sexta-feira, 6 de janeiro de 2023

Sobre O RAIO QUE ME PARTIU, de Neuma Rozendo


 

Por Germano Xavier

@germanovianaxavier


Do mundo eu sou e sei que o mundo é um moinho. O mundo gira a roda da vida sem dó e na maior parte das vezes nos parece moer. O mundo é um imenso moedor. A vida, idem. A vida não amolece para ninguém - ou melhor, para quase ninguém. A vida é quase sempre injusta, ou justa demais. O mundo é feito de pessoas. A vida é feita de e com pessoas. Todavia, nem toda pessoa é humana. Nem toda gente é gente, entende? Tem gente que é monstro mesmo. Tem gente que é demônio mesmo. Tem gente que torce e retorce a alma de uma pessoa, que tritura, que atropela, que desordena, que faz sangrar. Tem gente que faz isso e pronto. Tem gente que não tem um pedaço sequer de compaixão por dentro, nem por fora. Tem gente que é só por fora e nunca por dentro.

Sendo o mundo assim, justo e injusto, é plausível pensar que, infelizmente, estaremos para sempre rodeados pela violência. A violência humana é a mais violenta das violências. E violar uma pessoa, uma pessoa que é humana, é profundamente estarrecedor. Só sabe, de verdade, quem sofre a violenta violência humana desumana. Só sabe, ao certo, quem foi moído ou moída, quem sucumbiu e quem foi ao abisso num rompante, quem não teve tempo nem de gritar por socorro ou quem não teve a chance de vociferar na hora da agonia dilacerante. Triste é o mundo, sim. Triste é o nosso mundo, constituído de tudo isso que nos envergonha e nos revolta e que nos abocanha.

O livro de estreia da escritora pernambucana Neuma Rozendo, intitulado de O RAIO QUE ME PARTIU (Multifoco, 2022), versa sobre violentos e diversos atravessamentos de corpo e de alma que modificaram para sempre a história e a trajetória de vida de diversas mulheres ou, simplesmente, da Mulher que existe em cada mulher - assim mesmo, com M maiúsculo. Um livro sobre mulheres partidas ao meio, esquartejadas em golpes definidores e indefinidores de destinos - o que é mesmo um destino? A obra traz em seu miolo curtos textos em forma de contos/crônicas que fazem com que o leitor seja parte da dor impressa nas 88 densas e pesadas páginas do livro.

É um livro sobre sobrevivências múltiplas e unas e únicas e dolorosas e sobre partidas e sobre quebras e sobre quedas e sobre redemoinhos e sobre tantas outras coisas. Conhecendo a autora como a conheço, posso admitir que o livro é composto por verdades mais que sinceras, sentidas, vividas, vivenciadas, choradas, verdades rudimentares e memoriais, verdades ancestrais. O RAIO QUE ME PARTIU me partiu ao meio, me deixou aberto com uma tremenda ferida exposta aos ventos. Não é um livro como outro qualquer. As camadas de ficção nele tingidas são meros detalhes do fazer literário da talentosa autora. O que está em jogo é própria vida, maltratada e incontrolável. A vida em perigo, em constante perigo.

O primeiro livro de Neuma Rozendo é, também, um retrato agudo do descaso com que o mundo e, em especial, o Brasil, trata o ser mulher na sociedade. Um recorte fixo e etéreo sobre a barra que é ser mulher dentro de todas as violências e violações possíveis e impossíveis, pensadas e impensáveis. O primeiro livro de Neuma Rozendo é um grave acerto de contas com o passado e com a vida que ainda temos de viver, nós todos, sim, homens e mulheres, imiscuídos ou não a monstros e demônios humanos desumanos. O primeiro livro de Neuma Rozendo é, por fim, arma contra a obsolescência de nossas formas mais rebeldes, contrárias a quaisquer desmandos e violências cometidas a outrem. Um recado duríssimo a nos dizer, em voz alta, que é preciso estarmos atentos e fortes, atentos e fortes, atentos e fortes...


Considere lê-lo. 


Imagem: https://editoramultifoco.com.br/loja/product/o-raio-que-me-partiu/

2 comentários:

Luísa Fresta disse...

É de facto um livro que espelha a podridão de muitos seres (des)humanos, que retrata com muito realismo todo o sofrimento das vítimas de violência de género, que a humanidade não devia tolerar. Urge refletir, prevenir, corrigir e punir severamente. Parabéns à Neuma Rozendo por abordar um tema tão duro e sensível, com sabedoria, intuição e coragem, através da arma poderosa da literatura.
O teu texto (Germano) está belíssimo e espelha exatamente a impressão que me ficou do livro.

Germano Viana Xavier disse...

Logo logo tem um vídeo disponível lá no canal no youtube, Luísa. Forte abraço!