sábado, 30 de maio de 2015

Entre Mares e Marés: Conversas Epistolares (Parte III)

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Querido amigo,

Gosto de receber as tuas cartas, digeri-las e pensar nas coisas insólitas que contas, responder sem a pressão do diálogo. Esta nossa conversa permite uma doce preguiça pelo meio e as respostas já incluem outras tantas perguntas.

Então, deixa-me contar-te a minha realidade, não aquela que é factual, mas a que recordo (julgo que era assim que García Márquez entendia a vida, e é uma ideia que faz sentido para mim).

Primeiro: Os Kassav, essa banda fulgurante das Antilhas francesas, que popularizou o ritmo Zouk. O Zouk para mim tem cheiro de adolescência, perdi e ganhei noites inteiras em França a dançar esse ritmo, que ecoa como os batimentos cardíacos. O passo é fácil, é uma cadência a dois tempos, perna esquerda, perna direita, um leve rebolar e o resto é deixar fluir. (Ainda bem que nenhum músico ou bailarino lê as nossas cartas, caso contrário estava perdida com esta descrição tão básica!). Mas enfim, o Zouk, cantado em crioulo das Antilhas (de base francesa), como te disse, é um dos meus ritmos de eleição para dançar. Encontrar essa banda 30 anos depois em Lisboa, tem um gosto especial para mim. Não sou de ir a concertos, dispenso aquela energia brutal que se gera entre as pessoas, o som por vezes demasiado alto, as longas filas de pé, para além dos preços proibitivos. Mas aqui abri uma exceção e atrevi-me. Revi aqueles músicos, hoje já meninos e meninas de mais de 70, mas com o mesmo vigor na voz e nas pernas. A música deve ser mesmo o elixir da eterna juventude! Descadeirei-me toda, arrastando a família comigo, ou, como diz a querida amiga Cristina, “esbaldeirei-me” toda. (Mas creio que ainda assim mantive alguma classe, espero ter conseguido pelo menos parecê-lo…).

E sobre o amor pela distância, a descoberta do “outro”, falo-te na língua que estou a aprender: o crioulo cabo-verdiano. Às tantas já o tinhas intuído, sei que as tuas anteninhas captam tudo. Eu conhecia já a língua informalmente, que alguns, há décadas atrás, chamavam dialeto. Diz-me tu, que és especialista, qual a diferença entre um e outro, pois eu tenho uma noção pouco fundamentada. Em todo o caso estou a aprender essa língua, cheia de sabor e de história, olhando sobretudo para duas das principais variantes. Mas o processo não é simples (a aprendizagem), pois apesar de ter uma base lexical portuguesa, a sintaxe tem uma filosofia bem distinta. Verbos que não se declinam, regras de plurais e de marcação de género diferentes, toda uma estrutura que nos é estranha. Não se pode aprender esta língua, nem outra, sem se perceber um pouco da cultura dos falantes. São coisas indissociáveis. A noção do tempo e do espaço são diferentes – e isso reflete-se nos demonstrativos e nos tempos verbais. É uma língua com economia de recursos, nascida da necessidade de comunicação entre escravos e escravocratas e portanto iminentemente prática. No entanto possui um lirismo intrínseco e uma inesperada subtileza, que faz com que tenha uma poesia riquíssima; e disso são exemplo os vários autores que desde tempos remotos optaram por produzir poesia em cabo-verdiano, e as letras das mornas, que muitos dizem ter alguma influência do fado, mas com matizes tropicais e dançável.

Há uma história engraçada que um amigo contou. Ele, que também aprendeu a língua como nós, quis uma vez usar uma expressão muito da terra, viajando num híbrido entre autocarro e táxi (também os há em Angola e lá chamamos-lhes “candongueiros”). São carrinhas tipo Hiace que às vezes param onde o cliente pede…então o amigo pediu de repente para parar “ali mesmo”, usando a frase “pára li-simsim”, mas o motorista respondeu-lhe com um berro dizendo que ali não podia parar. O que prova que dominar a língua nem sempre é suficiente para comunicar. O meu amigo ficou frustrado por ter usado tão bem uma expressão recém-aprendida, porém sem resultados práticos!

Então, acho que agora percebes porque este país e estas gentes me estão a apaixonar. É um povo lusófono, como nós, mas com fortes influências da francofonia pela situação geográfica do arquipélago. Ainda ontem, numa festa de Cabo Verde, em que se inaugurou uma exposição sobre a morna, que é candidata a património imaterial da humanidade, alguém me perguntou de que ilha eu era. Achei lindo, porque, na verdade, todos nós vivemos um pouco numa ilha, não é? Nessa mesma festa, com cachupa saborosa e muita música, vi uma senhora madura, um pouco mais do que eu, até, dançar como uma possuída, sexy e solta, junto a um virtuoso da guitarra, dando-lhe todos os motivos e mais alguns para que ele protagonizasse um solo inesquecível só para ela. Ele fê-lo com naturalidade, mas eu assisti àquela cena encantada, e, confesso, um tanto surpresa. Percebi que a sensualidade não tem idade, a pessoa é sensual enquanto tiver prazer por viver. E só.

Mas, Viana, deixa-me responder-te antes que me perca em divagações, tu conheces-me, eu voo longe e alto e depois nem sempre encontro o caminho de volta. 

Aqui tens o endereço das nuvens, se é que as nuvens têm morada (Cloud Appreciation Society): https://cloudappreciationsociety.org/ (se não encontrares é porque as nuvens se foram daí com uma golpada de vento!). Abres o site encontras esta frase inspiradora: CLOUD LOVERS, UNITE! Bela mensagem de boas-vindas, não achas?

Quanto à tua ideia da Igreja Literária de Todos os Dias, acho-a uma das utopias mais bonitas jamais sonhadas. Acrescenta aí Cortázar, Erico Veríssimo, Jorge Amado, Pepetela, Sepúlveda, Camus… arranjaremos funções para todos, para os que cá estão e para os que já se foram mas nos deixaram a palavra escrita. Como dizes, brincando, e brincando eu também, a literatura realmente não leva a lugar nenhum: só mesmo ao insondável caminho da nossa alma, através das viagens alheias e outras formas de perceber sentimentos, lugares e vivências que desconhecíamos. Leva-nos a Macondo, leva-nos à América Latina, à África, ao interior da Bahia, à Europa entre guerras e ao coração da América. Leva-nos a atravessar tempos recriados pela ficção e ancorados na História. Tirando isso, não leva mesmo a lugar nenhum, mas para nós que amamos as histórias, essa é uma viagem que não dispensamos, até fim do mundo e ao princípio dos tempos.

Falando de estereótipos, e de como somos fantasiados pelos outros, é um tema engraçado e inesgotável, sim. Antes dizia-se que Portugal era o país de futebol, Fátima e fado. Não tenho nada contra nenhum dos três mas é claro que essa visão incomoda. Coletivamente continuamos a estar muito associados a isso, pessoalmente tenho outras preferências. E o Brasil, para nós, era um pouco a imagem do samba, do futebol e também o país das telenovelas. Uma visão igualmente asfixiante, sabemos que não é assim, que os brasileiros têm a capacidade de indignar-se e de reclamar os seus direitos, de ter um papel social relevante e interventivo, como nós, aqui em Portugal. Nem sempre os resultados são imediatos mas enfiar a cabeça na areia não é solução. Talvez o modelo de greves e manifestações constantes esteja um pouco esgotado. Talvez tenhamos que encontrar outras formas de pressão e de cidadania, o que não é de todo fácil. Ainda sobre o Brasil, associo também o teu país à literatura, música e gastronomia de exceção. A uma grande criatividade e dinamismo cultural, a espontaneidade e um certo positivismo. Sei que são igualmente estereótipos, baseados nas minhas experiências. E depois, não se pode generalizar e reduzir um povo dessa dimensão a três ou quatro ideias feitas. 

Nós, em Portugal, somos também um país de poetas, como se diz. E de gente amigável e acolhedora, um país de céu azul imenso e com uma luz única. Contudo, com uma certa tendência para a saudade, uma coisa que corrói os ossos e tolhe os movimentos, mas também que impregna o fado dessa beleza que lhe dá um brilho único.

Agora deixa-me dizer-te que eu quero conhecer o trabalho dessa menina, a jornalista paraíbana. Quero ver o céu pelos olhos dela. Lembro-me de algo meio estúpido mas relacionado com nuvens também: quando o Clinton esteve cá em Portugal, há anos atrás, dizia-se que ele também adorava olhar o céu, azul, límpido e que se esquecia de olhar para o chão, onde os cocós de cão o fizeram escorregar mais do que uma vez. Não fora a rápida ação dos guarda-costas, teríamos tido provavelmente alguns constrangimentos diplomáticos…

Ah, Viana, aquilo de “encostar à berma”, é só estacionar mesmo juntinho ao passeio ou à berma da estrada, para não atrapalhar o trânsito. Vês? É como diz uma amiga angolana: tudo nos une, exceto a língua!

Uma menina dizia-me ontem que “isto das cartas” é vintage, é retro. Escaqueirei-me (isso existe?) de tanto rir. Eu disse: menina, eu não sou vintage, nem retro, sou só uma pessoa normal que transporta as suas vivências, e não comecei a viver hoje, mas há 50 anos atrás. Tive gira-discos, usei calças à boca-de-sino e penteados foleiros, camisas com chumaços nos ombros, nos anos 80, fui fã do Georges Michael, do Lionel Ritchie e do Michael Jackson, da Sade Adu e da Basia, que continuo a adorar. Isso é ser vintage? Acabámos as duas numa enorme gargalhada.

Agora eu vou, mas eu volto.

E fico com essa alegria imensa da espera.

Um beijo,
Clara.

Lisboa, 24 de maio de 2015


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Estimada Clara,

Para tudo um tempo é necessário. Sabemos. Tempo para o sim e tempo para o não, tempo para o certo e o errado, tempo para a criação e o descanso, tempo para refazer o próprio tempo, repensá-lo, para redistribui-lo, reafirmá-lo em nós e nos outros, tempo para o inverno que faz agora nascer de verdade nas terras de meu sertão, aqui no país de Luiz Gonzaga – pai musical das mitologias sertanejo-nordestinas -, de chuvas grossas e rápidas, de molhar pouco o solo, de gerar nos corações uma esperança de para-sempres. 

Por falar nisto, Clara, você sabia que algumas das maiores tradições do nordeste brasileiro, até os dias de hoje, vivenciadas principalmente no período do São João, possuem em sua maioria raízes aí em Portugal? Parece óbvio isto, mas não me custa nada a elaboração desta perguntinha tão básica. Quanta boniteza possuem as quadrilhas, os maracatus, o forró, os festejos de máscara...

Você me fala em referências musicais no ligar os dias de sua adolescência, e eu termino por entrar em minhas memórias mais ancestrais, Clara... Liguei o computador e fiz buscas sobre o Zouk e... mesmo!, como é dançante! Pulsos em acordes. Em casa na cidade baiana de Iraquara, quando pequeno, era parca a incidência musical no lar. Eu que vivia fuçando o pouco material de que dispúnhamos. Meu pai tinha uma pequena coleção de vinis, mas nada muito significante. No mais das capas, viam-se as dedicatórias em direção à Irlan, minha mãe. Portanto, já imaginas... eram discos de músicos românticos, cantores dos mais variados tipos de amor, se assim posso lhe dizer, comprados mais para o sentido do presentar que realmente para o sentido pleno do deslumbre musical. Todavia, no meio de todos aqueles exemplares de LPs, havia os de Luiz Gonzaga. Eram muitos. Meu pai, pernambucano que é, nunca deixou de expressar seu gosto para com a música deste incrível cantador brasileiro, que carregou todas as marcas de um povo em sua voz de baião, e de Rei! Já ouviu falar no “véi Lua”, filho de Seu Januário da sanfona de oito baixos?

A sua descrição acerca do Zouk foi bastante legítima e me fez contemplá-lo mentalmente de uma forma muito bonita, a ponto de senti-lo em inteirezas de espírito. Prometo que vou continuar a escutá-lo, sempre que puder usufruir de um tempinho para os ouvidos de arte. Enfim, como eu ia lhe dizendo, a música só me chegou com mais força lá para os meus 14 ou 15 anos, quando comecei a valorizar mais esta expressão artística. Foi quando passei a escutar bandas formadoras de meus passos como Legião Urbana, Titãs, The Beatles, Paralamas do Sucesso, assim como nomes do naipe de Bob Marley etc, só para citar alguns. A região onde nasci, a Chapada Diamantina, centro geodésico da Bahia, por ser ponto turístico mundial devido aos seus incontáveis mananciais naturais, sempre convidou a homens e mulheres ligados ao viver da-e-para a natureza, e o Reggae sempre esteve presente como um ritmo muito vivo por lá. O entendimento acerca de tal relação é mais que evidente para nós, não?

Lindo é saber que estás a se cabo-verdear na alma, Clara! Riqueza inconteste será a de se suspeitar sabedora de uma nova ferramenta de imersão numa toda-humanidade diversa, línguas que nos abrem mais para os mundos do mundo. Imagino daqui quantas coisas novas você está a descobrir! Sobre a sua questão, querida, e numa abordagem um tanto que geral, também, pensemos os dialetos como as “línguas” de uma língua-mor, isto é, as variantes de uma língua, que se legitimam através de estruturas político-ideológicas, socioculturais e além. O dialeto não tem status de constructo linguístico principal, sendo, portanto, um modelo de uso de língua que determina certa porção de usuários da língua, com seus apropriados recursos e processos linguísticos, mas nunca se desvincilhando de um modelo de língua maior, a língua oficial em si. Se hoje, no caso citado por você, já não mais a consideram como a um dialeto, creio que deva ser pelo fato de o crioulo cabo-verdiano ter conquistado espaço entre os falantes/usuários da língua e se tornado, em alguma esfera do tempo, a base da comunicação deste país/povo. Teria isto acontecido em Cabo Verde, Clara? Pelo pouco que sei destas longas terras daí, a tendência é a de este pensar nos ser plausível. Se não, deveremos pensar esta troca de nomenclaturas sob outro ângulo, num averiguar mais amplo e minimalista.

Seu amigo, o que lhe contou a situação embaraçosa, é prova viva de que a língua é uma unidade dinâmica, nunca estanque, que serpenteia por toda a sua existência tal qual um réptil a trocar de pele. E como é perfeito este ajustar-se eterno em base das novas demandas e funções sociais e de referências dos segmentos linguísticos frente ao caminhar da humanidade! A gente poderia ficar aqui citando situações semelhantes por páginas e mais páginas e jamais nos perceberíamos perto do esgotamento das ideias afins.

Sabe, Clara, eu sempre achei que pessoas não são feitas de idades. Como distinguir um velho de um jovem? Pelo corpo mais ou menos rijo, apenas? E as nossas tantas outras características humano-espirituais, não valem? E as mulheres, então, são tão mais fortes que nós, homens, que não combinam mesmo com este sistema de datação que nos empregaram à força não sei de quê. Mulheres são dançarinas, flutuam, jamais envelhecem. Mulheres são árvores imortais, balouçam ao sabor dos ventos, dão frutos até em épocas impróprias, verdejam a Terra, cobrem os recantos de amor. Infeliz a mulher que pensa no envelhecer assim, desta forma tão-sem, sem saber que no fundo seus olhos serão e são os mesmos de quando inocente criança. Tenho flashes memorias de pessoas que me espetacularizaram em algum momento através de dançares de vida nestes bailes de dias vividos nos até-aqui por mim. Pessoas até bem próximas, sim. Fico bestificado também, observando, energizando o instante de poesia.

E vamos apreciar nuvens! Obrigado pelos endereçamentos de contemplação, Clara!

Eu sou um homem que não aprendeu, ainda, a enxergar facilmente a beleza na alegria dispersa, Clara. Prefiro mil vezes um silêncio adornado entre névoas, um instante de paz febril no cobertor das ânsias negras, um momento de me perder entre penumbras, uma melancolia tinhosa, um apelo ao nostálgico símbolo das eras passadas, uma palavra velha bem dita por uma boca de amor com tons de carvalho. Certeza a de que eu amaria Portugal com todas as minhas forças. Eu aprecio muito os lugares carregados de abismo, assim como pessoas dotadas de precipícios. Outros países que gostaria de conhecer: Irlanda e Itália. Tenho para mim que um dia, sim. Afinal, eu ando construindo minha jangada de pescador desde que me sei por gente. Ir é só uma questão de fechar os olhos e fixar pés no chão.

Enfim, sobre suas pontuações, eu concordo piamente. Estereótipos são estéreis, infertilizam o real solo das implicaturas. Cada país é um universo, cada povo um exército de grandezas e feitos, cada região um mar de farturas e fraturas, cada atmosfera um ar para ser respirado com verdade. Portugal, para mim, é acima de tudo curiosidade. Ah, e a língua, heim, como pode ser de afastamentos! Dor dolorida, mas! Em caso nosso, particular, só de aproximações, para nossa graça!

No mais, Clara, é tum-tum mesmo, de coração. Hoje, aqui, na Caruaru de Nelson Barbalho, inicia-se um período de 30 dias de festas em devoção a São João. Muitos shows, mostras, vivências, tudo com gosto de quentão, licor, amendoim cozido e milho assado na fogueira. Escuto-vejo fogos de toda cor brilhando no céu citadino neste exato momento. Dizem que é o MAIOR SÃO JOÃO DO MUNDO! Eu até acredito, tamanha a dimensão dos pipocos celestiais. A cantora Elba Ramalho dará o tom da noite. Eu não vou para a abertura. Resolvi escrever esta cartinha para você.

Com um abraço, selo o produto da vez.
Até!

Terra de Caruaru, Pernambuco de Gilberto Freyre, Brasil, 30 de maio de 2015.

__________________

Clara e Viana são dois amigos de longa data que se redescobrem e desenham o mundo à sua volta pelas palavras que encontram, que constroem e que usam para pintá-lo. (De longa data em face da finitude da vida, recentes diante da imensidão da eternidade). Mas, que importa isso? Eles propõem-se descobrir dois universos complementares, sem artifícios nem maquilhagem, para além das máscaras habituais, as que protegem o ser humano da solidão e das agressões.

Clara e Viana são dois heterónimos, duas personagens que ganham vida através do tempo, do ritmo da palavra e do sabor dos respectivos sotaques.

Luísa Fresta e Germano Xavier dão vida a este projecto.
* Imagens de Cristina Seixas.

quinta-feira, 21 de maio de 2015

Verossimilhança ou um lugar para a ficção

*
Por Germano Xavier


“Somos um planeta cego à deriva do cosmo,
A nave de nosso coração não aterrissa
Onde pulsa o frêmito da ternura.
Somos um sistema feito para isolar
Isolar isolar tudo quanto for de órbita de sonho
Isolar tudo quanto for galáxia de esperança.”
(Caio Junqueira Maciel)

O que é ficção? A pergunta é pertinente, pois, como podemos perceber ao menor esforço dado nesta direção, há múltiplos usos cabíveis para o termo, o que implica também na existência de vários significados para tal palavra. O que representa a ficção pode ser para um e pode não ser para outro. Um determinado sujeito, a depender de onde esteja ou tenha nascido, pode interpretar como sendo ficção um material que para outro, de origem diversa, não tem o mesmo entendimento. Esta é a pergunta que embasa e embala o livro de Ivete Lara Camargos Walty, da Coleção Primeiros Passos/Editora Brasiliense – li a segunda edição, de 1986.

A intenção aqui, talvez, não seja a de falar sobre ficção tal qual ela é pensada e/ou requerida nos circuitos ditos mais científicos, apesar de eu querer falar disso também. Gostaria, ainda mais, de abrir as portas da literatura para o fator verossimilhança. Falaremos sobre isto, debruçando-nos nas páginas do livro SOL E NÉVOA, da escritora Letícia Palmeira. 

A recente publicação impressa da escritora paraibana, paulista por natureza - ou vice-versa – e dona de já outros três livros, a de agora gestada pela Editora Penalux em 2015, encaixa-se no gênero romance. Num todo-olhar sobre a obra, percebemos de pronto não se tratar de um livro com grandes preocupações estilísticas ou com tendência à classificação de prima produção. Sem desmerecê-la, sob pena de eu estar sendo injusto para com a bonita simplicidade das linhas impressas, SOL E NÉVOA chama mais a atenção pela clareza entregue ao enredo do que qualquer outro aspecto. A narrativa é absolutamente honesta, isto é, há uma história que se desenlaça ao crepitar das folhas, ou seja, algo está sendo contado, uma história está contida ali, no corpo textual. 

Apesar de toda a clareza depreendida na obra, a autora não esclarece se o que se conta é realidade da ficção ou se é ficção da realidade. Daí a relevância em se transferir poder à verossimilhança. O que à primeira vista pode parecer intuitivamente verdadeiro e inato às palavras de quem diz - a escritora como produtora da voz primordial -, isto é, uma aparente realidade ou verdade provável, pode ser apenas mais um traço de se perder no jogo dos acontecimentos ali difundidos. 

O jogo labiríntico da trama em SOL E NÉVOA se dá entre as personagens Lívia e Bernardo. Todavia, como preza o constructo romanesco, outras personagens se inserem no engendrado dos cenários e oferece ao leitor uma curvatura de leitura razoavelmente complexa, bem tecida e de fluente versar. Fato é que entre a imagem e a ideia do que se lê na obra há um poço de mistério – um tanto que mensurável -, mas que encanta facilmente as lentes do leitor e que o impulsiona na sequência de seu ato de ler.

Abraçando a perspectiva de Platão acerca de suas interpretações de mundo, SOL E NÉVOA talvez se deixe pertencer não ao âmbito de um modelo (reino das ideias) nem à instância da cópia (o mundo em que vivemos), mas antes se encaixaria na ideia de simulacro (a cópia da cópia), uma porção de vida retratada, fotografada, sem a dimensão da realidade inata ou pura. E por ser, a estória, apenas uma representação de uma estória/história, logo se assombreia e se acinzenta, nublando-se em si mesma, o que num olhar deleuziano chamar-se-ia de reversão do platonismo. Outra vez, a verossimilhança brigando com a natureza daquilo que é ou não ficcional.

A impressão de verdade provocada no leitor é, pois, um ponto alto em SOL E NÉVOA, tamanho o alcance do conteúdo. Amor, distância, aproximações, família, doença, rumos, destinos: são estas as temáticas do primeiro texto de maior fôlego de Palmeira. Desvinculando o leitor das nuanças do princípio da realidade, a narrativa mergulha nos meandros do princípio do prazer, oferecendo-nos um sabor de criação com laboração minimamente esmerada.

Podendo ser, nos dizeres de Walty, saída ou entrada de libertação, denúncia ou meramente reduplicação do real instaurado, a ficção em SOL E NÉVOA resguarda uma atmosfera brandamente nublada, atraindo para si ingredientes já tradicionais ligados aos respeitáveis acontecimentos literários. Se se produziu um pequeno novo mito, ao que concerne o entendimento da criação por excelência, o livro mereceu ganhar forma. Caso não tenha tal valor, o que se dizer quando entre tantos crimes semelhantes? O leitor, certamente, saberá sagrar ou negar o destino de aurora – ou de limbo - do romance em questão.
 


 Capa de SOL E NÉVOA, de Letícia Palmeira.

* Imagem:  http://www.deviantart.com/art/Enquanto-aquece-o-cha-49478669

quarta-feira, 20 de maio de 2015

Olhares retóricos e sociológicos de gênero

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Por Germano Xavier


BAWARSHI, A.; REIFF, M. J. Gênero: história, teoria, pesquisa, ensino. São Paulo: Parábola, 2013. 285p.


O capítulo 5 do livro Gênero: história, teoria, pesquisa, ensino esboça com clareza a magnitude e importância do todo da obra protagonizada pelos professores e especialistas em linguagem Anis Bawarshi e Mary Jo Reiff, que assinam a autoria do supracitado livro publicado no Brasil em 2013, porém já lançado nos Estados Unidos desde o ano de 2010. A edição nacional foi realizada pela editora Parábola, com tradução realizada por Benedito Gomes Bezerra, docente da Universidade de Pernambuco (UPE). 

No referido capítulo, Bawarshi e Reiff traçam, em conjunto, uma grade comparativa entre as visões acerca de gênero praticadas pelas abordagens linguísticas (ESP) e retóricas (ERG). Apesar de divergirem em muitos aspectos, os autores destacam que tanto a ESP quanto a ERG partilham de algumas perspectivas semelhantes, como por exemplo o fato de reconhecerem que os gêneros não se dissociam do fator situação, sendo também partícipes da ideia de reconhecimento do gênero a partir das dimensões sociais, partindo da ênfase dada ao destinatário, passando pelo foco nos elementos contextuais e terminando pelo destaque empregado à ocasião. Indica-se, deste modo, que as maiores discrepâncias estariam no âmbito do enfoque e, também, nas trajetórias pedagógicas e de base analítica que são empregadas por cada uma das abordagens.

Elucidado o confronto dado entre a English for Specific Purposes - ESP, que enxerga o gênero como formas de ação comunicativa, e a ERG, que o define como sendo formas de ação social, o excerto aqui analisado segue no propósito de comparação esmiuçada acerca das duas propostas de investigação. 

Dentro de uma construção panorâmica de base histórica do elemento gênero, os autores, influenciados por grandes nomes da pesquisa linguístico-cultural, a citar Charles Bazerman e Carolyn R. Miller, produzem uma descrição apurada ao que concerne as questões mais relevantes das inúmeras pesquisas que influenciaram grande parte dos estudiosos da matéria até a produção de uma nova conceituação de gênero.

Diante de tal escaramuça científica, percebe-se que em ESP o propósito comunicativo é o elemento gerador do gênero e o movimento de análise parte do contexto para o texto. Este propósito comunicativo, ao auxiliar o processo criativo dos membros da comunidade discursiva, molda-se a si mesmo a partir da interação com os gêneros. 

Já nos Estudos Retóricos de Gênero (ERG), o eixo de concentração implica na maneira como os gêneros aperfeiçoam e otimizam nos usuários da língua ações com desenvolturas sociais. Neste complexo ideário, o contexto é um motor de desempenhos impulsionado pelos gêneros e por outros instrumentos existentes nas esferas da cultura. Diferentemente de ESP, moldam-se, então, realidades sociais a partir de situações de ação social envolvendo os gêneros, de modo que tudo parece se iniciar e se findar nos arcabouços do contexto.

Cabe ressaltar que em ERG o pensamento de que gênero faz parte de um sistema psicossocial, demasiadamente defendido por Bazerman, coloca-o numa esfera de maior amplitude quando comparado ao prisma observado em ESP. Não sendo apenas formas, os gêneros alcançam as individualidades humanas, sem deixar de obter assim uma congruência social de relevante valor para as discussões até então instauradas. Daí a ideia de que o gênero é mais bem definido se investigado a partir de suas funcionalidades sociais e não com base apenas em sua estruturação formal. 

Em ERG, gêneros são compreendidos como elaborações conceituais sociológicas. O gênero é o formador, no sentido de molde, de lugares sociais que são utilizados para se atingir outros lugares sociais comuns, mas ainda não explorados por uma respectiva coletividade.

Se for mesmo um poderoso artefato de e para elaborações psicossociais, deve-se entender o elemento gênero tal qual uma corrente infindável produtora e norteadora de dinamicidade histórico-social, constitutiva de um itinerário ideológico-performativo completamente aberto às profusões situacionais/e de ocasião percebidas e fomentadas no cotidiano das pessoas em sociedade, tendo como ponto-basal as suas necessidades e demandas. 

Após uma consistente navegação pelo capítulo em questão, com direito a um passeio pelas duas mais importantes perspectivas teórico-metodológicas em voga no âmbito dos estudos em gênero, Bawarshi e Reiff salientam que a visão da ESP e ERG, enquanto modos e formas complementares de análise e de pesquisa, representaram um grosso e endossado passo para que os gêneros começassem a ser percebidos como ingredientes salutares no que diz respeito à imbrincada sistematização das ações humanas, haja vista que o gênero passou a ser visto tal qual o é, ou seja, como parte constituinte dos fenômenos da linguagem e da comunicação da natureza dos homens e usuários da língua

Bawarshi e Reiff não se esquecem de recordar, ainda, as contribuições de Bitzer e Black quanto ao presente poderio das operações de situação frente ao produto das interações, como não se permitem olvidar também das percepções influentes de Jamieson e Campbell. 

Em subtítulo especial, os autores indicam a participação da Fenomenologia de Husserl e de Heidegger no magma-pensamental das problemáticas que circundam o gênero. Nota-se aqui, como preconiza o dasein heideggeriano, uma formulação de gênero banhada na simbologia do ser-aí/ser-com/ser-no-mundo, intuindo ao gênero uma consciente ciência de si jamais autossuficiente ou liberada das influências impressas e sedimentadas pelos meios que o cercam. 

Visto assim, ontologicamente, o gênero é ainda mais acobertado pela ideia de participação social e não de estrutura cimentada, impassível, impermeável e estanque, dotada apenas de uma forma e/ou estrutura. Gênero, sob tal marcador analítico, ganha ares de agente detector de intencionalidades – e quem não se lembra das investidas de Grice diante dos movimentos de enunciação, do enunciado e do significado? 

O interacionismo sociodiscursivo que avançou pelas pesquisas envolvendo o estudo de gênero no Brasil reflete, pois, a preocupação atual em se aderir a um conceito mais abrangente e menos engessado dos termos e símbolos discutidos aqui, baseando-se para isso na complexidade inata que une texto e contexto, homem e mundo, além de comunicação e linguagem. E para que tais debates se tornem ainda mais aclarados em território tupiniquim, o livro de Bawarshi e Reiff ganha importância indiscutível no rol das leituras fundamentais acerca das propostas e temáticas de gênero.


segunda-feira, 18 de maio de 2015

Poemas de Germano Xavier em Francês (Parte XV)

*
Por Germano Xavier

"tradução livre"


Quarta-feira, 15/04/15
O começo de outro lugar


Le début de l’ailleurs

Le début d’un autre endroit
naît de la foi dans le mystère
dans le drapeau qui voyage
parmi les courbes de la route

le début d’un autre endroit
retrait comme une armée
à l’aurore, les pieds brûlants
dans le cœur-guitare des adieux

le début d’un autre endroit
disparaît dans l’existence du néant
se remet au silence mûri
à la poussière qui annonce les jours


* Imagem:  http://www.deviantart.com/art/en-silencio-62024969

domingo, 17 de maio de 2015

Apontamentos sobre processos fonológicos

*
Por Germano Xavier


No último capítulo do livro FONÉTICA E FONOLOGIA DO PORTUGUÊS BRASILEIRO, as autoras Izabel Christine Seara, Vanessa Gonzaga Nunes e Cristiane Lazzarotto-Volcão destacam os processos fonológicos referentes ao Português Brasileiro e acentuam determinadas regras de formalização de tais constituintes. 

As autoras nos lembram da mobilidade mutacional e dinamicidade características à língua, apontando o olhar para a facilidade que a língua tem de suprimir de uma vez por todas termos há tempos em desuso dentro do espectro de usufruto das sociedades, da mesma forma que facilmente engloba em seu corpus novas expressões e palavras oriundas de demandas também novas ou renovadas. 

Em nível fônico, tais mudanças na língua podem ser investigadas apelando para os prismas da sincronia e da diacronia. De acordo com as autoras, apesar de serem dois olhares com perspectivas diferenciadas para com o desenvolvimento da língua, há uma certa relação entre os dois fenômenos. Os processos fonológicos seriam classificados, assim, em função destas duas óticas.

Seguindo este raciocínio, as autoras destacam a influência do pensamento de Chomsky e seu modelo gerativista de pensar a língua. Para este autor, os estudos fonológicos devem possuir o poder de prever as possíveis regras utilizadas pelos falantes da língua. 

Com relação aos processos fonológicos da língua, isto é, às mudanças de ordem sonora em formas básicas de morfemas quando estes estão na ação de construção das palavras, percebe-se a preocupação das autoras em destacar que neste âmbito de investigação qualquer conjunto de regras tem ligadas suas estruturas lexicais às suas respectivas estruturas fonológicas.

Assim posto, as autoras situam os processos fonológicos em 4 categorias. Vejamos:

1) Assimilação: quando um segmento assume os traços de distinção de um segmento contíguo;

2) Estruturação Silábica: alteração nos constituintes das sílabas;

3) Enfraquecimento e Reforço: quando há modificação nos segmentos a partir de suas posições nas palavras;

4) Neutralização: quando a fusão dos segmentos envolvidos se dá em ambientações específicas.

De acordo com as autoras, as perguntas mais precisas e relevantes a serem feitas quando da modificação de segmentos, são: a) que segmentos foram modificados?; b) que modificações sofreram?; c) sob que condições se modificaram? Destarte, faz-se preciso compreender que uma regra de ordem fonológica se dá de acordo com a anunciação condicional sob a qual ocorrem os processos fonológicos. As regras fonológicas são apresentadas em ordem binária, sob a simbologia A – B/C___D. 

No interior destes processos todos, as autoras também destacam os fenômenos indicativos de palatização (quando um segmento adquire articulação secundária africada), labialização (quando uma articulação secundária de arredondamento é acrescida a uma articulação primária), inserção ou epêntese (quando há o acréscimo de um segmento à forma basal de um morfema), harmonia vocálica (tipo de assimilação que torna as vogais mais semelhantes entre si) e o sandi (transformação de estruturas silábicas causada pela queda das vogais).



BIBLIOGRAFIA

SEARA, Izabel et al. Fonética e Fonologia do Português Brasileiro. UFSC. 2011. Disponível em http://goo.gl/tQy90q. Acesso em 17 de maio de 2015.


* Imagem:  http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-44502005000100004&script=sci_arttext

sábado, 16 de maio de 2015

Entre Mares e Marés: Conversas Epistolares (Parte II)

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Viana, que bom receber a tua carta!

Supera mesmo o prazer de esperá-la (que já é incomensurável!); eu sou talvez da última da geração de pessoas que escreviam cartas e postais (na adolescência); era bom esperar uma carta por um amigo comum, quando os correios funcionavam mal ou eram completamente inoperantes, folhear o papel fino às riscas, ler nas entrelinhas, nas dobras do papel, nas rasuras e nas hesitações, mais do que o próprio conteúdo. Depois guardá-las, relê-las …e por fim rasgá-las, décadas mais tarde, quando nelas se esgotava a vida. Mas o nosso padrão de vida actual, o imediatismo dos prazeres e a urgência da comunicação, quantas vezes vazia de sentido, não se compadece com esses compassos de espera. Por isso me alegro tanto por estarmos a recuperar esse costume que parece rebeldia nos dias de hoje… 

Falando de ti, do que me dizes: gosto da definição de ficção e de criação da Ivete Walty. Somos criadores sim, dos nossos momentos, modelos e da nossa perspectiva. Autores da nossa maior criação, que é a nossa vida. “Nem só a realidade existe”, como dizes; (outro amigo poeta dizia-me ontem que “os sonhos são quase tudo o que temos”) – e eu tendo, sinceramente, a partilhar essa visão. Sem o tempo da alegria e do amor, da espontaneidade, seremos só pequenos robôs que se contentam em ser eficazes, eficientes e a sobreviver numa óptica materialista e funcional, despida de intenções e de subtileza. Diria que “estamos”, mas não “somos”…

(Evandro ainda nos vai surpreender um dia entrando de rompante pelas nossas cartas com a sua verdade, mostrando-nos em que frágeis alicerces terá ancorado a sua realidade ou em que sólidas fundações vai ficcionando a sua vida!).

Não me admira que gostes da chuva, esse arroubo humaniza-te, quase te fragiliza! Imagino-te correndo propositadamente sob grossas gotas, protegendo livros e computador desajeitadamente debaixo da roupa. Eu gosto de chuva, lá fora, de mansinho, para embalar o meu sono. Ou através da vidraça, nas fotos, ou aquela que brilha às vezes nos olhos das pessoas. Lembrei-me, a propósito, que José Tolentino de Mendonça, na sua deliciosa crónica Cabeça no Ar fala no seu amor pelas nuvens e na existência, pasme-se, da Associação Mundial de Apreciadores de Nuvens (Cloud Appreciation Society). Quem sabe se num futuro próximo te filias nessa organização ou crias outra do género…?

Mas deixa-me falar-te sobre a língua que estou a aprender (a mesma que me está a prender!). A língua e a cultura, coisas indissociáveis. Só um pudor quase infantil me impede de te alinhavar algumas expressões novas na minha bagagem…talvez na próxima carta me sinta mais segura. Para já, diz-me tu: que língua imaginas possível, criada entre antigos escravos e senhores de escravos? Consegues sonhar com algum som, vocábulo, intuir alguma lógica gramatical…é uma viagem alucinante percorrer estes caminhos tão próximos e simultaneamente tão distintos das nossas certezas quotidianas.

Falando de ficção, por aqui é sinónimo de tentar viver dignamente, segundo os padrões europeus. Não quero que este desabafo se confunda com insensibilidade ou alienação – não estou a falar de fome nem de subnutrição, nem de falta de acesso aos cuidados primários de saúde. Mas assiste-se actualmente por estes lados a uma pobreza que corrói e leva consigo a esperança, o que é mais grave. Que arrasta os sonhos dos mais jovens, a paz dos mais-velhos e inquina a criatividade colectiva. Precisamos de ser mais engenhosos, astutos e pacientes. Ágeis e dispostos à mudança. Parece que a adaptabilidade é uma das principais condicionantes da sobrevivência. Que seja, então. Falávamos da revolução dos cravos, de 25 de Abril de 1974, essa data que me encontrou já com nove anos, em Angola, e que precedeu as independências das ex-colónias portuguesas em África, em 1975. Foi o fim da ditadura e o começo de um novo período na história portuguesa, que guardo na memória com uma enorme ternura. Entretanto algumas das conquistas de Abril estão agora a ser perigosamente postas em causa. O futuro constrói-se com suor e jogo de cintura todos os dias…

Quanto às tuas últimas perguntas, as que formulaste e as que adivinho em ti, explico-te o que faço para me “fluidificar”. Acredites ou não, aqui vai: esta manhã, quando saía de casa, um senhor idoso ficou sem bateria no carro e estava aflitíssimo tentando encostar à berma…então eu fiz algo que não faço há mais de 30 anos e diverti-me como uma menina empurrando alegremente o carro, correndo e empurrando, durante uns 20 metros, até que aquela lata velha resolveu pegar e ainda pude ver o sorriso de satisfação do senhor acenando agradecido! Ah, e para completar o quadro, juntou-se a mim outra senhora que vinha no carro de trás; ela largou o seu carro e as duas juntas fomos ali deixando esvoaçar as nossas saias de meia-estação ao sabor do vento. Um momento incrível de fluidez, uma coisa de minutos que muda um dia inteiro. Achas que exagerámos? Por favor, não sejas tão severo a julgar-nos…

Agora faço uma pausa, com a suave certeza de que a conversa nos vai tornando cada vez mais cientes da alegria que há em nós. E como diria o meu amigo mexicano: ! Qué platicada tan rica!

Um beijinho atento e um abraço enorme.

Até breve,
Clara

Lisboa, 8 de Maio de 2015


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Clara!

Céu fechado aqui. Meio do ano a chegar e a água do mundo teimando em tocar o chão, mesmo cá-aqui, no agreste deste planeta de nome Pernambuco, nordeste brasileiro. Mundo hoje tão inorgânico, não?! Tudo em simulacro, virtualizado e virtualizante (onde os virtuoses?), paredes de espelhos onde não dá nem tempo para sermos quem no fundo somos em realidade real, futuro acionado por controles e ondas invisíveis... Você falando assim no começo e eu meus botões já desgastados, relembrando das cartas que fizeram parte de minha vida. Troquei muitas cartas também, com pessoas importantes em minha trajetória. Escrevia mais que recebia, decerto. Mal sabiam elas, as pessoas-cartas, da felicidade sentida em meu coração selvagem quando aquelas mágicas poções envelopadas aportavam na caixa de carteiro da casa onde eu morava, umas carregando até o cheiro dos(as) remetentes para perto da gente. Cartas escreveram amor em minha mente e todos os sentimentos possíveis na pele-casca. Havia prazer nisto. A tecnologia da escrita com toques de. Até se chegar ao momento de uni-las ao fogo ardente. A sensação em cinzas, o derrotismo, a ânsia por. Mundo novo em fuligem. E vejamos nós, adornando os dias com e em... CARTAS!

Eu-até, meio que encaminhado nessas trilhas escuras dos-sem-vida, fazendo movimentos até bem pouco tempo insuspeitados, sentindo-me acorrentado em grilhões invisíveis que atordoam os passos, conhecendo novas foz-mares e me desconhecendo mais também. Nem tudo é tão claro, Clara. Tantas coisas e eventos que nos empurram para bem longe de nossos desejos mais sagrados... tantos movimentos em vão, regressos, avanços falsos, acessos indevidos - quem na verdade faz o papel de impostor? E como estão raros os nossos momentos sublimes de vida! O que há para se fazer nesta direção e como mudar o que nos muda a todo instante? O que tanto nos impede de sermos felizes? Você tem alguma dica a me ofertar? Ou estaremos, todos, perdidos, sem ter a quem poder combater ou distante dos lemes, eu, você, o Evandro, o arrebol mundano inteiro?

A chuva nos amaina, tira a quentura que extravasa, que está em exagero dentro da gente. Nasci num território de clima bastante ameno, nas paragens diamantinas, ali-logo no centro geodésico baiano, meu estado natal: Bahia de Todos os Santos, dizem. Lembro que antes, quando eu bem pequeno, por lá fazia mais frio, chovia mais, tudo era demais verdinho. Hoje em dia nem tanto assim, sabe. O mundo anda virado até nisto, nossa mãe-natureza irada não perdoando ninguém. Tantas catástrofes e cruzes! Dizem que o frio faz das pessoas mais silenciosas, de pensar mais antes de falar, ajuda na concentração... deve, de certeza, ser verdade. 

E por falar em nuvens, fui hoje comprar dois livros numa livraria aqui perto, que fica dentro do shopping center Difusora (local onde ficava a extinta Rádio Difusora de Caruaru-PE), quando na saída dei de cara com uma mostra de fotografias produzidas por uma estudante de jornalismo paraibana. Ela, que é natural de uma cidade aqui perto, de nome Brejo da Madre de Deus, local onde é encenada a tradicional Paixão de Cristo na época da Páscoa e mundialmente conhecida, com sua máquina de gerar poesia instantânea se revelou uma grandiosa observadora dos céus. Fotografias muito bonitas, a grande parte retratando o ventre dos firmamentos, suas estrelas e seus travesseiros nuviosos. Saí de lá encantado. 

Depois, passe-me as coordenadas para que a filiação minha se dê junto à Cloud Appreciation Society, Clara! Interessa-me! Sou de nuvens e de gostar de viver no mundo da lua, assim como de gostar de coisas que, segundo alguns, não nos levará a lugar algum: alguém por acaso falou em literatura aí? Antes disso, tive a ideia de criar uma Igreja: A Igreja Literária de Todos os Dias. No lugar dos santos e santas, escritores e escritoras. Deus seria Jorge Luis Borges. O papa, talvez o Luiz Ruffato – sujeito-escritor mineiro que ando conhecendo-lendo nos de-agora, por incentivo-revelação de uma menina-equador que atende pelo nome de Carol Piva, conhecida sua também. Que tal? Como se tal ideia tivesse lógica... ligue não, Clara, é só uma brincadeira. A literatura não sobreviveria à noção quadrangular de templo-fiéis-obrigações-dogmas. 

Ah, a nossa língua! Nossas línguas dos outros também, posto nossas de-nós. Línguas do mundo, artefatos coletivos de aproximação e afastamento, matéria vivíssima, mutante, permeável, social, de interação, de amor, de suor e de nossas histórias comuns de viver e estar e ser. Todas-tão, Clara! Como deve estar sendo bom a você estas novas descobertas, Clara! Imagino quanta beleza, quanto sumo a ser bebido ainda nesta viagem. Eu não quero nem arriscar. Aguentarei firme até seu oportuno esclarecimento. Tenho lido tantas coisas sobre a nossa língua portuguesa, Clara, por aí nesses meus passeios acadêmico-mundanos... não saberia nem por onde começar de tanta boniteza que incorporei nos últimos meses. Línguas-amor! Vivas!

Aqui, Clara, a barra está pesada. Batata assando nas mãos de cada brasileiro honesto, que trabalha dignamente. Ondas de corrupção devastando tudo pela frente, impunidade alarmante, inversão de valores, violência, falta em quase todos os setores, educação mendigando. Aqui se paga pelo descaso, pela ganância de alguns, pela falta de vergonha na cara, e em muitos casos paga-se com a própria vida até. Revoltante. País belo e de fortunas incomensuráveis o Brasil, tão maltratado pelos governantes, tão sem-p(rumo), tão incerto. Brasil de esperanças, sempre. Nem sabemos direito se a ditadura aqui se foi por completo, porque é cada uma que a gente precisa engolir, só vendo. Você viu um pouco da questão das greves dos professores aqui, que sei. Imagine mais, fique à vontade, pois é possível este fabrico ideário. Em tocar nisto, interessa-me saber um tiquinho acerca da visão que vocês aí em Portugal possuem da gente, irmãos-quase-nem de colonização. Sei que é um questionar já batido e que não procede nos-muitos, mas há um quê de curiosidade se e como a mídia em geral nos transmite até a população. E vivas à Revolução dos Cravos! Vivas!

Tão gracioso o momento de fluidez apresentado por você, Clara. Queria estar de perto-pertinho para poder ver a cena ou ajudar ou as duas coisas ao mesmo tempo, só para fazer parte também desta alegria espontânea de bem. Não julgo, pois sei que é justamente assim que conseguimos estar em pé diante das atribulações do dia. É num evento mínimo que o máximo existe. Não adiantar fugir de tal engrenagem. O simples é o atalho mais perfeito para o belo. Por cá, o pneu de minha motocicleta furou. Com jeito, consegui chegar à borracharia. O sujeito do estabelecimento era uma figura. Construímos metáforas sobre pregos e câmaras de ar. Dia vencido.

Sendo assim, vou-me por cá-agora, mas não deixe de me explicar o significado da expressão "encostar à berma", okay?

Sigamos, entre mares e marés.

De teu amigo, 
num Pernambuco de Holanda para o coração querido das esperas, 
em 16 de maio de 2015.

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Clara e Viana são dois amigos de longa data que se redescobrem e desenham o mundo à sua volta pelas palavras que encontram, que constroem e que usam para pintá-lo. (De longa data em face da finitude da vida, recentes diante da imensidão da eternidade). Mas, que importa isso? Eles propõem-se descobrir dois universos complementares, sem artifícios nem maquilhagem, para além das máscaras habituais, as que protegem o ser humano da solidão e das agressões.

Clara e Viana são dois heterónimos, duas personagens que ganham vida através do tempo, do ritmo da palavra e do sabor dos respectivos sotaques.

Luísa Fresta e Germano Xavier dão vida a este projecto.
* Imagens de Cristina Seixas.

quinta-feira, 14 de maio de 2015

As lentes de névoa sobre os conceitos de CONTEXTO

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Por Germano Xavier


DIJK, Teun A. van. Discurso e Contexto: uma abordagem sociocognitiva. São Paulo: Contexto, 2012.


No capítulo de abertura de seu livro DISCURSO E CONTEXTO: UMA ABORDAGEM SOCIOCOGNITIVA, o linguista holandês Teun A. van Dijk, renomado pesquisador das relações existentes entre texto e contexto (e suas adjacências), elabora um amplo panorama acerca da percepção histórica do “senso de contexto” vigente a partir e, também, durante o surgimento de diversas disciplinas e/ou esferas do saber humano.

O senso que se forma, desde então, ao derredor do conceito de contexto, pode ser considerado, segundo o autor supracitado, como tomado por uma névoa excessiva e prejudicial ao desenvolvimento da matéria. Sem saber distinguir ou deixando-se emaranharem por uma teia até demais desorganizada, as ciências terminaram por intuir uma noção de contexto indefinida, sem a complexidade necessária e, por assim dizer, confusa.

Com o foco de contradições estabelecido nos primórdios das pesquisas envolvendo a problemática contextual, os fins de uso de tal concepção e ideário ficaram à mercê de propostas quase que isoladas e bastante ousadas realizadas por pequenos grupos de estudiosos que, apontando caminhos e possíveis resultados bem discrepantes das construções óbvias já existentes, fizeram com que os meandros do contexto começassem a ser investigados numa crescente de organização nunca antes vista. 

Para explicitar um pouco da real importância e da costumeira necessidade de tal ramo de estudo, Teun A. van Dijk nos coloca diante de um discurso do primeiro-ministro britânico Tony Blair, pronunciado na Câmara dos Comuns em 18 de março de 2003. A partir da leitura do texto emitido por Blair, Dijk apresenta-nos aos princípios básico-naturais (noções gerais) do que poderia vir a ser objeto de conceituação de ordem contextual, elucidando a combinação real texto-em-contexto, fazendo-nos observar que o texto não é um elemento imóvel em si, impermeável e separado das construções socioculturais de um determinado povo ou de um determinado momento histórico, até porque, como já sabemos, o texto é local de interações as mais diversas. E como bem aponta Dijk, entender o discurso é antes realizar a compreensão texto/conversação-em-contexto. 

A natureza do contexto, para Dijk, é múltipla. Não há como identificar um só nascedouro para o elemento em questão. Sendo um objeto que atende às demandas subjetivas de cada ser vivente que se prostre diante de um dado fenômeno, a concepção de contexto envolvida tende a ganhar roupagens e condições de atuação não congruentes. A natureza do contexto, destarte, pode ser considerada mutante.

Disciplinas como a Literatura, a Semiótica, as Artes em geral e até a própria Linguística, quando de seus primeiros embates para com as situações de existência dos con-textos, imbuíram-se de limitar suas percepções quanto a uma possível Teoria do Contexto a estratégias “formalistas”, “estruturalistas” e “transformacionais”, o que as colocou diante de uma escaramuça ideológica de difícil solução. 

Somente após os anos 60 do século XX, com o aprimoramento de interdisciplinas hoje fundamentais para o entendimento das evoluções contextuais, como a Semântica, a Pragmática e todas as suas ramificações, é que o contexto começou a ser lido com os olhos menos nublados. Estas novas ciências iniciaram uma preocupação direcionada à investigação do significado das sentenças linguísticas em geral (Semântica), como também interessadas no uso e nas intenções presentes nestas sentenças. 

Ligadas não somente pelo fato de estarem em constante contato com as diversas facetas do significado, mas também por serem sistemas que interagem com outros ramos do saber para melhor produzir e investigar os seus respectivos objetos de estudo, as novas ciências do significado, ou por assim dizer novas interdisciplinas, começaram a se estruturar, alicerçando passos importantes para o futuro das análises envolvendo o contexto. Nomes como os de Bréal, Saussure, Frege, Grice, Benveniste, Ducrot e Austin, espécie de panteão de lideranças destas novas fontes de pesquisa-saber, não podem ser esquecidos jamais em suas particulares relevâncias, mesmo a maioria deles não atentando diretamente para os fenômenos do contexto, ou seja, mesmo se atrelando mais às particularidades do contexto verbal, também conhecido por cotexto.

Dijk observa que a partir dos anos 70 do século passado, com o advento da ANÁLISE DE DISCURSO CRÍTICA (ADC) e com a aproximação feita por parte da Sociologia, Etnografia, Antropologia e a Psicologia, entre outros, o contexto ganhou status de objeto de estudo definido e definidor, enveredando-se pela crítica e pelos usos sociopolíticos da língua. 

Os fenômenos contextuais foram, na visão de Dijk, acentuados no que dizem respeito aos seguintes padrões de entendimento: 1) Os contextos são construtos subjetivos dos participantes; 2) Os contextos são experiências únicas; 3) Os contextos são modelos mentais; 4) Os contextos são um tipo específico de modelo da experiência; 5) Os modelos de contexto são esquemáticos; 6) Os contextos controlam a produção e compreensão do discurso; 7) Os contextos têm bases sociais; 8) Os contextos são dinâmicos; 9) Com frequência, os contextos são amplamente planejados, entre tantos outros aspectos que serviram de espectro para a mudança de prisma já citada.

Convenhamos, a verdade é que Dijk esmiúça a noção de contexto para nos alocar até ela e fazer com que a tenhamos mais próxima de nossas retinas, sem qualquer forma de embaçamento. A teoria, para tanto, não pode ser descartada. O senso comum jamais dará conta de resolver todos os problemas envolvendo as preocupações contextuais. Aos interessados, um rol de possibilidades se ergue depois de lermos Dijk.


* Imagem:  http://linguagemsemfronteiras.blogspot.com.br/2011/07/resenha-discurso-e-mudanca-social.html

segunda-feira, 11 de maio de 2015

Apontamentos sobre a estruturação silábica

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Por Germano Xavier


No Português Brasileiro (PB), a estrutura silábica básica é naturalmente formada de vogais (V), consoantes (C) ou semivogais (V’). As vogais são os únicos elementos, dos três que perfazem a estrutura silábica, cuja presença é obrigatória, sempre ocupando o setor denominado de núcleo (pico silábico). Sendo assim, semivogais e consoantes ocupam as porções periféricas da sílaba.

Dentro dessa estruturação, há o ATAQUE (onset silábico), a CODA SILÁBICA e a RIMA, além do já citado NÚCLEO (pico silábico). O Ataque é o elemento pré-vocálico (isto é, pré-nuclear) e pode ser preenchido por uma ou duas consoantes; a Coda é o elemento pós-vocálico e pode ser ocupada por uma ou mais consoantes; a Rima é o nome que se dá à junção dos elementos integrantes do Núcleo com a Coda. Neste jogo, tanto a Coda quanto o Ataque podem aparecer não preenchidos.

Cabe ressaltar, ainda, que a sílaba é a primeira representação de organização de ordem fonológica de uma língua. No Português Brasileiro (PB), a estruturação supracitada se dá em tais moldes explicitados, o que pode variar em outras línguas mundo afora.

A quantidade de vogais em uma determinada palavra indica a sua respectiva quantidade de sílabas (no Português Brasileiro). O Ataque com a presença de apenas uma consoante é chamado de Ataque Simples (onset simples), quando conta com duas consoantes é denominado de Ataque Complexo (onset complexo), que também possui a característica de dar origem ao fenômeno conhecido por Encontro Consonantal Tautossilábico.

Para a Coda com uma só consoante, a terminologia dada é a de Coda Simples. Quando existir mais de uma consoante nesta posição, chamaremos de Coda Complexa.

No Português Brasileiro, os tipos de sílaba são classificados em: 

Silábas Simples – possui apenas um núcleo silábico;
Silábas Complexas – possui núcleo precedido por consoantes;
Silábas Abertas ou Livres – não possuem Coda Silábica;
Sílabas Fechadas ou Travadas – possuem Coda Silábica.

São exemplos de sílabas formadas com semivogais: 

VV’ – VV’C – CVV’ – CVV’C – CV’V – CV’VC – CV’VV’C

Para a questão do Vocábulo Fonológico, consente-se de que se dá quando da junção de palavras que possuem apenas um momento de pronúncia, a citar as palavras aguardente e entretanto. Outro caso a se destacar dentro dessa esfera é o dos Clíticos (dois ou mais elementos lexicais com um único vocábulo fonológico em decorrência da atonicidade de um deles), a citar os exemplos de “os amigos me cobraram” (osamigos e mecobraram).



BIBLIOGRAFIA

SEARA, Izabel et al. Fonética e Fonologia do Português Brasileiro. UFSC. 2011. Disponível em http://goo.gl/tQy90q. Acesso em 11 de maio de 2015.

* Imagem:  https://www.ufpe.br/cead/eletras/fonologia/index.php?pag=cap6

domingo, 10 de maio de 2015

Caixa 2 – Até 10 volumes

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Por Germano Xavier


Sol. Domingo. Preocupação inicial: tomar café. Vontade de tomar café de posto! Beira de estrada? Sim, vamos? Levantamos. Procuramos um posto e tomamos café de posto. Sol. Domingo. Segunda preocupação: fazer compras para a semana. Tempo das coisas ditas naturais. Vamos ao VERDÃO? Acelero. Estaciono o carro bem na parte da frente do estabelecimento, junto aos grandes portões de entrada. Ela desce. Traga amêndoas, por favor. Falei pela fresta do vidro. Consegui ser escutado. Não vai entrar? Não, ficarei aqui fora. 

E fiquei. 

Poucos minutos depois, após impulsivamente verificar possíveis mensagens no celular, fixei meus olhos na moça do CAIXA 2 – ATÉ 10 VOLUMES. Ela me olhou rapidamente num dado momento e depois fez seus olhos se perderem no meio do galpão. Olhava tanto para dentro quanto para fora do lugar de onde estava, tanto para baixo quanto para cima, para os lados. Ninguém para atender. Solitária, à espera de algum cliente. Eu, fixado a observá-la. 

Do outro lado, no CAIXA 1, uma moça com uma bolsa a tiracolo começava a retirar de dentro de seu carrinho os alimentos selecionados durante o passeio por dentro do supermercado de “alimentos saudáveis”. A atendente encostava o código de barra de cada embalagem num leitor óptico. Uma luzinha vermelha intermitente. O preço saia na grande tela um pouco acima de suas cabeças e a soma ia se dando automaticamente. Tudo aparentemente muito normal. 

Enquanto toda esta movimentação acontecia ao seu lado, a moça do CAIXA 2 – ATÉ 10 VOLUMES continuava a destilar seus olhos perdidos pelo grande quadrado de cimento revestido com telhas tipo Eternit.
Bonita, ela. Longos cabelos. Morena, batom nos lábios, uniforme verde da empresa, crachá pendurado no pescoço. Estava sentada. Eu só podia vê-la a partir da parte superior de seu tronco. Mãos tateando o nada sobre o balcão. Certa indecência de gestos. Outro moço do VERDÃO arrumava os carrinhos, um a um, encaixando-os velozmente num esforço repetitivo. Sons metálicos eram ouvidos. 

O interior do carro esquentava. Abaixei mais os vidros. 

Guardei o celular no bolso e concentrei-me ainda mais a olhar a moça dos olhos incertos. O que pensa aquela moça neste exato instante? Será feliz com a vida que leva? Estaria planejando uma fuga desesperada nos próximos segundos? Estaria só esperando o tempo passar para poder, enfim, e ao toque da sirene das maquinarias de trabalho, abraçar sua mãe em pleno Dia das Mães? E como seria o seu “eu te amo, mãe”, depois de tanto tédio vivido na matina dominical? De onde vinham aqueles olhos desnutridos, sem vida? 

Olhando para ela, fiz-me recordar de uma outra moça que havia visto dia desses no shopping center. Esta, diante de um pequeno balcão, quase do tamanho de seu corpo, fazia com empolgação propaganda boca-a-boca de reluzentes e coloridas capas para chaveiros de automóveis a todos os passantes, inclusive a mim. Eu, esperando o elevador chegar ao meu posto, também observava-a em sua porção risível de vida. Em troca de? Ao passo em que detectava tristeza em seu olhar. O shopping center abria por volta das 10 horas da manhã e só fechava 10 da noite. Interroguei-me se realmente era possível passar o dia ali, naqueles modos. O assustado seria eu? Incomodado demais?

Retornando do flash de memória, senti a porta do carona se abrir. Quase um susto. Trouxe as amêndoas? Estava em falta. Tudo bem. Não quer passar no outro supermercado? Virei o rosto uma derradeira vez. Busquei a moça do Caixa 2...

Não, melhor não. Vamos para casa.


* Imagem:  http://www.sst.sc.gov.br/?idNoticia=634

Nada muito sobre filmes (Parte XVI)

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Por Germano Xavier


DARCY RIBEIRO: UM GUERREIRO SONHADOR

O documentário DARCY RIBEIRO: UM GUERREIRO SONHADOR (2007), dirigido por Rozane Braga e Fernando Barbosa Lima, conta um pouco da vida de um de nossos maiores e mais importantes intelectuais: Darcy Ribeiro. O mineiro obteve êxito e reconhecimento em diversas áreas ligadas à cultura, foi antropólogo, professor e escritor, só para citar algumas de suas incontáveis facetas. O excelente documentário puxa mais pelo lado nacionalista de Darcy Ribeiro, revelando-nos aos poucos um brasileiro excêntrico e extremamente apaixonado pelo Brasil. Narrado pela atriz Cássia Kiss. Para este nosso tão esquecido 19 de Abril, Dia do Índio, uma pedida inquestionável. Recomendo a todos os mortais!


GREMLINS 2

GREMLINS 2 (1990), de Joe Dante: intragável. Já não gostava do filme quando mais novo, só confirmei. Dizem que virá uma refilmagem por aí...


DIVERGENTE

Um tal de INSURGENTE perambulando pelas salas dos cinemas nos últimos dias, e eis que resolvi ver o tal do DIVERGENTE (2014), do diretor Neil Burger. O filme é baseado num best-seller desses moderninhos e quase semanais que vez ou outra atinge uma massa gigantesca de jovens leitores pelo mundo, muito por conta de uma violenta campanha publicitária. Críticas à parte, o filme chega a interessar. Mundo particular, sociedade dividida em facções, atmosfera caótica, jogos de poder... o ruim de tudo é que o filme, creio que por ter sido o primeiro da trama, passa-se quase que totalmente focando o treinamento que se dá à protagonista ao se enveredar por uma das facções. Aí do meio para lá a coisa fica meio repetitiva... Dá até para ver o seguinte... Quem já?


A DELICADEZA DO AMOR

A DELICADEZA DO AMOR (2011), dos diretores David Foenkinos e Stéphane Foenkinos, é realmente um filme delicado sobre o Amor (risos pela proposital redundância), o amor que é de verdade, demolidor de barreiras as mais diversas. História por demais verossímil. Gosto muito da Audrey Tautou. Baseado em livro homônimo. Filme leve e com bastante poesia. Recomendo a todos os mortais!


O RITUAL

Um filme de suspense com Anthony Hopkins no elenco é quase que uma receita certeira e imbatível para se ter um interessante programa cinematográfico. E foi, sim, mais uma vez, com honras. O filme O RITUAL (2011), dirigido por Mikael Hafstrom, não chega a ser uma produção extraordinária, mas é muito bom de se assistir. O tema central é a fé, travestida no imaginário do exorcismo. Atmosfera bem elaborada, cuidado nos detalhes e... ao final, um filme que agrada aos admiradores do gênero em questão. Ao menos, foi assim comigo. Hopkins fenomenal, diga-se de passagem. O filme é baseado em fatos reais. Quem vai encarar?


ENSINA-ME A VIVER

O filme ENSINA-ME A VIVER (1971) é uma comédia dramática dirigida por Hal Ashby. A priori sem grandes pretensões, o filme surpreende pela simplicidade da narrativa, pela trilha sonora linda e pela mensagem-elogio de rebeldia e liberdade. Harold é um garoto rico aficionado pela morte cujo hobby é ir a enterros e, também, teatralizar potenciais suicídios. Até que, num determinado dia, conhece uma senhorazinha com seus quase 80 anos de nome Maude, que é justamente o seu oposto, isto é, loucamente apaixonada pela vida. Após convívio, os dois criam um vínculo fortíssimo e passam a viver poeticamente. Ao final, uma surpresa separa os dois. Filme com beleza, de arte, com gosto e prazeroso. Recomendo a todos os mortais!


SOB LUZ E SOMBRAS

SOB LUZ E SOMBRAS (2012) é um documentário dirigido por Julio C. Siqueira que versa sobre o olhar-vida do fotógrafo J. M. Goes. Com sua paixão a destacar por mais de duas décadas o nu feminil, o fotógrafo, no auge de seus 80 anos, revela um pouco de seus processos de criação em P&B e finalizados aos moldes analógicos. Interessante ver a relação do artista para com suas fontes maiores de arte, os modelos - neste caso, as modelos. Recomendo a todos os mortais!


POCAHONTAS II – UMA JORNADA PARA UM NOVO MUNDO

POCAHONTAS II - UMA JORNADA PARA O NOVO MUNDO (1998), dos estúdios Disney e dirigido por Tom Ellery e Bradley Raymond, desembeleza o pouco de boniteza que a primeira parte possui. Certos filmes não sustentam continuações. É o caso deste. Melhor não perder o seu tempo, bucaneiro. Sigamos!


A MALDIÇÃO DE CHUCKY

Sexto filme da franquia do "brinquedo assassino". A MALDIÇÃO DE CHUCKY (2012), dirigido por Don Mancini, não convence nem ao mais entusiasta do gênero - é o que penso. A verdade é que, após os três primeiros exemplares da saga, você nunca mais foi o mesmo, Chucky. Hora de pensar na aposentadoria.


* Imagem:  http://jpn.up.pt/2015/04/18/cultura-ciclo-cinema-saude-doenca-regressa-casa-das-artes/

quarta-feira, 6 de maio de 2015

Apontamentos sobre traços fonológicos

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Por Germano Xavier


O Círculo Linguístico de Praga, grupo de estudiosos lítero-linguistas também conhecido como Escola de Praga e bastante influente nos estudos da língua até os dias atuais, além de outras contribuições, funcionou como polo gerador da discussão acerca do elemento fonema visto como uma unidade divisível, portanto, formado por um feixe de traços distintivos particulares a ele. 

É importante destacar tal informação, haja vista que o fonema até então era visto como uma unidade sem divisórias, quase que impenetrável ou impermeável, ideia defendida pelo Estruturalismo.

Tal abertura, gerida por Jakobson, possibilitou o aprofundamento das pesquisas acerca destes supracitados traços a partir de uma ótica acústico-perceptual. No livro FONÉTICA E FONOLOGIA DO PORTUGUÊS BRASILEIRO, as autoras resolvem fazer um apanhado sobre esta problemática tendo como base a Fonologia Gerativa de Chomsky e Halle, que investiga os traços distintivos a partir de suas engrenagens articulatórias

O sistema binário foi escolhido pela maior parte dos estudiosos da área como padrão para análise dos eventos envolvendo traços distintivos por ser considerado o de mais fácil adentramento. Apresentados quase sempre em formatos de matrizes ou árvores, os traços distintivos (propriedades comuns ou individuais), ganham em sua definição simbólica colchetes com valências [+ ou -].

Os traços distintivos, assim vistos pelo prisma articulatório, agrupam-se em algumas categorias ou subdivisões: quanto às Classes Principais (silábico, consonante e soante); quanto à Cavidade (coronal, anterior); quanto ao Corpo da Língua (alto, baixo, recuado); quanto ao Modo de Articulação (contínuo, lateral, nasal, estridente, soltura retardada); quanto à Forma dos Lábios (arredondado) e quanto à Fonte (vozeado).

Façamos, pois, um curto resumo dos traços distintivos:

CLASSES PRINCIPAIS – Silábico (definição de sons silábicos e não silábicos); Consonantal (definição através de segmentos com constrição significativa na região central); Soante (definição por passagem de ar livre nas cavidades oral ou nasal).

CORPO DA LÍNGUA – Alto (definição com levantamento do corpo da língua acima da posição neutra); Baixo (definição com abaixamento da língua em relação à posição neutra); Recuado ou Posterior (definição com retração da língua em relação à posição neutra).

CAVIDADE – Anterior (definição com obstrução no trato oral anterior à região alveopalatal); Coronal (definição com ápice da língua elevado).

FORMA DOS LÁBIOS – Arredondado (definição com estreitamento dos orifícios dos lábios e projeção dos lábios).

MODO DE ARTICULAÇÃO – Contínuo (definição com passagem de ar plena durante toda a produção); Estridente (definição com presença de obstáculo suplementar e produção de ruídos); Nasal (definição com abaixamento do véu do palato e escape de ar pelas cavidades nasais); Lateral (definição com escape de ar lateral devido ao abaixamento da parte média da língua); Soltura Retardada (definição com abertura gradual do trato vocal – africadas – ou soltura abrupta do ar – plosivas).

FONTE – Vozeado (definição com pregas vocais em vibração).

Para o justo detalhamento dos traços distintivos, faz-se preciso não se esquecer de dois pontos de apoio fundamentais: a Posição Neutra e o Vozeamento Espontâneo. 

Com relação à Transcrição Fonológica, as notações são: 

[ ] = notação fonética/produção do falante - fones;
/ / = notação fonológica/relação com o significado – fonemas.



BIBLIOGRAFIA

SEARA, Izabel et al. Fonética e Fonologia do Português Brasileiro. UFSC. 2011. Disponível em http://goo.gl/tQy90q. Acesso em 06 de maio de 2015.