Por Germano Xavier
"Um final não se responde,
Ainda que finde."
(M.B.)
Mariana Basílio, autora do livro Tríptico Vital (Patuá, 2018), é também a mãe-voz dos livros Nepente (Giostri, 2015) e Sombras & Luzes (Penalux, 2016). Mariana é a pintora e a pintura de um universo poético muito particular e, ao mesmo tempo, coletivo, pelo qual orbita sua palavra e todo o seu poder de observatório: a Vida e tudo o que nela se inicia e/ou finda. Para que esta jornada se prostrasse de maneira mais sensível e palatável aos seus leitores, Mariana escolheu dividir seu mais recente livro em um objeto trifásico - daí a imagem de um tríptico.
De uma proposta que beira a absurdez, tamanho o gigantismo do percurso escolhido - nada menos que, como supracitei, a vida inteira de nós-todos, seres humanos. Em DA EXISTÊNCIA, primeira fase do tríptico, Mariana invade todos os úteros possíveis (Terra, Dor, Cor, Sentido, Homem, Mulher...) e caotiza o fenômeno da abertura inaugural da vida, e até de bem antes, quando ainda éramos/somos apenas uma ideia ou nem isso. E se não há esconderijos, se não há para onde fugir uma vez nascido, o negócio é viver. É assim o começo, que na verdade também é já um fim. Mas do que se trata "viver"? O que é "viver"? Há um sentido nisso tudo se a vida é também a certeza de uma morte próxima e até inesperada? Tal eclosão é dolorida, é sonora, é corada. Tem o sangue dos milênios. O nascer é também um grande sertão. Ser-tão vital.
DA EXPERIÊNCIA, segunda fase tríptica, é sobre a caminhada propriamente dita, sobre os passos, sobre a pujança amadurecida por dentro, sobre uma estagnação perceptiva: a de que estamos indo, mas para onde? Sobre uma pegada já instaurada socialmente ou sobre uma vontade de revolta. A esquina para a direita ou para a esquerda. Um estudo sobre o protagonismo e sobre a resiliência nossa de cada dia. Sim, assim mesmo, um lugar recheado de clichês, não da obra, mas os clichês das vidas que simplesmente vão sem rumo certo para lugar-algum-nenhum. O que perseguimos é colocado sobre uma mesa de discussão. Mariana anatomiza as sanhas, as iras, os recrudescimentos, os instantes de felicidade, as minúcias. Conclusões, decisões e argumentos são debatidos. Mariana põe a mão sobre o mundo e, feito uma ventríloqua, manipula com destreza de aranha tecedeira o não-manipulável, o que nos foge ao alcance dos olhos-nossos-nus de tudo para-sempre.
Na terceira fase, intitulada de DA EXTENSÃO, a autora faz jus ao título e expande todo o panorama normal sobre o fim ou sobre as possibilidades dos fins, pois há na poesia de Tríptico Vital um espaço exclusivamente destinado para o além-morte, mesmo que ainda em tons de segredo ou de uma outra gravidez místico-misteriosa ainda não inspecionada suficientemente. Há um passeio, um tour pelo fundo de todos os poços, um safári por todas as nossas de-composições e re-composições, um diálogo com os mais impressionantes círculos da existência e da resistência mundana. Mariana rompe o breu, amadurece o atordoamento e indetermina, sábia que é, todas as rotas. Tudo isto, com uma classe e um fundamento poético de densidade raríssima em nossos dias.
breve entrevista com a autora
Germano Xavier: Mariana, desculpe-me, mas eu devo a você uma exclamação após a leitura do seu mais recente livro, o TRÍPTICO VITAL: Que livro, mulher! Fazendo uma alusão e retornando ao seu “Rebento”, poema do seu primeiro livro NEPENTE, eu lhe pergunto: sua intenção ainda é a pura essência?
Mariana Basílio: Não, pelo contrário. Vivo o que atualmente é a concretude do que desenvolvo, no sentido de contexto social e aporte filosófico. Penso que não há essência, ao menos como conceito permanente ou imaterial, que caiba na corpulência do que é a vida em sua materialidade. A pureza, no sentido da palavra, é então feita para ser desfeita. Voz-por-voz, a poesia tem essa função primordial: transformar o que existe em algo ainda inexistente – seja como sensação ou como ideia e resultado.
Germano Xavier: Tríptico Vital é uma imensa jornada pelo ser humano e pela vida dividida em três fases também amplas e complexas. Que fim temos (teremos), Mariana? Que trajetória seus versos implicam?
Mariana Basílio: Tríptico Vital foi meu primeiro exercício literário escrito em uma tomada só, um poema longo, escrito cronologicamente, apresentado cabralinamente: cada subseção e seção apresentam uma luta e uma disputa do eu-lírico, permeado de outras vozes e do passado e presente da humanidade em sua ideia de futuro (que sempre acaba por acontecer). Nesse sentido, é mesmo uma jornada. Como me disseram em janeiro, é uma espécie de épico pós-moderno. Eu gostei da observação, não tinha visto por esse lado. É também minha ideia poética que procura estabelecer diálogos com A Negação da Morte, de Ernest Becker – assim como com as indagações trazidas da morte, o canto pela morte, de Hilda Hilst.
Quem souber que fim teremos, por favor, se apresente em minha residência, a minha casa dos lírios. Será recebida(o) com festa!
Meus versos implicam, entre outras possíveis reflexões, um dos sentidos principais de todos os que já tentaram ou escrevem poesia: emancipar pela palavra os sentidos indizíveis da própria existência, a partir de nossa realidade social.
Germano Xavier: Mariana, a possibilidade de existência para além dos elementos que perpassam a ideia que sabemos/temos a respeito da vida e da morte sempre lhe foi muito ativa em tua poesia. Percebo que o Tríptico Vital também pode ser visto como um esforço seu em se aprofundar neste panorama. O que há de concreto neste meu pensamento?
Mariana Basílio: Tem muita verdade em sua observação. Mas o Tríptico Vital eu não vejo como um esforço, foi mais um processo naturalíssimo de estabelecer um diálogo com o silêncio da minha própria persona de uma forma mais filosófica e crítica, como se eu procurasse apontar para refletir o que seria, enfim, esse retrato da morte em mim. O que fui, o que sou, o que serei? O que, afinal, nós somos? São questões que me acompanharam durante toda a vida, e provavelmente ainda me assombrarão até o fim.
O flerte entre vida e morte para mim é a forma natural do crescimento, a partir do momento em que eu soube que deixaria de existir. Eu me recordo até hoje da sensação, eu era uma criança de oito/nove anos. E fiquei espantada, de mover as nuvens pelos dedos.
Germano Xavier: Fale-nos um pouco mais sobre o processo de elaboração, de escrita e de publicação deste teu belíssimo e profundo Tríptico Vital, Mariana.
Mariana Basílio: A ideia do livro aconteceu após minha residência artística na Casa do Sol, da Hilda. Era outubro de 2014. Nomeei o livro e o projeto surgiu na sequência disso, como um sopro. Costumo escrever livros assim: primeiro o nome (o insight), logo o projeto do livro (o que também pretendo transmitir nele), e depois a escrita (e sucessivas lapidações).
Como o livro surgiu na Casa do Sol, pela inspiração do lugar e coisas que vi e lá vivenciei, além da descoberta da leitura de A Negação da Morte – um dos livros de cabeceira da Hilda – resolvi dedicá-lo a ela, que tanto se intrigava com a temática da elaboração e desenvolvimento (finitude) da vida humana como eu.
Em 2017, fui contemplada com o edital do Prêmio ProAC 32/2017 do Governo de São Paulo para criação literária e publicação dele em 2018. Assim, me aprofundei na escrita da obra, e acabei descartando mais de cinquenta poemas esparsos iniciais, porque percebi que não eram o que buscava com o sentido do livro.
Então, em certa noite de outubro de 2017, tive um insight derradeiro: meu livro seria um poema longo dividido em três partes, com início, meio e fim da vida da eu-lírico. Seria um diálogo entre problemas sociais, filosóficos, existências, particulares e coletivos, em meio a possibilidade da morte que nos pertence.
Germano Xavier: Por fim, quem é a escritora/poeta Mariana Basílio após ancorar no oceano da literatura um Nepente, um Sombras & Luzes e um Tríptico Vital? Há caminho de volta para quem se volta à poesia, Mariana? O que esperar da Mariana para o futuro?
Mariana Basílio: Sou apenas uma autora que vive para procurar a sua verdade, o que sou enquanto possibilidade, enquanto ainda existo. Ainda que seja completamente insuficiente procurar a vida a partir do teatro do absurdo que é fazer/ser literatura.
Mas diariamente continuo fazendo o que mais amo: lendo diferentes autores, traduzindo, construindo a minha verve autoral. Sinto que escrevi ainda pouquíssimo, tão pouco, isso me frustra.
Verdade seja dita: eu detesto meu primeiro livro (Nepente), o tenho como um esboço mal executado, mas necessário para que eu assumisse meu lugar no mundo; o segundo livro (Sombras & Luzes) eu acho até perdoável – em partes, pois ainda estava bastante influenciada pelos estudos dos movimentos literários que me envolvem na formação (como se eu ali buscasse a minha identidade); já no Tríptico Vital sinto que surjo mais regular e autêntica na autoria, pois amadureci mais o meu olhar do mundo, o meu trajeto pessoal também.
O que esperar da Mariana? Nada. Toda expectativa gera frustração.
Só posso dizer que trabalharei cada dia mais intensamente para trazer projetos diferentes. Tudo até aqui é apenas um começo do que espero publicar nos próximos anos, seja no que preparo no campo da tradução (Anne Sexton, Gabriela Mistral, Sóror Juana Inés de la Cruz), seja no romance (meu primeiro livro de prosa deve ser publicado em meados de 2020), ou na própria poesia (meu provável próximo livro, Megalômana, deve sair em 2021).
Mariana Basílio é prosadora, poeta, ensaísta e tradutora. Nascida em Bauru, interior de São Paulo, em 1989. Mestre em Educação pela Universidade Estadual Paulista (Unesp). Autora dos livros de poesia Nepente (2015) e Sombras & Luzes (2016). Colabora em portais e revistas nacionais e internacionais, tendo traduzido nomes como May Swenson, Alejandra Pizarnik, Anne Sexton, Edna St. Vincent Millay, Sylvia Plath e William Carlos Williams. Com patrocínio do prêmio ProAC (2017) do Governo de São Paulo, publicou em 2018 seu terceiro livro, o poema longo Tríptico Vital (Patuá). O projeto também foi finalista do programa de Residência Literária do SESC (2018). Mantém o site www.marianabasilio.com.br.
* Imagens: Acervo da autora e http://www.literaturabr.com/2018/12/10/triptico-vital-a-grande-aventura-humana-por-mariana-basilio/