sábado, 22 de agosto de 2015

Sempre e para sempre

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Por Aparecida Izídio e Germano Xavier

para Francisco Izídio, in memoriam


No começo da caminhada de agora já em fins de partida, quase não parei para perceber que seria assim, ou melhor, que poderia ser assim desse jeito meio que doído, com essa força que sufoca o peito e que não alarga o tempo nem afasta o temor. Em minhas lembranças mais vivas, lá estava ele, sempre, portentoso como uma aurora inteira de brilhos a matinar invernos e verões. Era sempre e para sempre será. Decerto, um homem simples, do campo, sem escola ou com quase nenhuma - cursou até a 3ª série primária, dizia isso com orgulho! -, que tinha por mim e por minha vontade de aprender a maior admiração possível de se imaginar.

Os tempos nunca foram fáceis. A lida era diária e oprimia até os mais rijos músculos e pulsos vitais. Mas as lembranças... jamais, elas nunca morrerão. Levava-me à escola, aquele homem, como quem adiantava a visão do paraíso para a filha querida. Ajudava-me a atravessar o rio. Em época de enchentes, colocava-me no colo e seguia titubeando com os pés descalços sobre as pedras e pequenos troncos para que eu não perdesse a aula do dia, para que eu não sujasse os pés ou simplesmente para que eu pudesse chegar.

Incentivava tudo o que eu fazia. Confiava que era sempre o melhor a ser feito, sem entender ao certo os motivos. E foi sempre assim. E continuou sendo assim. Durante dezessete anos moramos em uma casa muito humilde, eu partilhava de todos os seus medos, sentia as suas necessidades, queria que fosse diferente. Uma filha que funcionava como se fosse o próprio coração do pai. Sabia que eu poderia ser a chave da mudança. Acompanhava-o à feira livre, ao mercado, nas negociações de galinhas, ovos, carvão. Nem sempre gostava do que via ou ouvia. Até hoje guardo muitas imagens mentais. Impossível esquecer.

Eu queria protegê-lo. Queria que minha mãe soubesse que ele tentara trazer mais coisas na sacola. Nem sempre acontecia o entendimento. Assim, das cinco filhas, fui crescendo a mais preocupada, adulta antecipada. Estudava o tempo todo, os livros eram minha companhia. A insônia assolava a janela do meu quarto. As estrelas encantavam. O céu era lindo. Quando tinha lua, eu passava longo tempo sentada à janela. Não queria perder a luz da noite. Não tínhamos energia elétrica, não tínhamos televisão e as noites passavam a passos lentos. Meu pai levanta-se às 4 horas, fazia o fogo, preparava o café, ia ao meu quarto. Eu ouvia sempre a mesma alegre reclamação: “Ainda não dormisse?”. Corria para o café. Contávamos umas histórias curtas, eu voltava a deitar. Ele ia tirar o leite e na volta me acordava.

Assim dividíamos nosso tempo, como a estarmos num passeio calmo por uma campina de verde sereno. Ele foi a pessoa que mais me teve. Não fazia nenhum esforço para que fosse assim. Não fugia dele! Um dia ele comprou um lampião e deu-me de presente para que eu fizesse as tarefas à noite - agora, estudava durante a tarde e ajudava na queijaria que tinha perto do sítio.

Fui para a faculdade. Chegava tarde. Ele ia me encontrar na porteira. Agora, tínhamos energia elétrica e ele piscava a lâmpada para dar sinal e para que eu não tivesse medo. No caminho, contava as aprendizagens, as brincadeiras, sobre as amizades. Ríamos. Segui os estudos, ele mal percebeu. Raramente falamos sobre. Ele não entendia, não sabia o que era nem para que serviriam tantos diplomas. Não compreendia a razão da minha ausência. Tentei explicar o que era, o que fazia, o que poderia proporcionar, mas ele, vez ou outra, tornava a questionar as viagens, a quantidade de livros. O tempo. Se não já bastava o emprego, a faculdade.

Hoje, depois de sua ida para o paraíso dos grandes e honrados homens, acredito que eu só deveria ter dado tempo. Não consegui contar histórias durante todo esse percurso, os risos diminuíram, as responsabilidades foram mais severas, a minha fragilidade deu lugar à fuga. Após sua viagem, percebi toda a crueldade do tempo. No fundo, sempre quis que ele me admirasse, apenas isso.

E no fim da jornada de agora já em começo de fins, quase não parei para perceber que seria assim, ou melhor, que poderia ser assim desse jeito meio que sofrido, meio que pendido na direção da tristeza, mas uma tristeza luzidia, com essa força que abraça o peito e que fabrica ainda mais amor. Em minhas lembranças mais vivas, ele estará lá, sempre, portentoso como uma aurora inteira de brilhos a matinar invernos e verões. Sempre e para sempre.


* Imagem:  http://www.deviantart.com/art/River-394087741

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