Por Germano Xavier
A sedução literária – sabemos - não necessita, obrigatoriamente, do que é enfeite, do que se apresenta tal qual um ornamento ou algo do tipo, e por um mero detalhe apenas: a sedução por si mesma não engrandece a criação, a obra, o valor de uma autoria. Todavia, há de se suspeitar – ao menos isso – de que a sedução presente em um texto literário mais importa pelo que revela ou desnuda o quanto de humano existe em uma determinada construção narrativa.
Dentro deste espectro de entendimento e de debate, presencia-se no mercado livresco a publicação de um grande quantitativo de livros destinados ao ensino prático de alguns domínios e técnicas voltadas à narração literária, e isso não é lá nenhuma imperiosa novidade. Como exemplo disso, podemos tomar o livro COMO MELHORAR UM TEXTO LITERÁRIO, da série Guias do Escritor, de Lola Sabarich e Felipe Dintel, publicado pela editora Gutemberg em 2014. Para os autores supracitados, na dada obra, a elaboração de um bom texto literário passa automaticamente e quase que unicamente – infelizmente, essa é a impressão que fica após a leitura do material - pelo conhecimento de uma base técnica de ferramentas, instrumentos e recursos que, quando dominadas com excelência por um eventual autor, possui a capacidade de fazer com que boas narrativas sejam criadas a quaisquer instantes e por quem assim desejar. Mas isso é realmente o bastante?
É óbvio que os autores do referido livro sabem muito bem que apenas dominar as técnicas de redação de textos literários não fará de um leitor comum um exímio escritor. Tal acontecimento pode até se dar, num enlace muito fortuito do destino ou do acaso, mas é bem aí que mora o perigo. Será que os leitores interessados nesse tipo de leitura – leia-se, manuais de escrita - possuem semelhante esclarecimento em suas mentes? Será que sabem que a literatura não é tão simples assim a ponto de se permitir dominar através da leitura de reles "10 mandamentos"? É, deveras, relativamente fácil se perder em tais diretrizes e ensinamentos camuflados ao melhor estilo “cartilha” ou “manual” e, assim posto, acabar por ver nascer uma enorme confraria de entusiastas na matéria que desconhecem outras práticas de aprimoramento da escrita de textos literários, e por vezes muito mais eficazes.
A mera criação de um texto literário não faz de nenhum leitor um artista, é preciso que saibamos disso. No texto “O direito à literatura”, Antonio Candido (1995, p.242), afirma que a literatura é uma “[...] manifestação universal de todos os homens em todos os tempos [...]”. Segundo ele, não há quem possa “[...] passar vinte e quatro horas sem mergulhar no universo da ficção e da poesia [...]” (CANDIDO, 1995, p.242). Todos nós possuímos o direito de bolinar no que é do universo íntimo e natural da literatura. Porém, faz-se cada vez mais urgente o desenvolvimento de um sentimento de respeito para com tal órbita do conhecimento humano. Não que devamos respeitar tanto a ponto de nos distanciarmos dela, pelo contrário. Precisamos respeitar a literatura para que possamos adentrá-la em sua real magnitude e encantamento.
Muito antes de encararmos estes guias que nos fornecem as ferramentas ditas necessárias para o aprimoramento de um texto literário, que nos emprestam facilmente exemplos de como construir uma cena, de como caracterizar e construir personagens, de como manipular o tempo no texto, de como adaptar o ritmo narrativo à ficção, entre tantos outros “achados” imprescindíveis, é preciso compreender que a literatura, como salienta Colomer (2007, p.70), “[...] é um dos instrumentos humanos que ensina “a se perceber” que há mais do que o que se diz explicitamente. Qualquer texto tem vazios e zonas de sombra, mas no texto literário a elipse e a confusão foram organizadas deliberadamente. Como quem aprende a andar pela selva notando as pistas e sinais que lhes permitirão sobreviver, aprender a ler literatura dá oportunidade de se sensibilizar os indícios da linguagem, de converter-se em alguém que não permanece à mercê do discurso alheio, alguém capaz de analisar e julgar [...]”. Com outros gêneros ou tipologias textuais, você pode até tentar um domínio pleno de atuação perante o objeto de seu usufruto, mas com o texto de ordenação literária isso tende a se mostrar um tanto quando duvidoso e melindroso.
A linguagem literária é considerada por muitos um código bastante elaborado e apto a disfarçar outro, como se exercesse a partir e após ele mesmo um cruzamento de linguagens várias. Daí eu acreditar que não é o homem que está logo ali a caminhar e a criar narrativas, mas as narrativas é que estão a criar o homem e a ensiná-lo a caminhar. Daí, também, a importância de ler. De aprender a ler, ler profundamente, ler com todas as aberturas da alma, pois no fim de tudo, o que assume o plano primeiro em um texto literário é a sedutora - sim -, e também traiçoeira, palavra conotativa. Sendo assim, e de antemão, torna-se necessário mostrar a verdade – ou as verdades - e, por isso, a construção da fantasia não pode jamais terminar se transformando em um empecilho a essa ideia. E – convenhamos - dificilmente um guia de escrita de textos literários poderá ter a audácia de querer destrinçar tais nuances e segredos.
Se, de algum modo, a literatura, a leitura-fruição ou a leitura-prazer é capaz de amenizar os males, as marcas e as dores do caráter humano, de nos pôr mais sensíveis perante as coisas e o mundo, de nos projetar como sendo seres mais harmoniosos e solidários, por outro, o ato de ler abre nosso campo de visão de maneira irreversível. Um mundo melhor passa – não só, mas também – por uma literatura cada vez melhor, mais sábia, atuante e presente. Por isso, trabalhar com literatura deve sempre ser visto como um exercício de troca de perspectivas. Falar sobre literatura é, de algum modo, ser o outro no momento do outro, num movimento de compreensão e empatia mútuas. O trabalho com esse campo do conhecimento e da arte, como em qualquer outro, termina por ser inútil quando não há nenhuma pretensão de transformação, seja ela qual for.
Para mim, em assim sendo, será bem mais fácil ou bem mais provável imaginar que alguém possa “melhorar” um texto literário lendo um bom autor de textos literários do que lendo mantras de produção de textos literários recheados de táticas de elaboração redacional. Pois que, quando a leitura produz sentido ao homem, este mesmo homem pode exercer uma capacidade propriamente humana – a sua criatividade – e, assim, por meio da produção e da construção de sentidos, é avidamente capaz de transformar sua realidade (ROMÃO, 2006, p.34). Vamos pensar mais sobre isso?
* Imagem: http://escolakids.uol.com.br/texto-literario-e-nao-literario.htm
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