quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Maurice, o pianista

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Por Germano Xavier

"O silêncio é uma confissão".
Camilo Castelo Branco


Dia nublado. Vento frio varava varandas e pessoas. A noite era perto. Algumas coisas para os distantes desatinos das vistas humanas eram levadas. Uma cidade à espera, esparsas ruas. Um concerto de cordas e Maurice, pianista e compositor, atração maior. Fama de criar curiosas peças para piano. Maurice, antes do dia de hoje, resolvera que iria parar com sua arte. Longos anos. Já era a hora, dissera ao ser entrevistado por uma jornalista da tevê local. Maurice iria se exibir para o público pela derradeira vez. Prometera ao vivo um espetáculo singelo.

Uma pequena multidão tomou conta da praça. O pianista tocaria. Palco montado. Maurice faria tudo aquilo que um pianista sabe fazer. Maurice entrou no palco, caminhou na direção de seu piano, sentou, ajustou a distância do banco, envergou-se diante das teclas, parou. Maurice respirou profundamente. A plateia observava-o. Eram crianças, jovens, adultos, idosos. Havia um clima de despedida no ambiente. Maurice, neste momento, olhou para cima. Enxergou o firmamento. Céu negro, brilhoso, bonito. 

Por um momento, as memórias de Maurice pareceram atravessar um túnel do tempo. Havia refluxos, regressões. Não havia o futuro. Maurice, depois de se atravessar com a mente, era somente o agora. Concentrou-se com uma lentidão de moveres. O apresentador do evento, com sua voz radiofônica, incitou a plateia. O início estava perto. Tudo agora estava nas mãos de Maurice, literalmente.  Corpo, coração, olhos, mãos, tudo estava em seu devido lugar. 

Todavia, para espanto coletivo da massa ali presente, Maurice não mexeu um só dedo por longos minutos. 58 minutos, precisamente. Maurice não tocou, não fizera o que haveria de ser feito. Fez o que qualquer pianista em igual situação não faria. Ele não tocou! Não, não! Ele não tocou! O pianista não tocou. Ao piano, Maurice executou o silêncio. O pianista bramiu, em seu ato final, a grande pausa. Fez o piano tocar silêncio para que todos ouvissem os mais rarefeitos sons do mundo, que porventura jamais poderiam ser ouvidos se ele tocasse o teclado preto e branco de seu piano: os tambores dos corações sem pressa, as tonalidades das respirações fogosas, os sussurros das mentes operantes, os chiados nas pregas do couro das poltronas, sorrisos cantantes de crianças felizes, os pigarros carentes, as lamúrias de amor...

E todos escutaram pela primeira vez sons inaugurais. Foi como promover nascimenos ali, para muitos que se encontravam no local. Não tocando, Maurice tocou. Era sua última peça. Maurice, diante do negro piano, esperava algo. Era o ápice. O desfecho triunfal. Maurice meditou. O piano, imaculado, tocara naquela noite as melodias mais incríveis. Rapidamente, quase de esguelha, Maurice olhou para as gentes. Levantou delicadamente. Visitou com os olhos o pulso que sustentava o relógio. Achou por bem descer os lances da escada que dava para o fundo do palco. Depois, seguiu a lua.


Imagem retirada do site Deviantart.

Um comentário:

Anônimo disse...

palavras desnecessárias para comentar tão bela e intrigante narrativa. Tão desnecessárias que creio até que este comentário se vai autodestruir...
parabéns, amigo!

Luísa