|
* |
Viana, querido amigo,
Depois da tua introdução “fabulástica”, usurpando o neologismo de outro amigo, fiquei com muito poucas palavras para te responder. Todas as que tenho, que não são minhas mas sim um imenso património partilhado, são poucas, baças e apagadas face ao muito que sempre me levas a dizer, pela tua amizade pura e inspiradora. Muito rapidamente deixa-me retribuir-te a gentileza, não por gentileza reflexa mas por pura espontaneidade: tu ensinas-me, e muito, todos os dias. A ser melhor, a ser maior, com um olhar mais atento, maternal e tolerante, como pessoa e nas minhas criações. E também, muito, sobre a língua portuguesa, até de um ponto de vista mais técnico e teórico em áreas que me são alheias mas que eu descubro com uma enorme curiosidade através dos teus trabalhos académicos. Gosto imenso de ver trabalhos científicos que fazem sentido mesmo para leigos e que fazem a diferença no dia-a-dia das pessoas.
Quanto à figura de Iara (mãe d’água no folclore brasileiro) sinto-me honradíssima pela comparação, pois mesmo remotamente há esse meu lado um pouco maternal que começou a manifestar-se bem antes de ser mãe – já nos longínquos anos 80, quando andávamos a “vinteanear”, um grande amigo mauritano me chamava, e chama até hoje “La Mère Luísa”, um pouco por graça, um pouco por motivos que só ele saberá explicar… então, essa referência que tu fazes é muito engraçada e tem um sabor especial para mim.
E há outro aspeto da tua última carta que diz muito sobre ti, sobre nós, os que gostamos de escrever e procuramos “a palavra perfeita”. Eu passo por um processo idêntico quando crio ou adapto textos, prosa ou poesia, talvez mais poesia, porque a música e o ritmo são mais exigentes, evidentes e notórios. Tenho poemas, textinhos incipientes e imperfeitos, que ficam guardados semanas e meses, alguns mais, antes de verem a luz do dia, porque sei que lhes falta essa palavra imprescindível que lhes dará sentido e emoção e que sem isso pouco valem, são superficiais, pouco mais do que uma bonita amálgama de palavras, na melhor das hipóteses, lidas por um olhar mais indulgente.
Alguns têm duas versões, que proporcionam leituras algo diversas, e por vezes é difícil acertar com essa palavra, expressão, sílaba, que nos faz tanta falta e se esconde teimosamente de nós. Por isso te digo que concordo absolutamente com o mestre Carlos Drummond de Andrade, e que o teu desabafo encontra eco em mim, pois somos, nesse particular, muito parecidos: essa angústia levar-nos-á um dia a bom porto e porventura nos encontraremos diante dessa palavra!
Vou-te confessar um segredo, que doravante deixará de o ser: algumas palavras perseguem-me, porque são belas, porque são musicais, e sobretudo porque nunca as usei e as ouvi ou li na boca ou através da pena de outros. Eis uma delas: vitupério! Um interlocutor usou-a há dias numa conversa informal e eu fiquei apaixonada pela palavra. Nem perguntei o que era para não quebrar o encanto. Por mais que consultemos dicionários, essa palavra não será nossa enquanto não soubemos inseri-la no nosso discurso, coloquial ou não. Por ora mantenho-me à distância de tal termo que me infunde um atemorizante respeito…
A propósito, lembro-me desta canção de Nilton César, que estava na moda na minha adolescência (sim, também ele procurava uma palavra…que acabou por encontrar!)
«(…)Por que será que pra fazer meus versos
Eu não encontro rima pra porque
Já procurei nos temas mais diversos
Pra acabar meus versos
Tem que ter você (…)»
E sobre política? Creio que concordamos, do ponto de vista do cidadão comum, que o povo parece ser o que menos interessa a quem governa. Há dias confrontei um político no ativo com uma questão muito simples: o senhor sabe quanto custa um pacote de leite, um pão, uma ida ao dentista, um par de óculos, um bilhete de transporte? Ele próprio, que me parece honesto, levantou a questão de como os políticos e a política formal se vêm distanciando da realidade, das pessoas (que para a maioria são meros “eleitores” e só nessa qualidade são tidos em conta). Penso muitas vezes que as pessoas que acrescentariam ética à política não estão interessadas nela…vejo com tristeza o que passa e passou recentemente na Guiné-Bissau e fico com a impressão de que esse caso exemplifica o que acabo de dizer.
Mas falemos de Amor, conceito que nos é ainda mais impenetrável: por conta desse deslize em que ambos incorremos levámos um raspanete da nossa querida e talentosíssima Santana (merecido, diga-se de passagem). Conheço bem esse Amor que referes e tão bem descreves no teu comovente texto dedicado ao teu Pai, aliás Painho. Texto de uma beleza sem tamanho, criativo e poético. (A propósito, aqui o dia do pai é 19 de Março, dia de São José).
Perguntas-me de que tenho saudade. Posso responder com poesia?
«Saudade
de não temer os pequenos nadas
de julgar que os dias são eternos
de acreditar nos contos de fadas
Saudade
de tomar banho de chuva na Praia Morena
nadando sem pé num mar sem fim
olhando a Mãe ali tão perto, serena
Saudade
de ver o Pai a ler o jornal
acreditando no infinito das manhãs de sol
navegando naquele imenso areal
Saudade…»
Quero acrescentar, sobre o Amor, sobre o companheirismo, que tive há dias reunido aqui em casa um grupo de amigos-família e família-amiga que me deixou um suave gosto a temperos quentes na boca e na alma. Foi um momento histórico em que para além do carinho dos amigos recebi também como presente a atuação de vozes, cavaquinhos e guitarras de amigos-músicos de exceção. Senti-me verdadeiramente abençoada, pelos que vieram, pelos que se fizeram presentes mesmo sem cá estar, pelas manifestações ininterruptas de afeto.
Foi realmente um aniversário muito especial, em que também tu cá estiveste, à tua maneira sempre clara de aparecer, assim como a nossa querida parceira de aventuras Cristina Seixas…
E por agora te deixo, sendo que uma parte de mim fica sempre por aí, observando que mares e que marés te trarão de novo até aqui.
Um abraço de sorriso aberto, sempre o mesmo, sempre renovado.
Até já, até breve,
Lisboa, 25 de Agosto de 2015
|
* |
Minha caríssima Clara,
Muitos são os vendavais de desumanidade que atravessam as fronteiras do mundo, imensos são os rios formados pelas lágrimas das centenas de milhares de pessoas em desespero, muitas foragidas de si mesmas ou em fugas brutais, que choram uma tristeza que não tem tamanho nem explicação cabível. Mundo, mundo, vasto mundo, doído mundo! E nós?!
E nós, amantes das palavras e sobreviventes de uma guerra diária bastante visível e não muito distante, encontramos refúgio nesta nossa partilha verbal repleta de significados bem mais que somentes atlânticos, porque sabemos que escrever também é como respirar, é como se alimentar, é como acender uma tocha de fogo incandescente no centro de uma profunda escuridão. E nós, como vamos? Como estamos? Como continuamos?
Como a estarmos sempre em apelo comum em prol de um movimento de vida que abrace a parte mais importante de nossas faculdades e necessidades, somos constantemente atingidos pelo desejo – aquele mesmo desejo de que nos falava o grande Balzac, desejo que conflagra a própria vida, que a legitima em nossas mãos! - que move até um dos mais rígidos estatutos do ser humano: o insistir. Por isso, mesmo maculados e mesmo sangrando por todas as nossas válvulas de escape, a fé que depositamos na potência poética do verbo aleita nossas fraquezas que nos desavançam e nos revelam novos sóis. Então, se estou em ti, como bem dizes, é também porque estás em mim. E é porque estamos que seguimos provocando o insondável e lutando pelo mistério dos desconhecidos.
“La Mère”, então tu fazes como o poeta brasileiro Mario Quintana dizia em quereres: deixas a tua criação dormir, para que num breve futuro ela surja no mundo como explosão de beleza e voz ainda mais duradoura. E assim se é, num-sendo. Para quem enxerga a partir de uma dada distância, até parece simples descrever todo o processo de escrita que nos envolve, mas a verdade é que não é bem assim em meu caso. É bem mais difícil, um processo por demais complexo.
Tenho muitos textos em prosa e também em poesia engavetados, produções que julgo mais interessantes e que saberão aguardar um momento mais pertinente para virem ao mundo. Todavia, no geral, não titubeio e me utilizo bastante da ferramenta blog. Penso que é um bom meio de difusão, mesmo atingindo um número bastante limitado de leitores... mas os textos estarão lá, sempre disponíveis a qualquer momento... Assim, pois, seguimos. Não é a vã toda a luta diante de.
E já que entramos a falar sobre issos e istos, as literaturas e suas caminhaduras, adianto-te que numa aula recente que tive o prazer de assistir, uma professora muito querida da referida área fez a seguinte pergunta: “Onde está a literatura?” Respondê-la, ou melhor, ousar respondê-la será uma de nossas avaliações do semestre, num seminário que iremos organizar para o público da universidade em que curso o mestrado. Duas semanas depois de ouvi-la, confesso-te que ainda estou com o questionamento da professora na cabeça, e ele vem pulando feito uma criança feliz diante de um mago brinquedo a redefinir o mundo com seus próprios olhos.
É deveras uma pergunta instigante. O lugar da literatura no mundo é, penso eu, ao mesmo tempo demasiado vasto e exageradamente exótico, por ser um lugar ainda de difícil acesso para muitos de nós. Daí a escaramuça formada em minha mente e, desconfio, na dos meus colegas de classe também. Enfim, qual o lugar da literatura no mundo? Qual o lugar da literatura no ser humano? Há resposta para tal indagação? Saberias tu me dizer onde está a literatura, Clara?
Palavras, palavras, como não se apaixonar por elas? Como não se espantar diante delas? Tão bonito o seu relato de assustar-se em presença da bendita da palavra vitupério, Clara! Eu me alegro em ler estes acontecimentos tão naturalmente verdadeiros e raros na vida de uma pessoa. Também tive palavras que me marcaram muito, talvez uma lista bem grande delas que nem citá-la aqui seria interessante. As palavras fundam mundos na gente, alargam nossos passos, são portais por onde iniciamos travessias. Sem elas, o que seríamos? Seríamos alguma coisa? Não somos corpo, alma, carne, osso e palavra? Incontáveis delas?
Minha palavra de amor para o mundo, Clara!
De uma Garanhuns em noite fria, num Pernambuco de Luís Jardim.
10 de setembro de 2015.
********
Clara e Viana são dois amigos de longa data que se redescobrem e desenham o mundo à sua volta pelas palavras que encontram, que constroem e que usam para pintá-lo. (De longa data em face da finitude da vida, recentes diante da imensidão da eternidade). Mas, que importa isso? Eles propõem-se descobrir dois universos complementares, sem artifícios nem maquilhagem, para além das máscaras habituais, as que protegem o ser humano da solidão e das agressões.
Clara e Viana são dois heterónimos, duas personagens que ganham vida através do tempo, do ritmo da palavra e do sabor dos respectivos sotaques.
Luísa Fresta e Germano Xavier dão vida a este projecto.
* Imagens de Cristina Seixas.