quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

A vida na berlinda

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Por Germano Xavier

“Se viver é sentir-se perdido, a lucidez é saber-se perdido.”
(Frédéric Schiffter)


Para se viver, não há uma receita única. “A vida é a de cada um”, já dizia José Ortega Y Gasset. E cada qual é um vazio à espera de alguma água. Durante toda a nossa vida, fugimos de quem já fomos um dia, mesmo que por pouco tempo - sinal de aprendizados? Por vezes, conseguimos escapar, outras não. A todo instante, parece que entramos em contato com a existência da essência das coisas, chegamos a entendê-la como real, mas logo somos afetados por sua falta. Sim, cavalheiros, o essencial existe e falta. E como falta, some.

E como às vezes o único bem é o nosso ser, requeremos o bem que mais nos aporta, que mais nos incendeia, que menos nos castiga. Por isso, buscamos em meio a nossas mortes diárias o amor nas qualidades de alguém, o abrigo nas aparências que nos são generosas e o estilo naquilo que tende a se perder de vista. Traímo-nos compassadamente em busca de mil caminhos que não nos levarão a absolutamente nada, mas caminhos. Seguir ou se deixar abater pela desordem do mundo, eis uma questão difícil. 

Qual o limite de nosso próprio charlatanismo enquanto ser humano? Onde dará o impostor de nós? A traição é mesmo a maior característica do homem? Sacrificamos verdades históricas em prol de verdades ideais, assim sem mais nem menos? Quão vago se encontra nosso ideário ontológico? A vida e suas questões perturbadoras, fazendo-nos duvidar de movimentos antes tidos como pétreos, inquebrantáveis, mas de composições bem tênues. 

A ideia da realidade a la Platão, alimento de cárcere do homem por longos séculos da civilização ocidental, pode a qualquer momento dar lugar à crença na verdade do reflexo. Para isso acontecer, basta acreditarmos na refundação do homem e na possibilidade de reformulação do caos instalado, porque antes da essência vem a existência. E existir, como sabemos, custa muito.

Viver, cavalheiros, é saber onde enfiar a cara no resoluto espaço necessário de aparição, mas também saber desaparecer na hora certa. Burrice é esquecer-se de si mesmo e procurar no outro a base para uma ideologia. O ser ideológico, que é artefato mais da massa do que de si próprio, pode ser encarado como uma aberração. Por que mesmo deixamos de cuidar de nós e passamos a transferir cuidados aos outros, se a preocupação maior é manter-se vivo diante das possibilidades diuturnas de morte?

Viver é deixar de disse-me-disse. E doar-se, é morrer? Onde fica a fonte de todo o prazer possível? Quais as puras aspirações a sentir nossos pulsos em sangue? Emprestar um pouco de nossas vidas a quem? Por que acreditar que ser grande é conseguir trocar de pele facilmente? E esse palavrório todo, de que servirá ao final de tudo? Um conselho soaria impróprio? Se possível, deixemos de concluir os pensamentos, a vida requer reticências. Muitas reticências...


Este texto foi escrito após a leitura do livro SOBRE O BLABLABÁ E O MAS-MAS DOS FILÓSOFOS, de Frédéric Schiffter.


Imagem do topo: http://www.deviantart.com/art/sea-ghost-03-62561352

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