domingo, 9 de agosto de 2015

Entre Mares e Marés: Conversas Epistolares (Parte VII)

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Meu querido amigo,

Aqui estamos nós prolongando deliciosamente este convívio sem pausas. Amizade é uma coisa sem interrupção, que mesmo quando está no modo de economia de energia continua a funcionar. 

Pegando-te na palavra, deixa-me dizer-te que eu estou bem, melhor ainda quando me solto entre estas linhas que vão direitas a ti e que me ordenam as ideias. Reparei num pormenor curioso, coisa minha, de prestar atenção a detalhes inócuos: ao copiar parte da tua carta, deixei escapar uma letra e por lapso meu o meu nome “Clara” transformou-se em “Iara”. Pensei que poderia ter sido outra pessoa, que mais uma letra, menos uma letra, faz diferença na vida das pessoas. Como no filme “El Secreto de tus Ojos” em que o escritor escrevia no bloco-notas “TE AMO” ou “TEMO”, já não me lembro bem; sei que ao acordar aquilo gerava uma enorme inquietação na sua cabeça de criador. Passarás tu por inquietações semelhantes?

A arte do encontro, como descrita pelo nosso admirável poetinha, é essa que nós vamos cultivando como sabemos, de maneira meio coxa, disléxica, mas sempre próxima e carinhosa. Como sabemos e podemos. 

Eu não conhecia a “política do café com leite”, mas sei que esses joguinhos malandros se usam muito, fazem parte da estratégia e das alianças políticas e comerciais, existem entre empresas, partidos políticos, países e regiões. Modernamente chama-se a isso “tráfico de influências”, expressões suaves para amenizar o impacto negativo do conceito que lhes deu origem. Dir-se-ia que política nos dias de hoje é mais uma forma de expressão do poder económico e pouco tem a ver com ideologias, princípios ou filosofias. É um programa de ação que se vai adaptando às circunstâncias e ao momento global (soa bem, não é?), um discurso feito à medida de quem o ouve, que utiliza as mesmas estratégias de marketing que uma empresa de lacticínios ou uma marca de roupa. Estarei a ser demasiado radical?

A nossa paixão comum pela vida, pelas coisas simples e palpáveis, que tu tão bem sublinhas, é a mesma que leva os teus pais a partilharem esse momento da xícara de café (que nós por aqui chamamos chávena; xícara é considerada quase um arcaísmo, embora tenha uma sonoridade deliciosa, insubstituível) com pontualidade e regularidade britânicas. São rituais que nos ajudam a ter uma vida regrada, doce, e a eternizar momentos de partilha em que nada precisa de ser dito. Esse é o objetivo máximo da comunicação, não é? 

Já deves ter reparado que estou a ganhar coragem para enfrentar o teu desafio maior, quando me pedes para explicar o que é o amor. Entretanto deixa-me falar desse café ou outra bebida que tomaremos juntos, já sei até onde vai ser: em Évora, em companhia da nossa fotógrafa de eleição, guia turística e cozinheira de mão cheia. Como sabes este fim-de-semana foi dedicado a conhecer a região: Évora, Évoramonte, Estremoz e toda uma série de herdades e vinhas ali à volta. A Cristina é uma cicerone única, que vai explicando o caminho a casa passo. Ela conhece ao pormenor a região que se fez sua companheira há décadas e em cujo isolamento encontra um abrigo e uma tela de fundo para os dias. 

Lá estivemos, várias meninas, moças-senhoras conforme a luz do dia e ao ritmo da conversa adolescente. Com a minha família, um exército de mulheres, e a Cristina, vasculhámos tudo o que a região tem de mais belo, ficando ainda muito por descobrir, segundo ela. Provámos dos melhores vinhos, comemos pratos caseiros feitos por mãos de fada e passeámos entre gentes acolhedoras e gentis. O povo lá é assim: o vendedor da feira de Estremoz que diz às senhoras e meninas que a coisa mais bonita que ali tem não é a sua mercadoria mas as clientes que por ali passam; um outro que faz negócio com a Cristina mas diz que não precisa de pagar logo, paga quando voltar, daqui a quinze dias; um agricultor-vendedor que explica todo o processo de reprodução do abacateiro, com a maior das gentilezas, roubando tempo à venda. E uma fila de trânsito que se forma só porque uma condutora resolveu parar para conversar descontraidamente; a Cristina diz-me: “Aqui é assim! Ninguém buzina; se fosse em Lisboa já estávamos todos aos gritos!”

Mas Évoramente foi a paisagem que nos encheu os olhos da alma de matizes várias, fomos lá roubar a luz do dia e obrigar o sol a esconder-se; fotografámo-lo sem piedade, captámos toda a luz do local, cada pormenor das casas caiadas, das telhas e do piso, das paredes desgastadas da velha igreja, das muralhas, do cemitério. Sempre com a Cristina no comando e um gato tímido seguindo os nossos passos. 

Há uma curva perigosa no caminho; creio, aliás, que o são todas... Depois de ultrapassá-la sentimos que valeu a pena correr alguns riscos para aceder a tal paraíso. Este é um dos sítios onde nos farás companhia, isso é ponto assente. E depois imaginei que a nossa comum amiga, leitora e intérprete de exceção poderia muito bem cantar uma morna sob aquele céu muito azul sem limites. Já imagino a Sant’Ana com os seus cabelos côr-de-fogo e voz suave e dolente a desafiar a quietude alentejana. Creio que vamos ter que criar esse momento. Creio que o gato que toma conta de Évoramonte, ou do seu centro histórico, se encarregará de passar a mensagem.

Mas não penses, meu amigo, que fujo à tua interpelação. O amor? Se te disser que não sei, não vais acreditar. Mas saberá alguém explicá-lo? Eu sei o que é afeto, desejo, vontade de estar próximo, de fazer coisas com alguém. Carinho, admiração, cumplicidade, intimidade, medo, insegurança.

Febre, paz, relaxamento total, sensação de entrega e abandono. Respeito, confiança, um doce hábito que se cultiva. Se o amor tiver alguma relação com isso, sou capaz de tê-lo visto de longe. Caso contrário, pode ser só uma construção dos poetas, uma criação literária, destinada a complicar a vida dos mortais. Será? No dia em que soubermos exatamente o que é amor, terá ele ainda algum sentido?

Agora devolvo-te o desafio, passo a bola, e entrego-te nas mãos a granada com a espoleta ativada. Desenrasca-te, como se diz em terras lusas.

Fico-me por aqui, amigo de regiões quentes e cheias de memórias, que um dia partilharemos sob um sol alentejano. Ou baiano. Ou luandense. O que não sendo igual, poderá ter efeitos semelhantes. Haja chapéu de abas para tanto sol!

Um beijinho muito grande aqui desta Europa do Sul, tão perto de África que com ela se confunde.

Clara
Lisboa, 23 de Julho de 2015


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Clara,

A amizade nossa enraizou, entrou pela terra, bebeu da seiva da vida verdadeira e agora está a cada dia gerando fecundos rebentos de luz e amor. Vejo muitas coisas bonitas criadas por nós dois, e por nossos outros também, que se proliferam vivos a nos aumentar em volume e vidência, desde o momento-instante em que demos o primeiro passo entre as palavras e os pensamentos. Você, sempre generosa, abriu vestíbulos de sol para que eu pudesse aprender a ser mais e, sendo, auxiliou-me também em minhas caminhadas de olhares sobre tudo no mundo.

Realmente, Clara, como é deveras interessante este teu colocar-se. Como uma mísera letra pode conturbar um presente feito de tempos de memória. Iara certamente não é você, mas bem que poderia. Mãe d’água no folclore brasileiro, personagem lendário de beleza fascinante, sereia Uiara encantadora dos rios que apaixonam os homens, você nas entrelinhas, mãe dos meus dias leves de alegria e sol.

Durante o processo de criação de poemas ou textos em outros gêneros, vez ou outra fico a contar letras, sílabas, escandir versos, testar sons de desfecho, tudo no desígnio da procura da palavra ou da expressão que julgo perfeita. E, de novo, percebo como cada palavra tem o seu lugar dentro de um texto. Existem palavras que não cabem em poemas, mas adentram bem as prosas e vice-versa. Dizem as más línguas que uma letra ou palavra no lugar certo ou errado pode mudar o mundo, e eu sou daqueles que acreditam piamente nisto. Como escreveu nosso Carlos Drummond de Andrade, mestre dos magos da poesia, temos a "obrigação" de penetrar surdamente o reino das palavras, respeitá-las, admirá-las e usá-las com o pulso necessário para as grandes revoluções humanas, mesmo as mínimas e diárias.

Não, Clara, você não está sendo radical. Acredito que suas palavras englobam um sentimento mais que universal acerca do que vem acontecendo mundo afora em quesitos atrelados à política. É como se disséssemos: a política perdeu a política ou, ainda, não há mais política na política. A jogatina é feroz e no fim os umbigos de cada um são os fatores que mais prevalecem em termos de importância. No Brasil, a coisa não é diferente. Aqui, como diz um colunista famoso, é o país da piada pronta em aspectos políticos e parece que tudo finda numa enorme “pizza” ou marmelada. Poucos conseguem desempenhar um papel digno quando no alto escalão das esferas políticas e de governo. A maioria não está nem aí para as necessidades da população, a verdade é esta. Tem muito de senso comum no que escrevi aqui, eu sei, mas o sistema assim gira e vai e segue.

Sobre o Amor, Clara, também não ouso. Cada um de nós tem seus motivos, cada qual sabe a dor do amor, a sua delícia, o seu tom no diapasão da vida. Eu não sei de quase nada sobre ele, apenas imagino-o. Sonho com ele, quem sabe, um dia, aquela coisa de proporções invislumbráveis a nos deter as vistas mornas dos dias. Enfim, fico também com a incerteza da resposta e a prontidão da espera, já que o tal-imenso nos acena os pulsos mais esplendorosos sempre que.

De pronto que sim, Clara, é na simplicidade de nossas rotinas que construímos os alicerces para uma bonita caminhada. Meus pais possuem há muito o ritual do café da tarde de que lhe falei. E por falar em pais, hoje comemoramos o Dia dos Pais aqui no Brasil – em Portugal também? Tem um quê de intuito comercial a fomentação de tais marcos, todavia não tem como ficar impassível diante das significações oriundas da presente datação.

Meu pai sempre foi a minha maior referência. Meu pai, como escrevi certa vez num texto há bem uns 7 anos, “queria dar tudo de presente, entregar o mundo inteiro, a alegria toda do mundo, a vida ou qualquer coisa assim de verdadeiro”, a mim. E continuando num gesto de, reproduzo cá embaixo um pouco do mais textual em sua homenagem, numa voz minha para ele em lembranças: 

“Filho precisa ser”, pensou. E lembrou de quando furava a parede da garagem para construir a rede da brincadeira de bola no ar. O irmão era maior e, por vezes, vivia em outro mundo. O mais novo fazia castelo modelando tijolinhos de barro molhado com caixinhas de fósforo por detrás da casa, quintal de mangueira que já não existe mais. Ele aprendendo a caminhar sozinho, amparado. O filho subia o pé e era como subir ao sonho. Nas costas, sempre a figura de proteção dele, dizendo “cuidado” sem privar da liberdade certa. Era amor e não era outra coisa. Emudeceu por um instante. Pensou: “Eu não seria nada se não fosse meu pai”. Ou quase nada, porque tinha a mãe também. Depois lembrou dele com aquela velha faquinha insubstituível modelando com mãos de Deus a futura prótese, perto do jardim, raspando raspando raspando, construindo sorrisos de gente, colocando sorrisos na gentes, restaurando sorrisos perdidos, de gentes também perdidas, no meio das rosas e das plantinhas verdes da mãe. Era puro encanto. Aquelas sobrancelhas arqueadas, quase sem, diminutas, a calvície que sempre foi, o olho manso de quem tem o coração bom e a alma limpa, modelando com o foguinho de álcool, prudente, fingindo uma sisudez que era mais o liame de toda uma vida de sacrifícios para agora estar ali, todo de branco, direto do Pernambuco mais seco, mais sofrido e azedo, ostentando uma missão de honra e honestidade. “Meu pai é o maior homem do mundo”, o filho matutou. E olhava-o de longe, de perto, o tudo em nós que havia, o cheiro ocre dos produtos com nomes catastróficos misturado a alicates e brocas, um ar blasé atmosférico no fim da tarde, quase barroco, agudo, hora de fechar o engenho e tomar o banho merecido. Cirurgião Dentista de ofício, o velho era mesmo sábio em amar. Amava sempre quando ligava o chuveiro quente para o filho menor, dizendo mais uma vez “cuidado, use o chinelo”, para no outro dia se poder ir ao mercado fazer a feira e organizar produto por produto na hora da volta, rótulos bem visíveis, tudo muito organizado, tudo muito. Era mesmo um pai em excesso. Um pai que não conseguia ser pouco. Pai sem plágio. Amava no dia em que o escorpião picou a noite do pé branco sobre a Iraquara de lembranças. Ele dormindo e o filho mais novo pensando no presente do pai. Queria ser o autor do texto e resolveu e foi. Subverteu a ordem lógica das coisas e seguiu, pertinente, sabedor das hierarquias. Lugar de rei é lugar armado de uma beleza moral torcida em flor. O filho, crescendo e oblíquo, fingiu a discrição e quis a vulgaridade regada a palavras. Pensou: “Não sei fazer outra coisa senão escrever...”, e pensou mais um pouco. Não precisou de venenos, licores, cigarros. Foi o exemplo e espelho. “A gente aprende que, como o espinho, a pétala também fere”, com os seus botões, ensimesmado. O pai ensinou que a vida é vontade, que se precisa ir com garra, sem atropelar ninguém, e defendeu defendeu defendeu a cria. Não sabia ele que o filho já pedira muito aos céus a felicidade e a vida longa, que o filho já chorou muitas vezes com medo de qualquer coisa de mal, que o filho jurou ser coisa boa no mundo, orgulhar um coração que cabe um universo inteiro.” 

Está aí, moça bonita, uma espécie de amor que conheço. Um amor que atende pelo nome de Carlos Adailton Xavier, ou simplesmente “painho”. Meu pai é uma de minhas maiores saudades, Clara. E você, do que sente saudade?

Sendo assim, deixo-te um carinho.

09 de agosto de 2015, Caruaru de um Pernambuco Manguebeat.


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Clara e Viana são dois amigos de longa data que se redescobrem e desenham o mundo à sua volta pelas palavras que encontram, que constroem e que usam para pintá-lo. (De longa data em face da finitude da vida, recentes diante da imensidão da eternidade). Mas, que importa isso? Eles propõem-se descobrir dois universos complementares, sem artifícios nem maquilhagem, para além das máscaras habituais, as que protegem o ser humano da solidão e das agressões.

Clara e Viana são dois heterónimos, duas personagens que ganham vida através do tempo, do ritmo da palavra e do sabor dos respectivos sotaques.

Luísa Fresta e Germano Xavier dão vida a este projecto.
* Imagens de Cristina Seixas.

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