance se fortificariam enquanto sujeito e gênero textual, respectivamente, e por conseguinte apagariam qualquer vestígio factual acerca da não-sobrevivência do romance dentro do vasto universo da literatura.

O início dessa revolução estrutural na obra do escritor pernambucano se dá com a publicação de Nove, novena, livro de narrativas curtas datado do ano de 1966. Inclusive, e para fortificar a preocupação diante do referido tema, a questão da estrutura romanesca, principalmente os elementos espaço-temporais, foi objeto de pesquisa durante toda a vida acadêmica do autor. Segundo a professora doutora Ermelinda Ferreira, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE): “Sua insistência no estudo da estrutura, sobretudo a do espaço narrativo – tema de sua tese de doutorado – e sua exigência por um leitor participativo, presente em textos construídos como jogos verbais e visuais, vistas à luz das questões postas pelo avanço dos mais recentes meios de comunicação, adquirem aquela clareza a que ele tanto aspirava quando falava de sua obra”.

Comparável a O Jogo da Amarelinha (Rayuela), obra labiríntica máxima do argentino Júlio Cortázar, Avalovara é, por assim dizer, um romance desprovido de seqüenciamento lógico, onde o espaço (O quadrado) bifurca-se no contato com o tempo (A espiral) num movimento de contágio temático que beira o assombroso. O espaço é a própria edificação das personagens, que habitam inatamente o território da racionalidade, figurada pelo quadrado, e que sem cerimônia transitam sobre o plano simbólico-metafórico-onírico de um local que é apenas simulação, mas perfeitamente existível, a espiral.

“Avalovara é uma obra virtual, se entendemos virtual como o oposto ao atual, e não ao real. Real sem ser atual e ideal sem ser abstrata, esta obra ditava, há três décadas, os preceitos de uma nova forma para a escrita e para a leitura, elaborando-se não como um romance de ficção científica, mas como uma ficção científica do próprio romance, como uma metáfora cibernética de um futuro possível para a literatura, projeção imaginária e idealizada de um suporte que viesse somar uma riqueza de possibilidades à palavra, potencializando-a e aos seus efeitos no mundo”, reforça Ermelinda.

Sobreposta ao quadrado da razão, a espiral mágico-mitológica do enredo elabora a passos vagarosos e milimetricamente pensados os fragmentos de uma moldura única. Cada fragmento constitui uma personagem que, por sua vez, representa a necessária estrutura para que o outro passe a existir, mesmo que este outro aparentemente apareça destituído de realismo. Realismo, no caso de Avalovara, não é nem de longe um dos objetivos que norteiam o leitmotiv da obra. É como se o irreal, visto aqui como uma opção de recurso literário, funcionasse a vapores plenos em matéria de complexidade formal e conteudística.

Toda personagem surge de uma aresta, de uma esquina onde uma lacuna possibilita uma entrada, mesmo sabendo que só há uma entrada para o mundo da razão, ou seja, para o quadrado, que é pela ponta da espiral, ou seja, a voz do narrador: caminho sem-razão. Sendo assim, todo personagem é um só, o espaço delimitado e percorrido pela espiral: o quadrado. A espiral representa o infinito, o quadrado simboliza o além-infinito. A espiral está dentro do quadrado, que apesar de ser o ad infinitum é um território demarcado, portanto finito em sua infinitude. As personagens escorregam pelo corpo imaginário da espiral e elaboram um trançado de ações que se movimentam para um centro aglutinador de energia, para uma espécie de olho de furacão.

De acordo com Ermelinda, “Osman Lins acopla seus motivos clássicos, grande parte deles de influência medieval, traduzindo talvez um paradoxo que se percebe em toda a sua obra, tantas vezes verbalizado em seus textos de intervenção e de crítica: um misto de amor e de horror à tecnologia, à máquina, ao ruído contemporâneo, que o fazem desviar a atenção constantemente para a arte antiga. Este sentimento ambíguo de desejo e repúdio com relação à modernidade; este apreço confesso à história e ao ritual, ao lado da criação de procedimentos narrativos que aniquilam a linearidade e a seqüencialidade históricas, encontram tradução em Avalovara, na busca de ambientação na arte medieval (pintura, música e literatura), representada pelos volteios da espiral, posta “sobre” ou “dentro” de um arcabouço racional (o quadrado)”.

Abel, personae-narrador do livro, divide seu protagonismo com o amor de sua vida: uma personagem mulher sem nome, representada por um símbolo gráfico circular pontuado ao centro e com duas espécies de aspas na parte superior. A mulher que não possui nome é criação de Abel, portanto protagoniza o romance que Abel está escrevendo. Isso reforça a idéia de que Avalovara é, segundo o próprio Osman Lins, uma “alegoria da arte do romance”. Há um romance dentro de um romance, uma história dentro de outra, uma ficção no interior de uma ficção. A mulher sem nome na verdade não existe, ou existe para além dos muros da realidade que não é real, ou seja, a realidade do romance escrito por Abel.

Para Marisa Balthasar Soares, professora doutora da USP, Avalovara “ficcionaliza sua própria elaboração”, onde “é proposto um enredo em jogo palindrômico, que nada tem de gratuito, mas, pelo contrário, promove a possibilidade de ruptura com a linearidade do tempo narrativo. A mesma ruptura perseguida pelo personagem central Abel, um escritor marcado pela tensão entre a história imediata e um projeto literário de cunho universalizante, fundado no tempo mítico e para quem o passado não se cristaliza, mas se faz, como na utopia benjaminiana, a condição de transformação do presente”.

Abel a descreve como sendo ela filha de um ciborgue, simulacro de duas existências, mulher feita de metades e junções. Ao passo que a ama, Abel também a odeia, por saber que a única verdade da personagem amada é que ela não pertence ao mesmo plano existencial que o seu. “É na experiência de amor e morte de Abel junto a três mulheres - que ambiguamente são personagens do romance, no mesmo grau de ficção em que está Abel e, simultaneamente, sugerem-se como personagens de segundo grau, isso é, criações dele - que surge a experiência do tempo único”, diz Marisa.

A mulher sem nome é fruto da imaginação de Abel. Abel, por sua vez, é fruto da imaginação de Osman Lins e a entidade que melhor representa o quadrado. “Em um mesmo corpo reúnem-se o mecânico e o orgânico, a cultura e a natureza, o simulacro e o original, a ficção científica e a realidade social, exatamente o que encontramos no romance de Osman Lins”, afirma Ermelinda.

O corpo da personagem é um disco rígido, onde as memórias de Abel são armazenadas sem piedade. Tudo é depositado nela: dor, angústia, revelações, lembranças, alegrias, tristezas... Tudo amontoado numa caótica limpeza físico-espiritual da alma de Abel, por isso “ela circula numa atmosfera algo imprecisa e nebulosa à qual não escapam percepções que hoje nos parecem frutos de uma visão premonitória de um novo suporte técnico para a ficção, intimamente relacionado com a estrutura do hipertexto”, reitera Ermelinda. Como escreve o próprio narrador, ele se serve a mulher como “uma imensa máquina que mói e derrama sobre seu corpo, triturados, os anais do universo, a gigantesca massa de eventos e processos não só do mundo visível, mas do imaginado e do inimaginável”.

A mulher sem nome é o amor em grau máximo para Abel, material significativo para explosões emotivo-racionais, o que lhe é causa para inúmeros destemperamentos e rumores de desconfiança. Mas não é só a relação com a personagem sem nome que é conflituosa e difícil. Com Roos – alemã, símbolo de um platonismo cru – os percursos que dão para o amor são tortuosos para Abel, muitas vezes nebulosos. Mesmo relacionada ao paradoxo do encontro desencontrado, Roos é o índice da compaixão. Roos é o percurso, a estrada que leva Abel para a vida. Roos é o próprio pássaro Avalovara, no qual Abel viaja por imensidões inestimáveis montado em seu dorso de penas imaginárias. Sem Roos, nem Cecília nem a mulher sem nome existiriam.

Já Cecília é o encontro, a certeza que se chega a algum lugar, mesmo que este lugar não tenha piso, parede, terra. Cecília é também o tempo, por isso é inesgotável e onipresente. Cecília está em Roos e na mulher inominada. Cecília está no plano do romance de Abel e no plano narrativo que Abel representa (O quadrado). Todas as mulheres são metafóricas, imitações de um desejo. São elas o próprio romance que Abel está escrevendo, ou seja, A viagem e o rio. Uma depende da outra para ser, uma acontece depois da outra e antes da outra.

Após a andança amorosa de Abel, que percorreu Pernambuco e Europa e por fim desemboca em São Paulo, ele encontra o percurso certeiro para o amor perfeito. Abel morre e assim todo o mosaico está completo. O bordado terminado. A catedral, com suas naves repletas de simbologias, erguida ao céu dos sentidos. Com Abel morto, a mulher sem nome, Roos e Cecília se libertam do quadrado. São agora somente a espiral. E tudo pode acontecer, só depende do leitor e de como ele fará a releitura, ou melhor, só depende de como e para onde ele seguirá, claro, preso às asas do pássaro mítico de Osman Lins.

sábado, 20 de janeiro de 2024

TORTO ARADO, de Itamar Vieira Junior


 

Neste vídeo, o escritor e jornalista Germano Xavier fala sobre o livro TORTO ARADO, de Itamar Vieira Junior.

#tortoarado #itamarvieirajunior #romance #germanoxavier #canalliterário #oequadordascoisas

segunda-feira, 8 de janeiro de 2024

Descobrindo Bartleby em mim


Por Germano Xavier

Era o meu último ano em Salvador-BA quando li o livro Bartleby, o escriturário (Uma história de Wall Street) pela primeira vez. O ano era o de número 2004 e eu contava 19 anos de idade. De Herman Melville (o Homero do oceano Pacífico, no dizer de Albert Camus), escritor estadunidense tido como um dos precursores da filosofia existencialista e autor da obra acima citada, eu "somente" havia lido o seu texto mais importante: Moby Dick, publicado originalmente em 1851 e, curiosamente, motivo para seu "desprestígio" literário quando ainda em vida. Após o deleite sentido ao ultrapassar as muitas páginas e as águas infindas do oceano, como mais um tripulante do navio baleeiro Pequod na fantástica busca à enfurecida baleia branca, a história do excêntrico escriturário Bartleby me ocorreu às vistas. Deitado no sofá da sala, ali no 201 do bloco 61, no Conjunto dos Comerciários, numa tarde amena, li de um só pulso o impactante livreto que, segundo Jorge Luis Borges (meu escritor preferido), é uma das obras literárias mais relevantes da humanidade. Digo impactante porque, apesar de curto o enredo, foi após o findar da leitura que tive a noção perturbável de como um "não", enquanto resposta, pode ter seu sentido salvaguardado e justificado em nossa humanidade quando nos encontramos diante de certas situações convencionadas como corretas e básicas dentro das relações sociais. O conto é narrado por um velho advogado que trabalha no bairro nova iorquino de Wall Street. Com o aumento da demanda de trabalho dentro do estabelecimento, o advogado-narrador, tentando cumprir com o seu quinhão, percebe que os seus dois ajudantes oficiais, Nippers, Turkey, assim como o menino Ginger Nut não conseguiriam dar conta das novas empreitadas e, assim sendo, resolve contratar mais uma pessoa para acelerar as atividades. Depois de colocar anúncios nos jornais, Bartleby surge à porta destinado a ocupar a vaga de copista de documentos estritamente burocráticos:

"...palidamente limpo, tristemente respeitável, incuravelmente pobre!"

Conta-nos, o advogado-narrador, que nenhuma pessoa lhe causou tanta estranheza e lhe despertou tantos sentimentos como o jovem Bartleby. Desinformado quase que por completo a respeito do novo contratado, segue dizendo:

"Bartleby foi um daqueles seres sobre os quais nada é passível de confirmação".

Tudo estava indo bem, Bartleby aparentando ser um sujeito por demais responsável com os seus afazeres. É quando ocorre o primeiro susto. Requerido pelo chefe a conferir todo o trabalho que houvera feito, Bartleby calmamente responde:

"Prefiro não fazer".

Após o primeiro desordenamento provocado pela inesperada resposta do novato, uma série de alterações morais, psicológicas e de humor são desencadeadas nos personagens que compõem a trama.

"... havia algo em relação a Bartleby que não apenas me desarmava estranhamente, como, de um modo maravilhoso, tocava-me e desconcertava-me".

Num misto de piedade e inconformismo, o advogado-narrador começa a ser atingido de diversas formas pela personalidade obscura e misteriosa de Bartleby.

"Não são raros os casos em que um homem intimidado de uma maneira irracional e sem precedentes tenha suas crenças mais básicas abaladas".


"Nada irrita tanto uma pessoa séria quanto uma resistência passiva".

E Bartleby, numa resistência estóica a qualquer pedido, seguia desafiando "sem desafiar" - porque não era verbalmente ríspido, agindo sempre com o extremo da paciência - a ordem natural das coisas.

"Eu me sentia estranhamente disposto a provocar uma nova oposição de sua parte para arrancar alguma fagulha de raiva dele a que eu pudesse responder da mesma forma. Mas era o mesmo que tentar fazer fogo esfregando os nós dos dedos numa barra de sabão Windsor".

Certo dia, indo a um culto numa igreja próxima, o advogado resolveu passar antes no escritório. E, para a sua surpresa, lá encontra Bartleby. Detalhe: não era dia de expediente. Bartleby conseguira adentrar não só a alma e mexer com as faculdades mentais de todos os seus convivas, mas agora havia tomado de vez o espaço físico do lugar, o que causava ainda mais confusão no arranjo das reflexões inerentes a ele feitas pelo chefe.

"Porque eu considero castrado um homem que permite tranquilamente que seu funcionário lhe dê ordens e diga-lhe para retirar-se do seu próprio imóvel".

Mas, ao mesmo tempo:

"Não se podia pensar por um segundo sequer que Bartleby fosse uma pessoa imoral".

"Ao relembrar todas essas coisas e compará-las com o fato recém-descoberto de que ele fizera de meu escritório sua residência fixa e lar, e sem esquecer de seus caprichos mórbidos; ao relembrar isso tudo, um sentimento de prudência começou a tomar conta de mim.

"Eu poderia oferecer compaixão ao seu corpo, mas não era seu corpo que lhe doía; era sua alma que sofria, e a sua alma eu não conseguia alcançar".

Diante de tal dérbi, o chefe decide demiti-lo. Mas ouve a resposta:

"Prefiro não ir"

"Ele era mais um homem de preferências do que de conclusões".

Beirando a estafa, lutando contra sua própria cólera e já por demais entregue ao desconhecimento de alguma provável solução para o caso de seu funcionário, o advogado decide, ele próprio, distanciar-se de Bartleby.

"... um errante, que se recusa a sair do lugar?"

"Já que ele não vai me deixar, eu devo deixá-lo".

...

O final não cabe a mim contar, porque não é meu desejo tirar de você, leitor, o prazer da plena leitura. O certo é que quando me perguntam se eu já li a história de Bartleby, digo que sim e ainda complemento: foi lendo este livro que aprendi a muitas vezes dizer um "não" como resposta. O condensado "prefiro não" (no original: I would prefer not to) evoca um tempo reflexivo de que o ser humano está demasiado carente atualmente. Engendrado numa mecânica social sistemática, onde as relações humanas se dão através de valores baseados na eficácia de sua produção, ligados a uma forma desumana de vida, capitalista ao extremo, o simples gesto de não aceitar fazer o que é requerido acaba se transformando numa metafórica afronta à "entidade superior", detentora do poder. Sófocles, dramatrugo grego, já dissera certa vez: "Há algo de ameaçador num silêncio muito prolongado", e o silêncio de Bartleby, apesar de aparentar-se simples, funciona como o grito mais operante, o berro último contra o absurdo dos modos "normais" de se viver e de se relacionar, a reação mais pura diante de uma barbárie metamorfoseada em rotina, quase sempre camuflada e desconectada da verdadeira essência do ser humano. O livro é uma ode à rebeldia coletiva, partindo do princípio de que somente através de uma mobilização individual somos capazes de reverter os quadros de subalternidade, desrespeito e desassossego a que estamos diariamente sujeitos. Vale lembrar o contexto histórico ao qual o livro está unido, época de afirmação do modo de produção capitalista. Aí me recordo de um dia, numa aula no curso de jornalismo, quando um professor disse-me: "Germano, seu silêncio é mais perturbador que todo o barulho da sala". De chofre remontei Bartleby dentro de mim, com fixas peças de obstinação e verdade. Naquele dia me senti na pele daquele jovem escriturário de Wall Street, silencioso em sua revolta interna, explodindo como um vulcão ativo suas ânsias mais vorazes, perscrutando da vazia paisagem na janela o sentido mais íntimo destinado ao verbo "SER".