Viana, esta carta é ditada pela saudade.
Das nossas conversas, também, mas sobretudo das pessoas que já fomos e daquelas em que nos tornaremos.
Hoje ouvi a minha voz gravada há quatro anos. É estranho, eu já não sou bem aquela pessoa, dizer aquelas palavras agora seria plagiá-la. Continuo a subscrever o que diz, mas a voz endureceu e as esperanças são outras. Vamos empurrando com a barriga até atingir os nossos objetivos, que são simples: ser feliz e ajudar outros a sê-lo também. Tudo o mais parece ser secundário. Apenas os caminhos para se chegar lá podem parecer tortuosos e cheios de armadilhas. Como é o teu?
Falámos já das nossas rotinas e do meio local em que nos movemos. Não vou retomar esses diálogos porque gosto de pôr à prova a nossa memória das circunstâncias e das emoções, mais do que dos factos em si.
Pensei há dias que não gosto de política, ou melhor, de falar de política em público. Não significa que não me interesso, pelo contrário, apenas que nada tenho a dizer de relevante tendo em conta as opiniões fundamentadas de pessoas mais informadas do que eu, de especialistas, de cidadãos atentos. Fico a pensar se é possível que o nosso mundo esteja a viver em caos apenas porque andam soltos meia dúzia de monstros. Será que nós é que os parimos? Isso seria assustador. Nós manifestamo-nos contra extremistas e tentamos fazer prevalecer os valores em que acreditamos. Mas depois vemos cidadãos comuns, que compram pão na mesma padaria que nós e cujos filhos estudam com os nossos cometerem atrocidades, matarem indiscriminadamente, comportarem-se como vândalos, sem noção clara das suas responsabilidades e do impacto das suas ações. Até onde é justificável a ira? Até onde podemos ir para mostrarmos a nossa indignação? Não deveríamos nós também, cidadãos, que tanto clamamos direitos, termos consciência das nossas responsabilidades como seres humanos? Não vou citar factos concretos, tragédias comentadas até à exaustão, até porque qualquer uma delas depressa ficaria soterrada por tantas outras que acontecem diariamente e que desviam a nossa atenção. É a banalização da violência o sentimento de impotência que se instala.
Mas eu explico porque não falo de política, porque me abstenho de comentar, a não ser em conversas íntimas como esta nossa, impublicável e secreta. Se alguém nos lesse fora deste contexto caía o Carmo e a Trindade e a ditadura do politicamente correto haveria de se divertir a esmurrar-me a consciência. Chamar-me-iam alienada, superficial e egoísta. Desatenta e indiferente. Não sou tanto, não sou nada disso, na verdade. Cresci vendo nascer um país — Angola — com convicções éticas iluminadas por uma certa moral de esquerda, ligada aos ideais que professei toda a vida, e que mais não são do que uma expressão concreta do humanismo e da fraternidade. Esse país é também meu, pois ser angolano não exclui ser-se também português, ou de qualquer outra nacionalidade; e não falo de passaportes mas de cultura e de laços históricos e familiares.
Quando esse país nasceu eu tinha onze anos e experimentei coisas que causam estranheza a outros meninos da minha idade, nos dias de hoje: participei em campanhas de vacinação, assisti a reuniões de adultos na Comissão de Bairro, onde se tentavam sanar alguns problemas prementes de um país que começava com graves dificuldades, ligadas a infraestruturas inoperantes e muitos serviços deixados ao abandono. Tudo isso me marcou, positivamente, em termos de cidadania e de civismo. Acho que o que ficou para sempre, de maneira mais absoluta, foi a solidariedade. Por isso falar de política hoje parece-me algo descabido, absurdo, está tudo muito refém da economia e de uma certa noção de segurança. Os partidos têm programas de ação e uma base ideológica débil. O voto tende a ser meramente útil — o do medo, o da incerteza — e da derradeira e desvairada desesperança. O voto significa rejeição, condenação, algo como um simples “basta”. Não sei como se pode propor aos cidadãos, ao mesmo tempo: transparência, segurança, pleno emprego, ética, combate a todas as formas de discriminação, saúde e educação tendencialmente gratuitas e universais, uma economia equilibrada. Se alguém conhecer um político ou partido capaz de responder a estes desafios com responsabilidade diga-me que eu voto, se for daqui. Tu conheces?
Cada direito tem um custo e lá vamos nós ter outra vez à questão de direitos/deveres. Sem o cumprimento dos segundos, bem podemos sonhar com os primeiros.
Mas chega de banalidades sobre um tema de que nem gosto. Eu quero é ver gente à minha volta com saúde e bem-estar e acreditando no futuro.
Por aqui escreve-se muito, cada vez mais, de forma mais orientada. Tenho o sonho de publicar literatura infantil, mas como chegar a esses leitores tão exigentes? Ilustrador eu já tenho um em mente, uma pessoa que faz desenhos fabulosos que antecipam as minhas histórias.
A poesia e o conto estão sempre na ordem do dia e penso que alguma novela poderá surgir de um conto, mas isso implicaria mais cuidados com o desenvolvimento das personagens, do cenário e da história. Rigor cirúrgico, delinear situações que se mantenham de pé. É um exercício difícil. Agora divirto-me também lendo em voz alta, procurando interiorizar histórias alheias com as quais me identifico (muito). Poesia, sobretudo. Se soubesses como é difícil. Provavelmente saberás, até pelo teu percurso como professor: como reagem os teus alunos a estas pequenas torturas?
Viana, eu tenho sempre muita coisa guardada para te contar, às vezes quando faço longas caminhadas por aí vou falando contigo internamente, tenho pena que não me possas ouvir. Pouparíamos toneladas de papel. Estas conversas — nossas — têm um certo encantamento que surpreende: por mais tempo que passe a gente arranja sempre forma de resgatar aquela palavra que falta para ligar a ponte à outra margem.
E hoje fico por aqui. Na escrita. Pois no pensamento a conversa continua meses a fio.
Um beijo cheio de amizade,
Clara
Lisboa, 16 de Dezembro de 2018
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Clara,
É também a saudade imensa. Quanto tempo sem as nossas cartas, sem as nossas conversas e diálogos? Muito. Muito já. Muito para nós que somos-sempre e perto-querer. Aqui, deste outro lado do oceano Atlântico, as coisas não vão boas nem mesmo razoáveis. Eleições findadas em 2018 e um novo (des)governo assolando tão gerais gentios e terras tupiniquins. Brasil que perdeu o prumo, o rumo, o caminho.
E você que me pergunta sobre caminhos, impossível não ligar nosso caminho ao caminho que toma a nossa nação nativa, natal terreno. Se o país vai bem, nosso caminho é mais tranquilo, podemos chegar mais longe e levar mais gente do nosso lado. Se o nosso país capenga, titubeia, ardeja e claudica, nossos passos se tornam incertos, improváveis, repletos de surpresas pelo trajeto. Ficamos à mercê do destino ou quase isso. Mas é indubitável o nosso crescimento, o nosso amadurecimento. Por mais que não percebamos em sua inteireza, o nosso desenvolvimento enquanto seres humanos é algo bastante real. Vez ou outra também caio nessa de me ver refletido em alguma ação do passado e termino por elaborar comparações que, em grande parte, me alegram pelo justo fato de me enxergar evoluído perante outrora.
Infelizmente, nem todos evoluem, Clara. Alguns não se tocam e permanecem os mesmos durante anos a fio. É o caso do Mijair Bozocoiso, vulgo Jair Bolsonaro (ou simplesmente "O Mito", para os seus devotos), que assumiu a presidência do Brasil após golpes e mais golpes contra o Estado Brasileiro e contra a Democracia. Este sujeito, ratazana política e parasita congressista da mais vil espécie, representa a mais tosca forma de discurso político que já presenciei em vida aqui neste imenso país. Mentiroso, caloteiro, corrupto, hipócrita e maldoso são apenas alguns adjetivos carinhosos que posso destinar a este homem que claramente é racista, misógino, defensor da tortura e de outros muitos métodos nada humanos de convívio para com o próximo.
Ludibriando o eleitorado com um pregão baseado em clichês sobre segurança pública, moral familiar e religião, além de vomitar ódio para cima da esquerda brasileira, este sujeito incutiu em parte da população um sentimento de ódio em ebulição, principalmente voltado ao Partido dos Trabalhadores (PT), e jamais concebido anteriormente. O certo, Clara estimada, é que estamos chegando ao terceiro mês do governo atual e nada além de prejuízos à sociedade puderam ser vislumbrados até então. O povo está em último lugar se depender dele e de sua equipe, completamente despreparada, por sinal.
Também não sou muito de conversar sobre política, Clara. Você bem sabe disso. Mas as coisas estão tão evidentes aqui, e risíveis e ao mesmo tempo preocupantes, que não dá para ficar calado, por vezes. O ódio contaminou a todos. Quem tem o pensamento voltado à esquerda, como eu, sofre para ficar sem alimentar ainda mais o pandemônio que estamos vendo e vivendo a cada novo dia.
Enfim, é preciso amadurecer. Decerto que não há no mundo nenhum grande homem com todos os poderes e soluções nas mãos. Todavia, aceitar monstruosidades e bizarrices de um governo puto e cruel não é papel de alguém que sonha ver seu país caminhando para frente. Não dá para regredir. Não mesmo. Para se revoltar o verbo é também muito útil, pois.
Uma curiosidade, Clara. Você poderia me dizer um pouco de como a imagem deste presidente brasileiro atual está chegando aí em Portugal? O que dizem os noticiários, os especialistas no assunto? Já há um pensamento formado acerca de Bolsonaro? Se não quiser responder, fique à vontade. Não perca seu precioso tempo com estas minhas coisas, também, se achar prudente.
Fico imensamente feliz quando me contas sobre tuas novas e próximas aventuras no ramo literário, Clara. E fico também ansioso para que elas vinguem e consequentemente para que eu possa tomar conhecimento ainda mais real acerca de todas elas.
Veja, Clara, sou e sempre fui professor de alunos mais humildes, de uma classe econômica mais desfavorecida, apesar de minhas investidas também no ensino superior e em outras faixas educacionais. O desafio meu, antes de tudo, é fazer com que o meu aluno se interesse pelo livro, por ler livros, textos, pelo letramento em si... Grande parte chega até os meus domínios com alguma dificuldade na escrita e na leitura. Daí é preciso todo um esforço de prevenção e assistencialismo mesmo, para que depois possamos vivenciar o amadurecimento de alguns estudantes frente ao poder transformador dos livros e da leitura. E como é gratificante ver o resultado em alguns deles! É um trabalho bastante exigente, mas necessário e muito importante, onde não se pode fraquejar em momento algum.
Também carrego alguns projetos para os próximos dias, meses, anos... vamos ver se algum conseguirá sair do papel. Até lá, seguirei com o blog e outras tratativas.
Um beijo doce, Clara, desta Caruaru pós-carnavalesca e de clima agora mais ameno.
10 de março de 2019.
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Clara e Viana são dois amigos de longa data que se redescobrem e desenham o mundo à sua volta pelas palavras que encontram, que constroem e que usam para pintá-lo. (De longa data em face da finitude da vida, recentes diante da imensidão da eternidade). Mas, que importa isso? Eles propõem-se descobrir dois universos complementares, sem artifícios nem maquilhagem, para além das máscaras habituais, as que protegem o ser humano da solidão e das agressões.
Clara e Viana são dois heterónimos, duas personagens que ganham vida através do tempo, do ritmo da palavra e do sabor dos respectivos sotaques.
Luísa Fresta e Germano Xavier dão vida a este projecto.
* Imagens: Cristina Seixas