segunda-feira, 2 de janeiro de 2023

O claro mundo literário de Thiago Medeiros



Por Germano Xavier



“Sem medo do medíocre, do ridículo, do grotesco. Nada é medíocre,
nada é ridículo, nada é grotesco no instante inicial da criação. 
Na gênese. Sem policiamento, sem censuras”.

(Raimundo Carrero, in Os segredos da ficção - CEPE, 2017)



Antes de começar a escrever estas linhas, ponho pra tocar o CD 4 da coleção The World’s Greatest Symphonies (The Intense Media). I Adagio. Allegro non tropo. Peter I. Tchaikovsky (1840 – 1893). Não estranhe, caro leitor, foi necessário. Foi preciso para refazer os ânimos depois de ler e reler o livro CLARO É O MUNDO À MINHA VOLTA (Patuá, 2018), do pernambucano Thiago Medeiros. O livro de contos em questão não permite que o leitor tenha qualquer rompante barato de engraçamento ou que se cogite a possibilidade de imaginar-se capacitado a viver as coisas da vida simplesmente pela metade. O discurso das personagens não é partido. A força do texto é em bloco maciço, é um inteiro.

A linguagem, por ser universal, assim como a poesia, é inelutável. A linguagem no livro de Thiago Medeiros avisa: ATENÇÃO, NÃO VAI SER LEVE! A linguagem, quando assim ela se dá, não se pode apagar. A vida, também não. A vida, tal qual a linguagem, é inelutável. Senão, óbvio!, não seria vida, não seria experiência, não seria travessia. Seria morte. E morte é o oposto. Pense comigo: não é perfeitamente compreensível que vivamos pela metade. É um golpe duro na existência de cada um que, dessa maneira, assim resolva transitar pelo mundo. São tantas as possibilidades a usufruir, os caminhos a picar, os destinos a seguir. O fenômeno da linguagem, por refletir a multiplicidade do viver, e das nossas vidas, compartilhadas ou não, sempre se expande quando em contato com outros extratos fundamentais do arcabouço semântico-discursivo das artes ou das práticas sociais. CLARO É O MUNDO À MINHA VOLTA consegue tal feito. O livro é um conjunto de perspectivas que se desdobra aos olhos de quem lê, que se afirma vário, que planta outras sementes de interpretação ao menor senso. E aí já se deu a amplidão. A literatura.

E literatura é linguagem fornida, bem temperada. Roman Jakobson, no seu O QUE FAZEM OS POETAS COM AS PALAVRAS, texto deflagrado em uma conferência ocorrida na cidade de Lisboa no ano de 1972, já atentava para tais movimentos da linguagem. Mas, por que razão endereço esta resenha a falar de linguagem sob este ponto de vista? Respondo, de pronto: é porque em CLARO É O MUNDO À MINHA VOLTA, estreia do escritor caruaruense e idealizador do Letras em Barro, circuito de eventos literários que movimenta a região do agreste meridional pernambucano, estamos diante de um livro que revolve, burilando, as funções semióticas que maquinam o fenômeno linguístico de grave e potencial perturbação.

Os contos do livro, que parecem seguir um agudo fluxo único, até em termos de personagens e sucessão dos fatos, trabalham com temáticas bastante variadas, porém muito complexas, vastas e/ou insólitas. É possível perceber o trato para com a profanação do sagrado, as ressonâncias da velhice, os impedimentos e os impérios da doença, a consagração e a conflagração da infância, as descobertas de envolvimento e de cunho sexual, o riso e a ironia vistos como respostas ao mal, o mal do medo, o medo do medo, desembocando, enfim, e completamente, no desvelamento de uma linguagem feita de quase-acertos - a não completude, aqui, a falta de algo que encerre um outro algo, pode ou deve ser vista como um ponto positivo.

Sobre esta incompletude e sobre a busca incessante do autor por um assunto que lhe erga do solo e que lhe retire o conforto da mente, Raimundo Carrero vai dizer que “escrever é preencher furos, criando armadilhas e seduzindo o leitor, assim como quem borda um tapete. Na talagarça limpa, os furos vão sendo fechados pela agulha e pela linha que completam o desenho. Ou seja, o escritor precisa revelar – ou não – situações que ainda não estão objetivadas no texto”. Thiago Medeiros, filho de uma terra de bons costureiros, deu provas mais do que cabais, já neste seu primeiro rebento, de que é um talentoso alfaiate das palavras em prosa.


ENTREVISTA COM O AUTOR


Germano Xavier - O que há para ser desvelado em CLARO É O MUNDO À MINHA VOLTA, Thiago?

Thiago Medeiros - Essa é a pergunta que gostaria que meus leitores respondessem. Confesso que não sei ao certo, mas o que move meu trabalho são meus questionamentos ao longo da vida, principalmente a questão da memória e a forma que certas lembranças e vivências podem nos influenciar. Raimundo Carrero costuma dizer que toda obra literária é um pedido de socorro lançado numa garrafa ao mar, e eu concordo plenamente com essa opinião, embora não seja exatamente um pedido de socorro por parte do autor/narrador em si. A verdadeira matéria-prima de qualquer obra de arte é a miséria humana, sendo ela trabalhada através de qualquer meio - ironia, tragédia, humor, o belo, o feio - sempre será a miséria humana o fato gerador. Logo, partindo desta premissa, na garrafa não vai um pedido de socorro de um indivíduo, mas de toda a humanidade, e as dificuldades em relacionar todo um mundo próprio com diversos mundos alheios. Os personagens de "Claro é o mundo à minha volta" estão diante de grandes descobertas - a própria identidade, o luto, a sexualidade, a certeza de finitude -, e estas descobertas, por tantas vezes, encontram uma barreira difícil de vencer, que são os outros. E, sim, sou muito influenciado pela filosofia existencialista, que surgiu num momento bem peculiar da minha vida, e até hoje molda minha maneira de encarar o mundo. Então, o que se desvela neste livro é essa busca por certezas que talvez sejam inexistentes.

Germano Xavier – Você busca. Todo autor busca algo. Seus personagens buscam. Alguns poetas, por exemplo, buscam o poema perfeito ou simplesmente uma obra que ajude a completar o que Elias Canetti chamou de “Poesia Una da vida”. De acordo com Roman Jakobson, em O QUE FAZEM OS POETAS COM AS PALAVRAS, a poesia é o domínio mais criador da linguagem. Tendo a palavra “verso” a mesma raiz da palavra “prosa” (provorsa/proversa), eu lhe pergunto: você já sente a sua prosa criar uma linguagem própria a partir de CLARO É O MUNDO À MINHA VOLTA ou será preciso um pouco mais de tempo para que esta percepção lhe seja mais óbvia? E sobre o processo criativo do livro, fale-nos um pouco a respeito, por favor.

Thiago Medeiros - Espero não encontrar nunca uma linguagem própria, creio que me levaria ao conformismo. Quem tem estilo é personagem, não o autor. Este deve se preocupar com a pulsação narrativa compatível com cada texto escrito. Claro que há textos que você identifica logo o escritor, mas há nuances em cada trabalho que vão para além do próprio enredo, então não dá para afirmar que exista uma espécie de molde. Arte é o grande espaço da anarquia humana. Não há poderes constituídos que possam limitá-la, bem como cada nova tentativa de criação deve ser movida pelo caos, sem saber aonde vamos parar. Ainda que arte seja um ofício como outro qualquer, envolvendo disciplina para mantê-la, é o caos que nos move.

Boa parte deste livro foi escrita entre fevereiro e setembro deste ano, apenas dois contos são anteriores - "Sal. Tangos, boleros e outras despedidas" e "A Paz na bandeja de Ágata" -, que foi justamente o período depois do meu pedido de demissão do Banco do Brasil - trabalhei lá por catorze anos e aderi a um plano de demissão voluntária para me dedicar integralmente à literatura. A origem de todos os contos vem do meu dia-a-dia, das histórias que ouço nas ruas. Gosto de boemia, o ambiente dos bares, feiras livres, são lugares que tudo pode acontecer. Então, por exemplo, as histórias que se entrelaçam de "Amargo xilofone para suicidas" e "Os teus retalhos eu guardei" foram de casos que ouvi, realmente conheci um senhor que foi tirar fotos da exumação dos ossos do filho aguardando ver os insetos. Há uma espécie de possibilidade de imortalidade do indivíduo através da arte, é tanto que um dos meus livros preferidos é "Memórias de um Caçador", de Turgueniev. A narrativa é quase sempre a mesma, o autor sai para caçar, encontra alguém com quem começa uma conversa, e esses estranhos passam a narrar detalhes das suas vidas. É universal demais. Poderia acontecer num ponto de ônibus qualquer. E todos aqueles indivíduos tiveram um detalhe incrível de suas vidas imortalizado. É isso que compõe minha forma de trabalhar.

Germano Xavier – Rainer Maria Rilke, em seu clássico CARTAS A UM JOVEM POETA, escreveu: “Não há nada que toque menos uma obra de arte do que palavras de crítica: elas não passam de mal-entendidos mais ou menos afortunados”. Decerto, é sabível que a crítica literária passou por diversas “revoluções” nos últimos séculos. Para você, Thiago, qual o papel da crítica literária para a literatura contemporânea brasileira? O que você pensa sobre o fenômeno atrelado aos YouTubers?

Thiago Medeiros - Minha experiência com a crítica é muito pouca. Numa visão, até romanceada da coisa, imagino que o papel da crítica, ao menos deveria ser, apontar caminhos para a melhora da produção nacional, e não buscar erigir novos cânones, muito menos delinear tendências, o que corre o risco da padronização da escrita. Ninguém deve se preocupar tanto com o papel da crítica - embora seja difícil, é verdade. Sem acreditar no próprio trabalho ninguém vai a lugar nenhum, de bancários a pedreiros, garis e escritores.

O YouTube é uma ferramenta revolucionária, pode ser utilizada para muita coisa boa. Sim, é verdade que vai ter muita bobagem no meio, mas o problema de certos tipos de materiais serem oferecidos, e bem recebidos pela população, não é culpa de quem o faz, estaria num plano muito mais macro. Então cabe a quem realmente deseja produzir arte, cultura de qualidade, se apropriar também desses espaços de fala. Não podemos viver isolados, cultivando a nostalgia cult de coisas do passado - e isso afirmo na condição de colecionador de vinis e livros. As redes sociais estão aí, isso é um fato consumado, então temos que nos adaptar e produzir bom material. Tenho tentado fazer isso com o Letras em Barro, mas sou uma verdadeira negação com tecnologias, logo isso me deixa dependente demais em formar equipes, buscar pessoas que queiram participar das minhas megalomanias. Mas, planos eu tenho, e logo começarão a se concretizar.

Germano Xavier – Thiago, você participou por 3 anos de uma oficina literária ministrada por Raimundo Carrero na capital Recife. Qual a relevância deste momento para o seu amadurecimento enquanto escritor? Em Pernambuco, a Fundarpe e a Editora Cepe realizam anualmente algumas premiações de cunho regional e nacional em se tratando de arte literária. Você vê os prêmios literários com bons olhos para a legitimação do fazer literário? E qual a sua perspectiva para o futuro com relação à cena literária pernambucana, mais especificadamente a do interior do Estado?

Thiago Medeiros - Morria de medo de oficinas literárias. Pensava que ia entrar numa espécie de linha de produção fordista para escritores. Até que uma amiga me sugeriu o óbvio. Vá, se não gostar, não vá mais. Já conhecia o trabalho de Carrero, então também fui atraído pela chance de conhecer um ídolo. No final a oficina foi uma grande surpresa. É um espaço muito democrático, Carrero respeita demais o trabalho de cada um. É um lugar que você descobre que não está sozinho no mundo, há outros na mesma peleja que você. Sem contar que você vai mostrar seu trabalho a uma plateia de, geralmente, leitores experimentados, então já é uma boa prova de fogo. Logo, costumo dizer que uma boa oficina é uma boa pedida para quem puder - não chegaria a dizer essencial, mas ajuda bastante.

Prêmios literários são uma maravilha para a divulgação de novos nomes. Não chegaria a dizer que legitima o fazer, porque há uma limitação de premiados. Imagine um concurso tipo o SESC, que apenas um nome entre quinhentos ou mais é premiado. E os outros, não eram bons? Com certeza tinha muita gente com um bom trabalho ali. É um grande incentivo ganhar um prêmio, mas o prêmio também, por si só, já estimula a escrita. É um formato que deve ser cada vez mais incentivado.

Creio que há uma cena em efervescência forte no Agreste. A começar por Caruaru, com nomes que em breve despontarão nacionalmente - com a barba nesse tamanho me permito ao dom das profecias. Nay Harrison, por exemplo, tem apenas vinte e dois anos, escreve feito uma orixá entronada, digo sempre que o futuro da poesia pernambucana passa obrigatoriamente por ela. A força de Joana Figueredo, Aferrera Maria, Urbano Leafa, Iram Bradock, Germano Xavier, Birigui - poeta de Belo Jardim -, a iniciativa da Candeeiro Cartonera, o próprio Letras Em Barro, tudo isso mostra que há uma cena coesa em formação no interior de Pernambuco. Com um pouco mais de organização, isso será alavancado nacionalmente. Quem viver, verá. Um exemplo a ser seguido é Garanhuns. A partir de um grupo pequeno a cidade cresceu literariamente, começando com conversas entre Mário Rodrigues, Nivaldo Tenório, Helder Herik. Hoje a cidade recebe uma Bienal e tem um espaço exclusivo para literatura no Festival de Inverno, e tudo começou aos poucos.

Germano Xavier – Há pouco mais de 3 anos, perdíamos o ator, diretor de teatro e apresentador Antônio Abujamra, uma de nossas mentes mais provocativas de todos os tempos. Em sua homenagem, repasso a você a pergunta que ele sempre gostava de fazer aos seus entrevistados: Thiago Medeiros, o que é a vida? Não satisfeito, provoco-lhe um tantinho mais: Thiago Medeiros, e o que é a literatura?

Thiago Medeiros - A vida não pode ser definida, sob o risco de perder seu único sentido, que é justamente não fazer sentido algum. Embora não faça sentido, não quer dizer que não seja interessante e bela em sua fragilidade.

Já a literatura é apenas um monte de garranchos e uma tremedeira infinita nas mãos. E, assim como a vida, também não deixa de ser bela, frágil e imprescindível. Digo que frágil pois está sempre sob risco, que o diga a atual situação política do Brasil, esta onda conservadora, que na realidade sempre existiu, é uma ameaça à literatura, mas também seu maior combustível.




Claro é o mundo à minha volta (Patuá, 2018)

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* Imagens: Acervo do autor

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