quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Minhas 20 melhores leituras em 2020


 

Por Germano Xavier


O ano de 2020 definitivamente não foi fácil. No Brasil, a situação de penúria foi ainda mais amplificada e visível. Desgovernado desde os saguões de Brasília, o Trem-Brazil, vendido às incertezas de um neoliberalismo irresponsável, descarrilou e assim continua ribanceira abaixo. O real povo brasileiro penou. E penará. Presenciamos tragédias novas a cada dia, muitas delas advindas de um bestial antipresidente eleito. A sirene tocou mundo afora. Uma pandemia! Muitos foram para dentro de seus aposentos. Muitos, por não terem aonde ir, forçados pela própria necessidade e outros por negacionismos infames de ordens diversas, preferiram as ruas. Ao cabo de todos esses meses, o cansaço, a estafa mental.

Todavia, algumas coisas foram fundamentais para me manter vivo. Falo por mim. Para além das aulas ministradas à distância, que se mostraram duras e ineficientes, foram os livros os maiores responsáveis pela manutenção do ar nos pulmões. Li razoavelmente bem durante todo o ano. Dei prioridade a livros que, de uma ou outra forma, falavam do processo pandêmico vigente, para me inteirar acerca de discussões sociais e políticas também atuais. Destaco aqui a coleção Pandemia Capital, da Editora Boitempo, que li quase toda.

No mais, agradecer preciso a todos os amigos e todas as amigas que fazem comigo o canal literário O EQUADOR DAS COISAS no YouTube, aos colaboradores do portal O GAZZETA, ao espaço concedido a mim no portal SÓSERGIPE e a manutenção da parceria já antiga com o portal ENTREMENTES. Dizer também que o blog O EQUADOR DAS COISAS e o jornal impresso O EQUADOR DAS COISAS continuam vivíssimos, em sonhos borbulhantes e em realidade. Para 2021, talvez algumas boas novidades surgirão. Sigamos, bucaneiros!

E ninguém solta a mão de ninguém.

 

Poesia

1.                  QUARENTA CLICS EM CURITIBA, de Paulo Leminski;

2.                  BUBUIA, de Jéssica Martins Costa;

3.                  ASA DE LAGARTA, de Vanessa Reis;

4.                  ALICE E OS DIAS, de Daniela Delias;

5.                  TRANS, de Age de Carvalho;

6.                  QUASE UMA ARTE, de Paula Glenadel;

7.                  À CIDADE, de Mailson Furtado;

8.                  GRAVANDO, de Aline Rocha;

9.                  ANTES QUE O MUNDO ACONTEÇA, de Daniel Baz;

10.              CAPRICHOS & RELAXOS, de Paulo Leminski.

 

Prosa

1.                  A FABULOSA GALINHA DE ANGOLA, de Luísa Fresta;

2.                  REDEMOINHO EM DIA QUENTE, de Jarid Arraes;

3.                  CARTAS DE UM DIABO A SEU APRENDIZ, de C.S. Lewis;

4.                  O AMANHÃ NÃO ESTÁ À VENDA, de Ailton Krenak;

5.                  A CRUEL PEDAGOGIA DO VÍRUS, de Boaventura Sousa Santos;

6.                  SEJAMOS TODOS FEMINISTAS, de Chimamanda Ngozi Adichie;

7.                  O MASSACRE DA GRANJA SÃO BENTO, de Luiz Felipe Campos;

8.                  O VELHO E O MAR, de Ernest Hemingway (releitura);

9.                  SOBRE A ESTUPIDEZ, de Robert Musil;

10.              ÚLTIMO REINO, de Pascal Quignard.

 

 

OBS. A ordem de numeração dos livros não quer dizer absolutamente nada.

* Imagem: Google

terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Luísa Fresta lê o poema "Os Cadernos de Coisas", de Germano Xavier


 

Luísa Fresta lê o poema "Os Cadernos de Coisas", de Germano Xavier.

* Luísa Fresta, portuguesa e angolana, viveu a maior parte da sua juventude em Angola, país com o qual mantém laços familiares e culturais; reside em Portugal desde 1993.

Publicou em 2012/13 uma série de crônicas sobre as décadas de 70/80 da vida em Luanda, através do Jornal Cultura - Jornal Angolano de Artes e Letras com o qual colaborou regularmente até 2015 e publicou também pontualmente em diversas revistas on-line (a moçambicana Literatas e as brasileiras Samizdat e Subversa).

Escreve regularmente desde 2013 no portal O Gazzeta, coordenado por Germano Xavier e desde 2014 publica prosa e poesia no portal Entrementes - Revista Digital de Cultura. Desde 2016 escreve também no jornal digital Artes&Contextos.

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Ler para ser

*
Por Germano Xavier

“A dialética é, enfim, a lei fundamental do ser.”
(Maurice Merleau-Ponty)

Em seu livro O ATO DE LER (FUNDAMENTOS PSICOLÓGICOS PARA UMA NOVA PEDAGOGIA DA LEITURA), Ezequiel Theodoro da Silva esboça uma severa crítica ao método usado na formação atual do aluno-leitor e reforça a ideia de que o ensino da leitura não está restrito apenas ao momento da alfabetização. Para o pesquisador, ler não pode ser apenas a decifração do código linguístico e os aspectos teóricos e práticos da leitura deveriam ser tratados, pois, em quaisquer cursos de preparação de professores, de forma indistinta. 

Ler é, também, um ágil modo para refletir e transformar. Partindo de tal premissa, Ezequiel critica a política do “deixa como está para ver como é que fica”, que povoa o ambiente educacional de vários territórios do mundo. Para ele, a leitura encontra-se demasiado prejudicada, também, pelo advento das tecnologias de massa. E tal cenário é ainda mais desanimador quando se possui uma tradição de leitura elitista, como é o caso do Brasil.

Para reverter o preocupante panorama, a boa educação deveria apontar para o significado e para a referência. A expressão escrita, para Ezequiel, apresenta-se como a maneira mais prática para a promoção e circulação do conhecimento. O leitor lê aquilo que quer, é livre. As vantagens da informação escrita, pois, são ilimitadas. Ler não é mera deglutição. Ler é realmente participar mais crítica e ativamente da comunicação humana. 

O livro sempre reflete o humano. Comunicação não é apenas falar e escrever (emissão), mas também ouvir e ler (recepção). Para o caso brasileiro, as “lições” da leitura são: 

1) Leitura é essencial à vida e a qualquer área do conhecimento; 

2) Leitura é igual a sucesso acadêmico e diferente de evasão escolar; 

3) Leitura é o principal instrumento para a prática; 

4) Aprender a ler é reduzir a alienação e a massificação; 

5) A leitura parece ser o único meio de desenvolver a originalidade e autenticidade dos seres que aprendem. 

Ler é, antes de tudo, compreender. Compreender é ser. Os três propósitos fundamentais da leitura são: Compreender a mensagem; Compreender-se na mensagem e Compreender-se mensagem. Ezequiel abre espaço em seu livro para criticar a escassez de projetos de pesquisa desenvolvidos no Brasil acerca dessa temática. A leitura é essencialmente humana. Para tal, uma abordagem fenomenológica seria o melhor caminho. O fenômeno é logos, uso da intuição. A linguagem manifesta o ser relacional do homem. A evolução da fala. O código escrito transforma a estrutura da existência – o homem passa de ouvinte a leitor. Ek-sistere: abertura ao outro. Compreender e simbolizar: existir. Ao ler, estamos descontextualizando e recontextualizando. 

Estamos existindo, ao máximo.


* Imagem:  http://www.deviantart.com/art/Reading-59875697

sábado, 19 de dezembro de 2020

Uma leitura para MARÇO ENTRE MERIDIANOS, de Luísa Fresta


 

O amigo jornalista Victor Hugo Mendes lê uma resenha de minha autoria sobre o livro MARÇO ENTRE MERIDIANOS, de Luísa Fresta, lançado em Portugal e premiado em Angola. A ocasião fez parte do cronograma da Feira da Mulher Africana (Lisboa, 2019).

O vídeo foi feito por Victor Hugo Mendes.
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Literatura, este carnaval em mim



Por Germano Xavier


Literatura serve para alguma coisa? O quê? Mas, o que é útil e o que é inútil? Do que se precisa para viver? Eu, para me sentir plenamente vivo, preciso de tão poucas coisas! Uma delas, óbvio, é a literatura. O livro em si. O conhecimento. Quantas pessoas são também assim, como eu, nesse emaranhado de bilhões de seres humanos? E que figura é essa, a do escritor, que tão bem alarga as fronteiras dos mundos visíveis? E que figura é esta, a do leitor, que como ninguém sabe reconhecer símbolos e sinais que dão para as profundezas do desconhecido? Quando o autor está menos preocupado em fazer literatura e mais em causar uma impressão no leitor? São tantas as perguntas? São tantas as respostas!

Até hoje, no alto de meus poucos (ainda) 33 anos de idade, pergunto-me: Literatura, para quê? Eu, um ocidental latino-americano, ensinado pelo “torto” pensamento “quase” geral do mundo que pertenço ao “centro” de todas as coisas e formado ainda em uma época da história das gentes inteiras que difundia a ideia de que nosso “lado do globo” é o único local das riquezas menos efêmeras e das liberdades mais densas, questiono-me incessantemente acerca da real motivação para com essa paixão tão intensa que entrego a esse território tão misterioso chamado literatura, onde os acontecimentos parecem viver à mercê de uma falseada compreensão da realidade e, por consequência, da vida.

Tão carnavalesca é a literatura, espirituosa, cheia de palavras representadas, bivocais, onde se misturam dialetos, jargões, estilos, versos e motes, ditos e não-ditos, inteira toda poli. Ah, Bahktin!, você estava mesmo muito certo! Literatura é transposição e seus efeitos têm como características básicas o questionamento das verdades “absolutas”, o debate sobre problemáticas relacionadas à morte e aos sentidos da vida, sobre as configurações do fantástico, sobre a escolha e a predileção pelas infrações às normas vigentes de conduta, sobre o enfrentamento.

Literatura, que é também a linguagem em ação, que não respeita limites, que pode ser ora obscena ora excêntrica e que, principalmente, permite que o reprimido se apresente perante o mundo que cala sua voz e que enfraquece o seu corpo, tornando central aquilo que é marginal. A literatura tem a propriedade das impropriedades, por isso é dialógica, por isso se refere, enuncia, comunica, mesmo quando o seu objetivo maior esteja convertido em leis e valores de mercado.

Se alguém me pergunta, hoje, o que sou, respondo: sou um leitor. Leitores são essas pessoas que veem as mensagens dos meios com graus diferentes de concentração, interpretam-nas ativamente e dão-lhes sentido subjetivo, relacionando-as a outros aspectos de suas vidas, como diria Thompson. Destarte, do mesmo modo como ocorre ao personagem, o leitor vivencia uma viagem reflexiva, pelo interior de um livro que, ao crepitar das páginas transpostas, operará nele uma transformação interna de proporções incomensuráveis. Talvez seja esse o valor inegável da literatura: a tentativa de compreender o outro para efeito de nossa evolução pessoal e para, logo depois, atingir uma esfera coletiva.

Para Cortázar, um dos meus grandes mestres literários, um texto de qualidade não se esconde sobre o seu tema, mas naquilo que se encontra antes e depois dele. Antes do texto, do tema, está o escritor e toda a sua bagagem humana e sanha literária. De acordo com o búlgaro Tzvetan Todorov, nenhuma narrativa se limita a uma sucessão de fatos, já que não é toda hora que uma dada sequência cronológica produzirá verdade. Essa viagem que o leitor faz, de natureza espelhada, é fundamental dentro da literatura e é justamente ela que faz do livro essa força social tão indissolúvel.

A literatura me subsidiou com uma nova perspectiva do mundo, um mundo diferente do mundo real, ofereceu-me uma nova maneira de olhar para o conhecimento e para a cultura. A literatura, desintegrando-me, unificou-me. Transformando-me, preparou-me para os desafios da realidade. Hoje, da mesma forma que Todorov, que defendia que outros sistemas simbólicos, que não o texto literário, podem abarcar os traços narrativos típicos da literatura, consigo ver muitas coisas através das lentes das grandes narrativas e poemas.

Sou leitor, mas também sou escritor. Conduzo tudo aquilo que é visível e, também, tudo aquilo que é secreto. Velo e desvelo. Para isso a literatura me serve, para dar voz aos meus mais altos silêncios, para me refletir um pouco nos outros em uma relação interpessoal transcendente e libertária. Sou aquele que sugere mais do que diz, ou aquele que diz o indizível, o grande capitão da nau desgovernada de mim mesmo e, portanto, sem freio e sem medo. Sou, antes e depois, aquele que conduz uma tripulação, mesmo que ainda mínima, a adentrar um mundo de seres atropelados por uma sociedade que extermina tudo que é essência. Por isso, leio e escrevo. Por isso, levanto e discuto. A literatura me tornou subjetivo, ambíguo e imensurável. A literatura me fez lembrar que possuo boca, pernas e mãos. Meus passos, hoje, dão voltas e mais voltas sobre a Terra. E tamanho poder é por conta dela, a literatura.


Imagem: https://www.deviantart.com/art/Untitled-701003332

terça-feira, 15 de dezembro de 2020

Histórias Curtas, de Rubem Fonseca


 

Impressões sobre o livro HISTÓRIAS CURTAS, de Rubem Fonseca.
José Rubem Fonseca (Juiz de Fora, 11 de maio de 1925) é um contista, romancista, ensaísta e roteirista brasileiro. É formado em Direito, tendo exercido várias atividades antes de dedicar-se inteiramente à literatura. Em 2003, venceu o Prémio Camões, o mais prestigiado galardão literário para a língua portuguesa.
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Amina Shah e a Literatura Árabe

*

Por Germano Xavier


“Nunca fuja de um leão”. Esta foi a frase que o príncipe Ádil inscreveu no chão de seu gabinete após conseguir vencer o medo e se casar com sua amada, a princesa Peri-Zade. Quando mais novo, Ádil fora colocado à prova por seu próprio pai, o rei Azad. Como primeiro substituto ao trono, Ádil precisaria provar sua bravura vencendo um feroz leão que habitava uma sombria caverna em seu reino.

A história intitulada “Príncipe Ádil e os leões” é apenas uma dentre as incontáveis narrativas populares que vagueiam milenarmente pelo mundo árabe através de suas sucessivas gerações de habitantes. A riqueza desses contos, míticos por natureza e fundadores de toda uma aura contingencial, é inconteste e, até hoje, séculos e séculos depois de seus afloramentos, ainda cativa leitores civilizações afora.

Desde os tempos mais antigos, os árabes estiveram interessados na arte de contar histórias. Alguns de seus contos têm um tom moral, outros são puramente voltados para o entretenimento. Alguns deles tiveram sua origem nos acampamentos dos povos nômades, à volta de fogueiras no deserto, antes que os árabes passassem a viver em cidades (SHAH, 1997, p.11).

A tradição de contar histórias definitivamente não é uma prática recente para os povos da Arábia, designação que, à altura do surgimento de tais narrativas, denominava o território que compreendia a totalidade dos locais onde se usava o árabe como língua padrão. A maior parte dessas lendárias contações surgiu no interior dos seios familiares e através de seus membros foram se perpetuando ad infinitum. Assim, tais narrativas acabaram por se tornar parte da vida de todos, logo ganhando ares de sagrado.

Na sexta-feira, que equivale para o muçulmano àquilo que é o domingo para os ocidentais, as pessoas frequentemente tem poucos afazeres depois de terem rezado nas mesquitas ou visitado a área comercial, transbordando de cores, de seus próprios bairros. Ocorre também que elas estejam, possivelmente, muito longe de casa, viajando por regiões desérticas, onde têm de criar o seu próprio entretenimento (SHAH, 1997, p.12).

A mitologia árabe é, desde a mais tenra ancestralidade, construída com base na força da voz das pessoas mais simples e guardada como uma de suas maiores heranças. Legado do mundo, as narrativas repletas de causos envolvendo príncipes e princesas, jins, reis e rainhas, tesouros escondidos e muitas referências religiosas, consagram no imaginário coletivo uma cor própria de se pintar palavras e, ao mesmo tempo, convidam ao encantamento e à beleza.

A literatura clássica árabe possui das melhores histórias que os homens conhecem, mas os contos narrados à luz do fogo, ou à luz das estrelas, ou à luz das modernas lâmpadas elétricas nos cafés de hoje, do Cairo a Cartum, da Andaluzia a Najd, todos eles mostram a marca do pensamento construtivo de muitas gerações. Esse costume de narrar histórias é uma arte viva, transmitida initerruptamente dos avôs a seus netos, que chega diretamente até os nossos próprios dias; desde o tempo de Saladin e de Harun Al Raschid, de Bagdá, até o momento em que você está lendo estas palavras (SHAH, 1997, p.14-15).


Referência: 
SHAH, Amina. Contos da Arábia: O camponês, o Rei e o Sheik. São Paulo: Kadyc Editorial, 1997.

* Imagem: http://natalialehmann.blogspot.com.br/2013/05/literatura-arabe.html

segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

CIRANDA DE PÍFANOS EM DESCONCERTO, de Thiago Medeiros


 

THIAGO MEDEIROS é pernambucano de Caruaru. Escritor e produtor cultural, idealizador do Encontro Literário Letras Em Barro. Participou da Oficina Literária de Raimundo Carrero. Menção Honrosa no II Prêmio Pernambuco de Literatura, com a obra “Púrpura, Encarnado em Escarlate”, ainda não publicada. Escreve para não esquecer de si mesmo.
* O vídeo foi feito durante a Oficina Literária "Memória, Poesia e Cidade", produzida e ministrada por Thiago Medeiros, que aconteceu no dia 23/12/2019. BLOG: http://oequadordascoisas.blogspot.com/ FACE: https://www.facebook.com/germanovianaxavier INSTA: https://www.instagram.com/germanovianaxavier
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Cultura Pop e Caio Fernando Abreu: aberturas para o intratável



Por Germano Xavier



Em entrevista concedida ao doutor em letras pela PUC-RJ, Marcelo Secron Bessa, em 1995, o escritor gaúcho Caio Fernando Abreu declara: “Acho que sou uma figura um pouco atípica na literatura brasileira (…) Na minha obra aparecem coisas que não são consideradas material digno, literário (…) Mas deve ser insuportável para a universidade brasileira, para a crítica brasileira assumir e lidar com um escritor que confessa, por exemplo, que o trabalho do Cazuza e da Rita Lee influenciou muito mais do que Graciliano Ramos. Isso deve ser insuportável. Você compreende? Isso não é literário. E eu gosto de incorporar o chulo, o não-literário.” Retrato de uma nova ordenação ideológica no mundo das letras e da cultura, de um caminho de inovações e renovações mais visivelmente trilhado a partir da década de 80:

“Desde a década de 1980 a arte pop se tornou um topus recorrente no reexame da ideologia da modernidade, este balanço a que a antevisão precoce do desfecho do século XX compelia, em face do recrudescimento do contencioso político, econômico e social que se acumulara no processo de exaustão de mais uma era de modernização” (SALZSTEIN, 2006).

A fala do escritor gaúcho reforça a existência de um mecanismo classificatório muito antigo. Estabelecer parâmetros para que a abordagem de determinados assuntos aconteça obedecendo-se a uma linha mais uniforme dentro dos diversos segmentos do conhecimento, sempre foi um dos preceitos da sabedoria humana e, porque não dizer, também um recurso demasiado polêmico. Com a cultura e a literatura não foi diferente. A partir do momento em que, dentro de seus respectivos universos, foram surgindo bifurcações, rotas com características diferenciadas entre si, fez-se inevitável a efetuação de uma classificação/nomeação de ordem sistemática, tendo como ponto de apoio os elementos basais que as norteiam.

É justamente dentro desse esforço estratégico e intelectual do homem que as nomenclaturas denominadas Cultura Pop e Literatura Pop foram forjadas, agregando-se a elas um novo padrão conceitual, com marcas e alicerces próprios. No caso do termo Cultura Pop, também chamada por alguns de Cultura Popular ou Cultura de Massa, a estrutura fundante dialoga, indubitavelmente, com o conceito de povo imiscuído às suas particularidades de ordem socioculturais extremamente ligadas à atualidade.

“Cumpre, portanto, admitir que o interesse dos anos 1980 pela pop continha uma centelha de revelação em meio a um punhado de mistificações ideológicas (não duvidemos de que a atitude essencialmente includente do novo circuito artístico internacional se exercia nos quadros de uma re-hierarquização de poder em nível mundial, segundo a qual centros de decisão estrategicamente difusos continuavam a regrar a forma e a qualidade do aparecimento dos “contextos periféricos” nos eventos e instituições desse circuito)” (SALZSTEIN, 2006).

Se “periférica” ou não, se mais ou menos relevante, é impossível tratar do tema sem se preocupar com as determinações que os centros de difusão midiáticos, em sua maioria indústrias culturais, que disseminam, através de périódicos, livros, revistas, cinema, televisão, música e etc, exercem sobre os novos e diversificados panoramas envolvendo comportamento e ação humanos. A interação que perpassa entre esses meios e as pessoas, aqui tratadas como consumidoras de cultura, dão liga à intencionalidades históricas e ajudam significativamente na elaboração de um entendimento mais eficaz de todo o processo.

“De fato, as novas massas que no curso dos decênios subsequentes acorreram à sucessão atordoante de eventos artísticos e às novas bienais inauguradas mundo afora demonstravam que o público da arte se havia alargado para muito além das antigas classes médias urbanas tangidas pela cultura universitária, e que o mercado de produtos culturais se internacionalizava descanonizando fronteiras de bem estabelecidos pólos hegemônicos” (SALZSTEIN, 2006).

A estética literária Pop, assim como a cultura Pop, faz parte de uma socialidade. Assim vistos, produtos culturais de toda ordem seriam poderosos elementos de interligação entre indivíduos. Dilemas existenciais, referências do e ao mundo Pop, conexão com as constantes variações do cotidiano geridas pela sociedade de consumo, temas essencialmente urbanos, representativos da explosão dos blogs e da informática, são também aspectos que conseguiram elevar a literatura dita Pop ao status de arte, sem que para isso tivesse de se igualar, de algum modo, aos modelos artísticos classificados como eruditos.

“Bastardia, vulgaridade e boêmia — essa fórmula moderna segundo a qual arte e cultura se contaminavam sem perderem suas jurisdições respectivas — eram a um só tempo o subproduto da esfera pública burguesa e o que propriamente pressupunha o poder normativo desta; eram o que lhe testemunhava a universalidade, mas que ao mesmo tempo recomendava que esta deveria ser sempre repactuada, na exata medida em que a transgressão persistiria flanqueando-a à meia luz,de maneira apenas suficiente para obter um reconhecimento tácito” (SALZSTEIN, 2006).

Nesse ínterim, percebe-se a germinação de um modelo literário que, apropriando-se de signos e mitos compartilhados pela sociedade de consumo – e por sua vez pela cultura de massa, iria efetuar um maquinário de dessacralização da arte e da cultura. Era o nascimento da Literatura Pop, auxiliada, no Brasil, pela “euforia do consumo cultural da década de 80” (PRYSTHON, 1993). Apresentando-se numa atmosfera de crítica, mesmo que disfarçada, representando singularmente o corpo e o erotismo, fundindo linguagens utilizadas por outras correntes, quase sempre aproveitando o caráter subversivo das mesmas, buscando o ímpeto contestador, assumindo posições sobre sexualidade e amor, interligadas às mudanças ocorridas no mundo nas últimas décadas, a Literatura Pop ganhou status e legitimou-se como uma verdade dentro do universo maior das letras.


domingo, 13 de dezembro de 2020

RECIFE EM TOM MENOR, de Bartyra Soares


 

Impressões sobre o livro RECIFE EM TOM MENOR, de Bartyra Soares, com fotografias de Marcus Prado.
* Bartira Soares é pernambucana de Catende, filha caçula do contista Pelópidas Soares. Mudou-se para o Recife em 1984. Seu primeiro poema, composto aos seis anos de idade, foi publicado no suplemento infantil do Diario de Pernambuco e seu primeiro livro, Enigma, foi publicado em 1976. Publicou mais nove livros entre 1980 e 2008, sendo sete de poesias e dois de contos, um deles editado com outros três contistas. Teve seus textos incluídos em dezenas de antologias, dentre as quais, Poésie du Brésil, publicada em Paris, França. Seus poemas já foram publicados em diversas revistas e jornais do Recife, centro-oeste, sudeste e sul do país. É membro da Academia Pernambucana de Letras. Como contista e poetisa já conquistou 14 prêmios literários. Tem duas obras ainda inéditas: Recife em tom menor (poesia) e Inexatidão do tempo (contos). Poésie du Brésil, seleção de Lourdes Sarmento, edição Vericuetos, como nº 13 da revista literária francesa Chemins Scabreux, Paris, setembro de 1997. Traduções de Lucilo Varejão, Maria Nilda Miranda Pessoa e outros.
* Marcus Prado é fotógrafo. BLOG: http://oequadordascoisas.blogspot.com/ FACE: https://www.facebook.com/germanovianaxavier INSTA: https://www.instagram.com/germanovianaxavier ISSUU: https://issuu.com/art_brazil
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quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

Revista Visões - Materializando Ideias


 

Vídeo sobre a Revista Visões - Materializando Ideias, publicação produzida por estudantes do curso de Comunicação Social - Jornalismo em Multimeios da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) | Departamento de Ciências Humanas III (DCH III) | Campus Juazeiro-BA.
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terça-feira, 8 de dezembro de 2020

Raduan Nassar, que amava tanto a literatura

*

Por Germano Xavier


Sempre que leio um texto escrito por Raduan Nassar me vem uma pergunta à cabeça: “O que terá feito esse homem das letras se “afastar” tanto assim da literatura?” Como é já sabido por todos, Nassar, que é descendente de libaneses e natural de Pindorama, cidade que fica no interior do estado de São Paulo, após escrever os livros LAVOURA ARCAICA, em 1975, e UM COPO DE CÓLERA, em 1978, decidiu “abandonar” a literatura para viver no campo, perto de suas raízes, ali por volta do ano de 1984. Além destes dois livros, conta-se dele apenas mais uma coletânea de contos, intitulada de MENINA A CAMINHO, criada em meados dos anos 60 do século passado e somente publicada no Brasil em meados dos anos 90 do mesmo século.

Junto com a pergunta supracitada, vem sempre uma outra, que pego emprestada de um ensaio escrito por Ivan Ângelo, intitulado de NÓS, QUE AMÁVAMOS TANTO A LITERATURA, parte integrante do livro BRASIL: O TRÂNSITO DA MEMÓRIA, organizado por Jorge Schwartz e Saul Sosnowski: “Sobre quê um escritor deve escrever?” ou “Sobre quê circunstâncias um escritor deve escrever?” Se repararmos bem, Nassar publicou suas duas principais obras no interregno temporal em que se deu a Ditadura Militar no Brasil. Ponto. Mas ele não escreveu sobre o que quis e no momento em que quis que fossem escritos os seus livros? Não foi feliz por isso? Teria Nassar deixado de escrever e de publicar pelo simples fato de lhe faltar um por que para isso? Nassar só escrevia porque sentia que, assim, estaria desobedecendo ao regime autoritário em vigência naqueles idos? Mas por que se distanciar, se um escritor escreve sobre o que quiser e quando quiser? Questionamentos, apenas questionamentos...

De acordo com Ângelo (1994, p.69), “alguns regimes autoritários procuram dizer aos escritores sobre o que eles devem escrever; outros preferem dizer aos escritores sobre o que eles não devem escrever”. Para o autor de A FESTA, no Brasil os militares optaram por dizer aos escritores o que eles não deveriam escrever. Então, isso quer dizer que tanto LAVOURA ARCAICA quanto UM COPO DE CÓLERA são obras que saíram a contragosto de seu autor? Duvido muito. Recentemente, Raduan Nassar discursou contra o até então iminente processo de impeachment da Presidenta Dilma Rousseff num evento do governo, em uma de suas raras aparições públicas. Sinal claro que Nassar não é desses que se calam diante de movimentos opressivos e/ou de fenômenos repressivos contra quaisquer formas de liberdade de expressão.

Teria Nassar preferido o exílio em 1984 justo porque o Brasil se livrara da Ditadura Militar de uma vez por todas? Aquele momento de plena esperança no futuro do país seria a melhor hora de um escritor descansar? Ao contrapor os postulados da teoria da literatura induzida, que prega que “alguns livros são escritos conjuntamente pelo escritor e pelo leitor, isto é, pelo público, pela sociedade (ÂNGELO, 1994, p.69)” e, principalmente, por uma dada necessidade social, Nassar teria apontado para o desprezo total para com o texto literário? Duvido muito. Raduan Nassar, que tanto amava a literatura, simplesmente escolheu se recolher. E se alguém precisava tomar uma atitude, Nassar talvez tenha entendido, e já muito antes, que esse alguém não era ele, que sua literatura não carecia ser ou existir para meramente suprir a fome de alguns ou para ser contra algo ou a favor de. A literatura, pois, muitas vezes, é também a palavra que não se escreve, o verbo que não se oraliza, o sentimento que não se compartilha.

Sabedor dos regimentos que a patrulha ideológica imposta pela Ditadura Militar imprimia aos escritores e artistas em geral, Nassar haveria de escolher, calando-se, não ajudar a determinar o que os escritores deveriam escrever, quando os próprios escritores passaram a selecionar, num exacerbado jogo de cautela, o que deveria vir a público ou não, para que não sucumbissem nos instantes do “ao vivo” diante do “Big Brother” tupiniquim daquela época. Nassar certamente sabe que escrever sob indução é sempre muito perigoso. Porém, é possível fazer literatura sem ter um por que ou um para quê?

Decerto que o tempo e as circunstâncias em que se vive são perfeitamente e inteiramente capazes de interferir na produção de uma obra literária, mas afirmar veementemente que só há literatura se há indução para tal é melar tudo. O próprio período ditatorial nacional envergou a produção do livro mais famoso de Ivan Ângelo, assim como tantos outros que tomaram rumos total ou parcialmente diferentes do que previamente foram pensados por seus respectivos autores a partir da inclusão da obra em um dado contexto social e político de caráter caótico-transformador, seja para o bem ou para o mal.

Sobre A FESTA, Ângelo (1994, p.71) conta que

Foi um livro induzido, cobrado, pautado, porque a sociedade não tinha como se expressar e os livros eram um dos poucos espaços onde alguma coisa podia ser dita. Tudo o mais era fortemente censurado. Mas eu achei que isso poderia ser feito com domínio rigoroso do material, com controle absoluto do discurso político, com apoio único da eficiência na literatura mesma.

Como visto acima, a partir de muito esforço alguns autores conseguiam driblar a patrulha imposta pela censura, usando para isso de artimanhas as mais diversas. Todavia, isso não significava que o engajamento fosse símbolo máximo ou que fosse o caminho certeiro para a boa qualidade de uma obra ou para o estabelecimento do valor de um autor. A tomar o exemplo de Raduan Nassar, bem poderia ser dito que ele não quis se dar ao trabalho de se adaptar ao meio e que, por isso, preferiu enclausurar-se. Falácias e especulações postas de lado, mais lógico seria se se pensássemos que cada autor tem o seu tempo, que cada autor sofre suas mutações e que, em decorrência disso, também a sua palavra se modifica. E como para tudo há novos encaminhamentos...

No cenário da Ditadura Militar, ainda por falar dos escritores que vivenciaram o período,

O que resultou de bom foi que perdemos a inocência, a ingenuidade. Deixamos de ser política e artisticamente naifs e desenvolvemos um design mais contemporâneo. Não naquela época do “corre que lá vem os home”, mas já em torno dos anos 60, em plena abertura. Alguns autores de ficção compreenderam que o momento da abertura não deveria ser usado para tirar a camisa e exibir as feridas. O que eles fizeram foi apurar sua arte para se desvencilhar do passado, dos estilos, linguagens e temas do tipo pecezão, ou do tipo formalista. Buscaram uma estética não oprimida, não terceiro-mundista, para falar da opressão (ÂNGELO, 1994, p.72).

Em sua obra, Raduan Nassar, mesmo distante dos olhos dos leitores, como o próprio Ângelo (1994, p.73) cita, escolheu eliminar “as contradições entre os papéis políticos que as pessoas representam e sua verdade mais profunda”. Está aí o aprendizado, está aí o ensinamento. Ser escritor é fazer as lições que precisam ser feitas, custem elas o que custarem. E se for para sumir do mapa por um baita tempo, que seja para reforçar a todos o amor que se tem pela literatura mais viva e pulsante. Raduan Nassar, como muitos escritores e artistas em geral cujas trajetórias de fuga são por demais semelhantes, será para sempre um escritor a caminho, esteja onde e quando estiver.


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* Imagens: Google.
Referência

ANGELO, Ivan. Nós, que amávamos tanto a literatura. In: SOSNOWSKI, Saúl; SCHWARTZ, Jorge. (Org.). Brasil: o trânsito da memória. São Paulo: EDUSP, 1994.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

PAULATIM, de Paulo Gervais


 

Impressões sobre o livro PAULATIM, de Paulo Gervais.

* Paulo Gervais Lima Veloso, bacharel em Direito, poeta, professor e Tabelião em Garanhuns-PE, cidade onde nasceu. Ensaísta, é um dos fundadores do jornal literário U-Carbureto. É considerado pela crítica como poeta de destaque na cena lítero-cultural de Garanhuns e de Pernambuco.

* Robert Lee Frost (San Francisco, Califórnia, 26 de março de 1874 - 29 de janeiro de 1963) foi um dos mais importantes poetas dos Estados Unidos do século XX. Frost recebeu quatro prêmios Pulitzer.

* Tradução do poema A ESTRADA NÃO PERCORRIDA, DE ROBERT FROST: Henry Alfred Bugalho.

segunda-feira, 30 de novembro de 2020

Verdades vazias, cegueiras e mortes: as conflagrações retalhadas em Mosaico de Rancores, de Márcia Barbieri

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Por Germano Xavier


“Tento mergulhar, os olhos me impedem”.
(Malu, em Mosaico de Rancores)

A literatura é uma espécie de ferida, cuja dor é sentida na pele pelo sujeito-leitor, um dos principais elementos de ativação dos sentidos das palavras. Chagas invadem os olhos de quem ousa ler as páginas de um bom livro. É assim, simplesmente. Do bem e do mal, para aquém ou para além, uma força nada qualquer. Para sempre, nódoas ficarão. Na alma, nos olhos. Literatura. Arrebol de sangue e pulso. Víveres. E a literatura de Márcia Barbieri, mais especificamente em seu MOSAICO DE RANCORES (Terracota, 2013), é mais uma boa demonstração viva do que venho a tratar aqui nestas minhas impressões. A obra é um bruto recorte metafórico em prosa acerca de sentimentos bastante humanos, obtido prioritariamente a partir das visões da personagem Malu que, cega de ciúmes por Lúcio, altera toda uma órbita existencial em prol de um alucinante arremate de ódio e amor ao convívio interpessoal.

“Ultimamente é para isso que me servem as palavras, para estancar meu sangue pisado”, fraseia Malu em uma das passagens do livro, personagem que na obra em si funciona como um narrador não confiável, termo cunhado em meados do século XX pelo crítico literário estadunidense Wayne C. Booth para designar a presença de um narrador - no caso de Mosaico de Rancores, uma personagem-narradora - sem credibilidade ou com sua legitimidade argumentativa comprometida. Como manda o figurino para tal efetivação de recurso, o elemento literário que narra apresenta-se em primeira pessoa. Ao contrário do que possa parecer, não há uma maior aproximação do leitor perante a obra por conta disso, mas sim um brando afastamento. Este tipo de narrador torna tudo questionável. A verdade torna-se uma calamidade, quase uma imposição. Chega-se ao ponto de não acreditar em nenhuma das personagens que transpassam o livro. E tudo se mostra inquieto.

Pelo fato de toda a realidade exposta na obra de Barbieri caber-se isolada em vários pontos e entender-se distorcida em essência e até propositalmente, à semelhança do que acontece em Dom Casmurro, de Machado de Assis e, também, em Lolita, de Vladimir Nabokov, o leitor, pois, vê-se automaticamente inserido num vasto e vago e largo mistério em minúcias. E mistérios não são fáceis de desvendar. Com uma prosa muito poética, que é, antes de tudo, uma extensão de diálogo com o que há de mais primitivo no ser humano, Barbieri supera a mera escrita formal para expor o que quase sempre fica retido nas campânulas do Homem. E que, por tanto escondermos, dores, angústias, máculas, infernos, enxergamos romper daí várias formas de cegueira, até aquela que insistimos em não querer ver, como em moldes de ditado popular, a dizer de um rio a brotar “incoerente nas veias de um cardíaco”. Um mosaico de situações que corroboram alusões à menipeia, já que há no livro um jogo que enovela o cômico e o trágico, o livre linguajar e o conceito filosófico, o sagrado e o universal, misturados à loucura, à impressão da morte e ao sonho. Prosimetrum em monólogos: diálogos internos com a própria imagem. Narciso bem presente.

“O amor é assim, arrumação de camas, ruas sem saída, novelos de uma Ariadne perdida no labirinto”. A primeira parte do livro MOSAICO DE RANORES, intitulada de OLHOS DE CÃO, é uma espécie de introdução ao desconhecido – ou aos desconhecidos da alma da personagem Malu, aparentemente uma mulher sem controle sobre seus próprios sentimentos e sentidos. Uma mulher cujo alfabeto é lido e pronunciado através do olhar e da visão. “Tenho centenas de olhos cobrindo meu corpo e nenhum deles é capaz de prever a verdade”, expira Malu. Uma mulher que, aparentemente, espelha seus parcos momentos de felicidade e gozo na figura de Lúcio, seu par, fotógrafo e amante dos jardins de delícias da vida. Malu é Sísifo, condenada ao absurdo de viver a tarefa sem sentido da vida. A pedra parece sempre rolar sobre seus ombros. A pedra Lúcio? Lúcio não é também a própria Malu? Para Malu, “o desconhecido é uma puta oferecida” e ela crê “apenas na condição do poço”.

Tal qual Tirésias, em vaticínio edipiano, Malu parece somente encontrar a felicidade nos instantes em que não enxerga absolutamente nada. Então, abrir os olhos já significaria sofrer. Correndo “em disparada em direção ao descaminho”, a jovem Malu amargura-se ao ser presenteada por Deus não com um, mas com dois buracos negros em si. É o que ela pensa. Castigo? Por qual motivo? Querer a presença de Lúcio seria a razão legal de tanto sofrimento? Mas sentir que agora os “desejos rastejam feito cobras mansas, sem veneno”, não seria aporte para as suas mais recentes e apoteóticas condutas? Quem pode falar por Malu a não ser ela mesma? Quem é Lúcio aos olhos cegos de Malu? Por estar só, ou aparentar estar assim, Malu sente a morte, que “não sente o cheiro das flores nem vê a empáfia dos urubus”. A morte é um ser dissonante e “mil órbitas me observam”, pensa. “A morte avança em progressão geométrica”. Malu está cercada. Por quem?

Caronte e sua barca, o morto e sua moeda na boca, Cérbero, Estige, o estranho da foice, todos presentes. Malu parece narrar, ao longo de toda a primeira parte de Mosaico de Rancores, o ritual de sua própria morte, mesmo quando vida. “A morte dói, mas a vida são agulhas torturando as pontas dos dedos”, retruca. E nisso tudo, o leitor a ver navios fica, também perseguido pela suposta loucura de Malu. Tudo cinde. Malu é Mnemósine, mas não quer ser memória, não deseja tê-la. Memória é pavor, agrura, memória é morte, é dor. Malu, para quem até os fantasmas são providos de carne e para quem a dor é inerente à carne... A carne que é mais símbolo de morte do que de vida, propriamente. E para quem Lúcio é muitas vezes a encarnação viva da morte, da sua morte. Diária ou eventual, mas a sua morte em particular. O leitor também se encarna. E vive a sandice metafórica da jovem. De novo, a dualidade vida X morte. A vida parece ser menor, pois “a morte é mais excitante, são cavalos vermelhos e selvagens”. A morte, assim como a vida, escondida por debaixo de panos coloridos. Enfim, Malu cria Nepente, a bebida do esquecer. Consegue?

MOSAICO DE RANCORES é mais que simplesmente um título que versa sobre o ciúme, tão bruscamente retratado por Malu, que vocifera aos brados que “a dor dos ciúmes que eu esmago todas as noites entre meus dedos” é a sua diária oração, “uma queda brusca de estrelas”. Ao mesmo tempo em que se mostra indiferente ao mundo que a cerca, Malu representa a desobediência, o desordenamento. A desobediência de quem é deveras coerente com aquilo que pensa, apesar de tudo. “Tudo está enquadrado em uma foto que não posso ver”. E lembrar se torna insuportável. Mas o que faz com que Malu se sinta tão cega, a ponto de enxergar que seus fantasmas são assim, tão palpáveis, concretos e reais? Estar cego é ver demais? O que explica tão avessa disparidade?

“Olhos parados, sem expressão, olhos de pouco ver”. Seria Lúcio a des-visão de Malu, o ver-pouco e/ou o excesso? Lúcio, “o fotógrafo de mil poses”, é um sujeito até certo ponto maltratado pela mente “diabólica” de Malu, que despeja todos os seus ranços na provável conduta promíscua de seu parceiro. Lúcio é um alguém sem sangue se comparado a Malu, corpo distante e alma de incertezas. Na primeira parte do livro, Lúcio é também boa parcela da memória de Malu, cuja vida se dá numa explosão de inquéritos. Um elemento que não está sempre presente, que some, que volta, que é impermanente e que quando volta é pego pelos braços-aranha de Malu. “Lúcio pensa que sou idiota, que não percebo suas estratégias de fuga. Poderia voltar correndo, entrar naquele estúdio e picar todas aquelas fotos indecentes”, verbaliza Malu. “O que posso fazer? Me fingir de idiota como a maioria? Fingir que sou cega?”, complementa num capítulo adiante. Lúcio parece sempre estar fugindo, apesar de sempre estar por perto. “Eu tinha certeza do seu sumiço e agora ele aparece dono de mim e eu procuro os pedaços que me roubaram”. Malu convive com as fugas de Lúcio, no sempre, pois “há vários labirintos entre o Gênesis e o Apocalipse”. Malu não aceita. Malu não aceita?

“E cada pedaço de mim cavalga em tigres selvagens”. E a cada regresso de Lúcio, uma pausa. Uma Malu que também retorna. Malu o ama, não há dúvidas. Não. Há dúvidas! Dubito, ergo cogito, ergo sum. “Amá-lo é mergulhar com os bolsos cheios de pedras num rio verde e calmo, onde descansam libélulas e fantasmas de Virginia Woolf”. Por tudo o que lhe acomete, Malu diz cometer vários suicídios todos os dias. Seu corpo está enferrujado, não consegue mais “mastigar com ternura a singularidade das coisas”. O tempo a massacra. O ciúme, em determinado ponto, parece-lhe inútil. A tristeza, até ela!, parece se ausentar. Joga-se ao alcance de todos e não há quem a agarre. Uma queda eterna. Malu cai diante de si mesma, várias, incontáveis vezes, em luta incessante contra o amor, entidade que “traz restos de outras carnes, gosto de outras almas, salivas espessas de outras bocas, cascos galopantes de outras mãos”. Por isso, traiçoeiro. Malu é também o retrato de quem ama.

“A cegueira me fez forte, me fez perversa. Tateio os seios da multidão. Retiro as vísceras do dia, nada sobra”. O amor de Lúcio a machuca. Malu é somente abismos. Olhos sempre abertos. Olhos de peixe. Luiz surge. Uma pequena redenção. Malu-Capitu? Quem trai quem? Big Bang. Malu se perde? Quem se perde? Há humanidade no amor, e na paixão? Um estrangeiro no leito. Vingança? Malu arrefece? Malu incendeia? Malu duvida. Malu testa a si mesma. Malu sofre com a conclusão de René Descartes. Cogito, cogito, cogito... Quem é Malu, afinal? A que ama Lúcio, a que não ama ninguém? A que ama a todos? Malu finge. Malu pode ser o disfarce perfeito. Trafica-se. Traficante de amor. Uma luta contra Deus. Renasce. “Erva daninha”. Malu é a imagem do pai. Seio de mais-morte. Um ponto de interrogação. Aliás, “tudo que pulsa presume a dor da existência”. Quando Malu gesta sua morte?

“Malu precisa aprender a lidar com a realidade, está tão acostumada a manipular seus fantasmas que se esqueceu da consistência porosa da carne humana. Das dentadas que deixam marcas sobre a pele. Dos tombos, dos joelhos ralados, dos tapas no meio da cara. Dessa loucura cotidiana que arromba nosso esfíncter”. Na segunda parte do livro, intitulada de CLAREIRAS, Lúcio provoca: “Malu nunca será feliz. Precisamos ser medianos pra conseguir a felicidade e ela tem dificuldade em simplificar as coisas. Épica. Começa as narrativas pelo fim, percorre as entrelinhas e se perde. Nunca sabemos o início de suas histórias”. Lúcio é a morte. Malu é a vida, contorcida, imprevisível. Não se pode domar a vida, este mosaico. De rancores.


*

Cinco perguntas sobre o MOSAICO DE RANCORES:

Germano Xavier - Em seu livro Mosaico de Rancores, os passos da narrativa são marcados de dois modos diferentes, ora como uma construção de metáforas nada brandas sobre a vida ora como a voz irascível e tempestuosa das personagens Malu e Lúcio sobre a inaptidão perante a possibilidade do convívio. De que modo a cegueira dos dois, em seus tons passionais e demasiado humanos, ultrapassa o enredo e desemboca no leitor como sendo uma ferida de todos?

Márcia Barbieri - De certo modo, a narrativa foi escrita pensando na inaptidão dos homens viverem em comunhão, da monstruosidade dos relacionamentos... é extremamente difícil conviver com alguém, cada indivíduo é uma singularidade, um cosmos. Além disso, o outro me parece um espelho mórbido, sempre reflete nossos piores defeitos.

GX - A impressão é a de que todos os personagens no livro são cegos, por motivos díspares e semelhantes ao mesmo tempo. O amor é grosseiro, o ciúme é delator, o sexo é artifício, a dor é mansidão. Ao final, é a morte quem amamenta a vida ou é o contrário?

MB – Imagino que seja a morte que amamenta a vida porque sempre nos pautamos e contabilizamos a vida a partir da ideia que temos da morte.

GX - Curiosidade vaga. Como surgiu a ideia do livro? E como se deu o seu processo de escrita?

MB – Não posso negar que a ideia inicial se deu pela minha própria inadequação em relação aos relacionamentos amorosos, assim como minha inaptidão para entender o sentimento de posse. O livro foi escrito de forma bem lenta, porque eu estava mais acostumada às narrativas curtas, quase desisti de terminá-lo, depois de um tempo voltei a ele e finalizei.

GX - “Tudo que pulsa presume a dor da existência”, frase presente no “rancor” número 92 do livro. Dizem que toda experiência humana fornece subsídios literários, Barbieri. Você concorda? O inverso é também verdadeiro?

MB – Concordo plenamente, a vida serve de subsídio para a arte, assim como a arte serve de inspiração à vida.

GX - Referências inúmeras a poetas, escritores, pintores, cineastas e artistas em geral estão expostas nas páginas de Mosaico de Rancores. Parece-me que tal recurso ajuda a engrossar o caldo de contemporaneidade da obra em questão, Márcia. Isso se justifica? Qual a sua visão sobre este ponto?

MB – Não acredito em ideia genuína, somos o tempo inteiro influenciados por outros artistas, tanto clássicos quanto contemporâneos. No “Mosaico de Rancores” queria mostrar com quais artistas dialogava.

GX - Muito além de Malu, Lúcio e Luiz, Elenir e o pai de Malu muito me intrigaram. Qual a importância destes personagens para o todo do Mosaico?

MB – Elenir é um papel bem secundário, Luiz era importante para mostrar as fraquezas do relacionamento de Malu e Lúcio, e o pai de Malu era importante para evidenciar o quanto nos equivocamos ao longo do tempo... Temos olhos viciados.


* Imagens: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhgjwMVh6j7LimnDwzRC23PZiuh8lIrrpu_md1PtS3Gc1i1jpDjQuauHZHYyt6yUadjWgs-Lqa8P2v3OTBg0Jj4DkB4w9QeEQ0PBB2_VxywNqeUsWHsOZM9N0bMYm1ZbQ24umlvQ1QT_nM/s1600/mosaicocapa.jpg 
e acervo pessoal da autora.

quarta-feira, 25 de novembro de 2020

O VELOCISTA, de Walter Cavalcanti Costa




Impressões sobre o livro O VELOCISTA, de Walter Cavalcanti Costa. Walter Cavalcanti Costa é doutorando em Teoria da Literatura na UFPE. A maior parte de sua formação foi realizada na UPE/Mata Norte, com graduação em Licenciatura em Letras, especialização lato sensu em Literatura brasileira e Mestrado Profissional em Educação. Recifense, nascido em 1989, é professor da rede pública de ensino de Pernambuco. Na escrita, realizou publicações acadêmicas em diversas revistas científicas. Publicou Entressafra 89 (2011), livro de poemas e contos que também ganhou curta-metragem, e Marlinda: em diálogo de amor às suas cidades (2017), livro infanto-juvenil lançado pelo Funcultura, em parceria com Milca de Paula. BLOG: http://oequadordascoisas.blogspot.com/ FACE: https://www.facebook.com/germanovianaxavier INSTA: https://www.instagram.com/germanovianaxavier ISSUU: https://issuu.com/art_brazil LATTES: http://lattes.cnpq.br/8697294516715015

sexta-feira, 13 de novembro de 2020

DANCING JEANS - BAIXO AUGUSTA E OUTROS CONTOS, de Milton Morales Filho


 

Impressões sobre o livro de contos DANCING JEANS - BAIXO AUGUSTA E OUTROS CONTOS, de Milton Morales Filho.
* Milton Morales Filho é ator, formado pela EAD; diretor, dramaturgo e fundador do Teatro da Gioconda, além de médico, formado pela UNESP, e escritor. Pelo espetáculo infantil O cadarço laranja, recebeu o Prêmio APCA de Melhor Texto Infantil; três indicações para o Prêmio Coca-Cola: Melhor Espetáculo, Texto e Direção, além do Prêmio como Dramaturgo no Concurso de Dramaturgia da FUNARTE em 2005.
BLOG: http://oequadordascoisas.blogspot.com/ FACE: https://www.facebook.com/germanovianaxavier INSTA: https://www.instagram.com/germanovianaxavier ISSUU: https://issuu.com/art_brazil
LATTES: http://lattes.cnpq.br/8697294516715015

quarta-feira, 4 de novembro de 2020

Kaspar Hauser ou a fabricação da realidade


Por Germano Xavier

BLIKSTEIN, Izidoro. Kaspar Hauser, ou a fabricação da Realidade. 9.ed. São Paulo: Cultrix, 2003.


Jeffrey Moussaieff Masson, Werner Herzog, Izidoro Blikstein... A constatação é verdadeira. Muitos são os pesquisadores, cientistas e especialistas que foram tocados, de maneiras discrepantes, é claro, pela enigmática história de Kaspar Hauser. É no desígnio de tentar a revelação de seus "espantos", que o ensaio intitulado de "Kaspar Hauser, ou a fabricação da Realidade" foi escrito pelo Doutor e Livre-Docente em Linguística, Izidoro Blikstein.

Uma criança vestindo um corpo adolescente, dos 15 aos 18 anos de idade, que não sabe andar, não entende o mínimo do que lhes dizem os outros. Um rapaz estranho, selvagem, quase totalmente desorientado frente ao "mundo já conhecido", que aparece ("aparece", eis o melhor termo a ser aqui utilizado) pela primeira vez numa praça da cidade alemã de Nuremberg, provavelmente em 1828. Um homem. Sim, um homem, um homem que ninguém sabia de onde vinha, para onde iria ou quem era. Uma criatura causadora de um misto de espanto e interesse, que pensava ser as galinhas monstros vorazes - aqui, alguma semelhança com o nosso bravo e engenhoso fidalgo Dom Quixote de La Mancha, criatura de Cervantes que, entre tantas loucuras, desafiava moinhos de vento pensando estar diante de gigantes maldosos? -, mas que também possuía habilidades demasiado notáveis, assim como uma memória excelente e uma boa dose de curiosidade.

Um mito? Algo como as irmãs Amala e Kamala, ou como o caso francês Victor de Aveyron... Este é o perfil do protagonista de todo esse levante de pesquisas e estudos científicos. Blikstein, a partir de uma abordagem intercientífica e histórico-social, analisa o percurso de desenvolvimento de Kaspar Hauser, numa busca incessante em prol de relatar, diante de inúmeras considerações, que a construção perceptiva do ser humano, em todas as esferas de aplicação, depende sobretudo da práxis social, necessária para fomentar o arcabouço referencial-cultural de apreensão de uma suposta realidade, articulando, também, o jogo intencional existente entre a linguagem e o pensamento no caminho do desenvolvimento cognitivo de Kaspar Hauser; e, por conseguinte, como ocorre ou ocorreu o processo de concepção de mundo que o rodeava, posto que Kaspar Hauser esteve privado dos variados estereótipos culturais que condicionam a percepção e o campo epistemológico.

Mas, o que é mesmo a "Realidade"? Até que ponto podemos classificar como "Realidade" somente aquilo que percebemos? E a linguagem, onde ela atua e como ela pode permitir ao ser humano a descoberta da "Realidade"? Difícil encontrar tais respostas... todavia, exemplo melhor para se aprofundar nessa temática do que o de Kaspar Hauser, certamente ainda é mais raro de se encontrar. Apoiado em diversas suposições, Blikstein envereda-se pelo processo de integração que Kaspar Hauser sofrerá ao "desembarcar" em Nuremberg, assim como nos usos da linguagem e nas tentativas de concepção daquilo que sua natureza até então não concebera: a representação do que está à sua volta.

Tentando "dar nome aos bois", o autor insiste em pregar que tanto o pensamento quanto a linguagem se originam de maneira independente, transformando-se posteriormente no modelo de linguagem interna que constituirá a maior parcela do complexo de pensamentos mais amadurecidos, "talvez porque a significação do mundo deve irromper antes mesmo da codificação linguística com que o recortamos: os significados já vão sendo desenhados na própria percepção/cognição da realidade".

Kaspar Hauser, para o autor, aparece como um "modelo de práxis libertadora", o que faz com que o autor inicie um processo de descoberta e investigação, baseando-se, para tal ato, em seu aparelho perceptivo-cognitivo. Conceitos e considerações de inúmeros filósofos, linguistas e pensadores são aproveitados, servindo de base para a construção das "perguntas" a que o autor se destina a "responder". Vale ressaltar, aqui, nomes como o de Santo Agostinho, Pierce, Saussure, Buyssens e até o do nosso poeta modernista Carlos Drummond de Andrade. Mas é o "Referente" o alvo de maior polêmica para o desenrolar das ideias de Blikstein.

O incômodo já se inicia a partir do instante em que o autor cita o "Triângulo de Ogden e Richards", fundadores da ideia de "Referente". A preocupação com a correta comunicação entre símbolo e referência, ou significante e significado, irá propiciar a construção do debate maior sobre as barreiras e obstáculos criados pela influência da linguagem sobre o pensamento. Todos os tipos de signos são impostos a ele, mas o que fica é a pergunta: como Kaspar Hauser estaria apto à compreensão dos significados que têm as palavras - ainda mais por elas possuirem a capacidade de representar coisas -, se ele não atravessou um qualquer processo de aprendizado-sociabilização importante para o desenvolvimento de um método de compreensão sígnico?

E é afirmando que "a educação não passa de uma construção semiológica que nos dá a ilusão da realidade, ou seja, que a educação estimula na criança um processo de abstração", que Blikstein inicia a fabricação de suas teses/hipóteses. E o que dizer de um homem que passa a representar um incômodo? Pois, após algum tempo de convivência com a comunidade da cidade alemã, Kaspar Hauser começa a enxergar a realidade - que aos olhos dos demais estava tão bem ordenada -, com olhos subversivos e de negação, negação dos referenciais que a sociedade lhe insistia em impor, ou olhando para as pessoas, para os objetos e as situações com o espanto de um olhar ainda imaculado, também perturbador. Aqui, a relação do homem com o mundo não é uma relação direta, ou pelo menos não aparenta ser, mas uma relação mediada, sendo que os sistemas simbólicos são elementos que intermedeiam o sujeito e o mundo.

Diante da análise do texto de Blikstein, ficamos à mercê de um arrebol conceitual. Após a devida apreciação, o leitor adquire uma voz, que diz: toda linguagem criada é, posteriormente, utilizada para a comunicação. O uso da voz por Kaspar Hauser, a possibilidade de diálogo, a construção de uma mensagem baseada em outra mensagem recebida, a transmissão no tempo e no espaço da mensagem recebida e já processada, a sociedade como condição da linguagem e para a linguagem, têm de ser colocados como parâmetros iniciais e primordiais para o entendimento de todo o processo de estudo dado a partir do caso de Kaspar Hauser. Por outro lado, a real finalidade da linguagem, e tudo o que lhe é ramificação, ainda permanece enigmática, e não é diferente com o próprio Kaspar Hauser. Bom para todos, pois é o anseio por esclarecimentos dessa estirpe a via que alimenta a chama de dezenas de ciências e correntes de pensamento.

Então, que seja assim... Amém.