Por Germano Xavier
Notas sobre Abel, a mulher sem nome, Roos e Cecília.
Osman Lins é um exímio construtor de máscaras, pois mascarados são seus personagens no enredo mítico de sua obra-prima: o romance Avalovara. Mascarados não por não conterem em si “nenhum caráter”, como o ilustre Macunaíma, de Mário de Andrade, mas sim por serem elas (as personagens) entidades existentes primordialmente numa esfera de imaginação onírica que, por diversos momentos, sufoca a presença de uma anunciada realidade.
Osman Lins (1924-1978), pernambucano de Vitória de Santo Antão, literalmente põe as personagens sobre a palma da mão do leitor, como que almejando um fenômeno receptivo baseado em referencialidades mais espontâneas ou automáticas. Assim sendo, não basta a simples leitura, a mera decodificação dos códigos lingüísticos, o comum debruçar-se sobre a obra para a boa compreensão da trama. A atitude decisiva do leitor perante o texto é agora o que importa mais, pois o leitor tem diante das vistas um multilivro, um polilivro, cuja fabricação das compreensões vai se basear nos caminhos tomados por ele, sujeito que lê.
Com o leitor podendo compor histórias variadas e variáveis a partir de uma história central, as personagens em Avalovara também passam a agregar dentro de suas existencialidades o caráter de mutabilidade, moldando-se, sempre que requeridas, a partir das rotas desejadas pelo leitor. Essa foi uma fórmula encontrada por Osman Lins para lutar contra o fantasma do fim/esgotamento do gênero romance – idéia muito em voga nos anos 70, década em que Avalorava foi publicado, mais especificadamente em 1973.
Para ele, com a disponibilização escancarada do poder de co-agir e co-produzir a narrativa, tanto o leitor quanto o romance se fortificariam enquanto sujeito e gênero textual, respectivamente, e por conseguinte apagariam qualquer vestígio factual acerca da não-sobrevivência do romance dentro do vasto universo da literatura.
O início dessa revolução estrutural na obra do escritor pernambucano se dá com a publicação de Nove, novena, livro de narrativas curtas datado do ano de 1966. Inclusive, e para fortificar a preocupação diante do referido tema, a questão da estrutura romanesca, principalmente os elementos espaço-temporais, foi objeto de pesquisa durante toda a vida acadêmica do autor. Segundo a professora doutora Ermelinda Ferreira, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE):
“Sua insistência no estudo da estrutura, sobretudo a do espaço narrativo – tema de sua tese de doutorado – e sua exigência por um leitor participativo, presente em textos construídos como jogos verbais e visuais, vistas à luz das questões postas pelo avanço dos mais recentes meios de comunicação, adquirem aquela clareza a que ele tanto aspirava quando falava de sua obra”.
Comparável a
O Jogo da Amarelinha (Rayuela), obra labiríntica máxima do argentino Júlio Cortázar, Avalovara é, por assim dizer, um romance desprovido de seqüenciamento lógico, onde o espaço (O quadrado) bifurca-se no contato com o tempo (A espiral) num movimento de contágio temático que beira o assombroso. O espaço é a própria edificação das personagens, que habitam inatamente o território da racionalidade, figurada pelo quadrado, e que sem cerimônia transitam sobre o plano simbólico-metafórico-onírico de um local que é apenas simulação, mas perfeitamente existível, a espiral.
“Avalovara é uma obra virtual, se entendemos virtual como o oposto ao atual, e não ao real. Real sem ser atual e ideal sem ser abstrata, esta obra ditava, há três décadas, os preceitos de uma nova forma para a escrita e para a leitura, elaborando-se não como um romance de ficção científica, mas como uma ficção científica do próprio romance, como uma metáfora cibernética de um futuro possível para a literatura, projeção imaginária e idealizada de um suporte que viesse somar uma riqueza de possibilidades à palavra, potencializando-a e aos seus efeitos no mundo”, reforça Ermelinda.
Sobreposta ao quadrado da razão, a espiral mágico-mitológica do enredo elabora a passos vagarosos e milimetricamente pensados os fragmentos de uma moldura única. Cada fragmento constitui uma personagem que, por sua vez, representa a necessária estrutura para que o outro passe a existir, mesmo que este outro aparentemente apareça destituído de realismo. Realismo, no caso de Avalovara, não é nem de longe um dos objetivos que norteiam o leitmotiv da obra. É como se o irreal, visto aqui como uma opção de recurso literário, funcionasse a vapores plenos em matéria de complexidade formal e conteudística.
Toda personagem surge de uma aresta, de uma esquina onde uma lacuna possibilita uma entrada, mesmo sabendo que só há uma entrada para o mundo da razão, ou seja, para o quadrado, que é pela ponta da espiral, ou seja, a voz do narrador: caminho sem-razão. Sendo assim, todo personagem é um só, o espaço delimitado e percorrido pela espiral: o quadrado. A espiral representa o infinito, o quadrado simboliza o além-infinito. A espiral está dentro do quadrado, que apesar de ser o ad infinitum é um território demarcado, portanto finito em sua infinitude. As personagens escorregam pelo corpo imaginário da espiral e elaboram um trançado de ações que se movimentam para um centro aglutinador de energia, para uma espécie de olho de furacão.
De acordo com Ermelinda,
“Osman Lins acopla seus motivos clássicos, grande parte deles de influência medieval, traduzindo talvez um paradoxo que se percebe em toda a sua obra, tantas vezes verbalizado em seus textos de intervenção e de crítica: um misto de amor e de horror à tecnologia, à máquina, ao ruído contemporâneo, que o fazem desviar a atenção constantemente para a arte antiga. Este sentimento ambíguo de desejo e repúdio com relação à modernidade; este apreço confesso à história e ao ritual, ao lado da criação de procedimentos narrativos que aniquilam a linearidade e a seqüencialidade históricas, encontram tradução em Avalovara, na busca de ambientação na arte medieval (pintura, música e literatura), representada pelos volteios da espiral, posta “sobre” ou “dentro” de um arcabouço racional (o quadrado)”.
Abel, personae-narrador do livro, divide seu protagonismo com o amor de sua vida: uma personagem mulher sem nome, representada por um símbolo gráfico circular pontuado ao centro e com duas espécies de aspas na parte superior. A mulher que não possui nome é criação de Abel, portanto protagoniza o romance que Abel está escrevendo. Isso reforça a idéia de que Avalovara é, segundo o próprio Osman Lins, uma “alegoria da arte do romance”. Há um romance dentro de um romance, uma história dentro de outra, uma ficção no interior de uma ficção. A mulher sem nome na verdade não existe, ou existe para além dos muros da realidade que não é real, ou seja, a realidade do romance escrito por Abel.
Para Marisa Balthasar Soares, professora doutora da USP, Avalovara
“ficcionaliza sua própria elaboração”, onde
“é proposto um enredo em jogo palindrômico, que nada tem de gratuito, mas, pelo contrário, promove a possibilidade de ruptura com a linearidade do tempo narrativo. A mesma ruptura perseguida pelo personagem central Abel, um escritor marcado pela tensão entre a história imediata e um projeto literário de cunho universalizante, fundado no tempo mítico e para quem o passado não se cristaliza, mas se faz, como na utopia benjaminiana, a condição de transformação do presente”.
Abel a descreve como sendo ela filha de um ciborgue, simulacro de duas existências, mulher feita de metades e junções. Ao passo que a ama, Abel também a odeia, por saber que a única verdade da personagem amada é que ela não pertence ao mesmo plano existencial que o seu.
“É na experiência de amor e morte de Abel junto a três mulheres - que ambiguamente são personagens do romance, no mesmo grau de ficção em que está Abel e, simultaneamente, sugerem-se como personagens de segundo grau, isso é, criações dele - que surge a experiência do tempo único”, diz Marisa.
A mulher sem nome é fruto da imaginação de Abel. Abel, por sua vez, é fruto da imaginação de Osman Lins e a entidade que melhor representa o quadrado.
“Em um mesmo corpo reúnem-se o mecânico e o orgânico, a cultura e a natureza, o simulacro e o original, a ficção científica e a realidade social, exatamente o que encontramos no romance de Osman Lins”, afirma Ermelinda.
O corpo da personagem é um disco rígido, onde as memórias de Abel são armazenadas sem piedade. Tudo é depositado nela: dor, angústia, revelações, lembranças, alegrias, tristezas... Tudo amontoado numa caótica limpeza físico-espiritual da alma de Abel, por isso
“ela circula numa atmosfera algo imprecisa e nebulosa à qual não escapam percepções que hoje nos parecem frutos de uma visão premonitória de um novo suporte técnico para a ficção, intimamente relacionado com a estrutura do hipertexto”, reitera Ermelinda. Como escreve o próprio narrador, ele se serve a mulher como “uma imensa máquina que mói e derrama sobre seu corpo, triturados, os anais do universo, a gigantesca massa de eventos e processos não só do mundo visível, mas do imaginado e do inimaginável”.
A mulher sem nome é o amor em grau máximo para Abel, material significativo para explosões emotivo-racionais, o que lhe é causa para inúmeros destemperamentos e rumores de desconfiança. Mas não é só a relação com a personagem sem nome que é conflituosa e difícil. Com Roos – alemã, símbolo de um platonismo cru – os percursos que dão para o amor são tortuosos para Abel, muitas vezes nebulosos. Mesmo relacionada ao paradoxo do encontro desencontrado, Roos é o índice da compaixão. Roos é o percurso, a estrada que leva Abel para a vida. Roos é o próprio pássaro Avalovara, no qual Abel viaja por imensidões inestimáveis montado em seu dorso de penas imaginárias. Sem Roos, nem Cecília nem a mulher sem nome existiriam.
Já Cecília é o encontro, a certeza que se chega a algum lugar, mesmo que este lugar não tenha piso, parede, terra. Cecília é também o tempo, por isso é inesgotável e onipresente. Cecília está em Roos e na mulher inominada. Cecília está no plano do romance de Abel e no plano narrativo que Abel representa (O quadrado). Todas as mulheres são metafóricas, imitações de um desejo. São elas o próprio romance que Abel está escrevendo, ou seja, A viagem e o rio. Uma depende da outra para ser, uma acontece depois da outra e antes da outra.
Após a andança amorosa de Abel, que percorreu Pernambuco e Europa e por fim desemboca em São Paulo, ele encontra o percurso certeiro para o amor perfeito. Abel morre e assim todo o mosaico está completo. O bordado terminado. A catedral, com suas naves repletas de simbologias, erguida ao céu dos sentidos. Com Abel morto, a mulher sem nome, Roos e Cecília se libertam do quadrado. São agora somente a espiral. E tudo pode acontecer, só depende do leitor e de como ele fará a releitura, ou melhor, só depende de como e para onde ele seguirá, claro, preso às asas do pássaro mítico de Osman Lins.