sábado, 7 de dezembro de 2019

Sobre "Roseiral", de José Inácio Vieira de Melo




Por Germano Xavier


(Escrituras, 2010)


Roseiral: O mundo encarnado pela seiva das rosas escarlates. Livro vermelho de memórias. Livro vermelho de saudades. Livro vermelho de raízes. Livro vermelho de pareceres. Livro vermelho e augusto sobre a Vida. Vermelho aqui é cor e é além. E é aquém. Vermelho-sentido. Vermelho de céu grávido de chuva num sertão que é tão meu quanto nosso. Vermelho-sertão, aquele que aprofunda o horizonte, dobrando-o na vista dos olhos nus. Uma rosa é uma rosa é uma rosa é outra rosa é outra alguma é toda é sempre é nunca. Uma rosa é um roseiral.

José de Alagoas e baiano, calculador etário das pedras sozinhas. Voz que se safou do Nada e se transmutou. Virou amuleto de si mesmo, rosário que se conta no dedos de cada vitória. Voz-incêndio. Um homem rosa. Um homem rosa de tão vermelho: um poeta. Poeta é uma rosa é uma rosa é uma rosa é um vermelho é um soluço é um sonho é uma fuga. José das roças, José das Rosas. José do Vermelho. José Roseiral, seu sobrenome? Odisseu. O que anda e está por, aos quinze anos ou mesmo na casa dos quarenta anos. José que inventa.

Vai de soneto, vai de relato, vai de coisa pequena, de linha curva ou reta, vai. Canibaliza as experiências de Amor. José Vampiro. Sangue é alimento. Sangue é vermelho. Ele queria ser Elizeu Moreira Paranaguá, mas acabou sendo ele mesmo. Um rosa no meio do vermelho. Um diferente. Um matutador de coisas agrestes. Um virgem de tantos espantos. Deslumbrador. Inventador de canções e aboios. Um José vermelho no meio de tantos josés minúsculos. Um José maiúsculo, entre a cor e a couraça, entre o boi e a pega, filho do espinho do mato e da boneca dos milharais.


sábado, 30 de novembro de 2019

sexta-feira, 15 de novembro de 2019

Sobre "O velocista", de Walter Cavalcanti Costa




Por Germano Xavier


(Cepe, 2018)


O VELOCISTA, do pernambucano Walter Cavalcanti Costa orbita pelos anéis da experimentação literária com maestria e simplicidade: Pensamentos-ideias-de-longe-e-além conferem ao livro um chassi de modernismos e de influências de vanguarda que não se escondem nem deturpam a obra. O fragmento reinventado, uma era que se inova. Como veículo reformado: possibilidades. Loucura sã na linguagem com toques importantes da teoria da literatura. Um livro sobre Jô Tadeu, afinal.

Ele, que viaja para-além, atraca e atravessa o Tempo. Memória que é Tempo. Tempo que é uma espécie de cerco. Não se escapa. Está. Estamos. Somos. Jô Tadeu deu ao autor o título de Vencedor do V Prêmio Pernambuco de Literatura. Eu, após a leitura: O que dizer? Há o que dizer? E como dizer? Minha cara de estupefação resume bem o conjunto e a proposta da obra. Um livro impiedoso. Um livro que se quer veloz, mas no íntimo.

E por falar em Jô Tadeu, lá vai um “Explicativo”: “Eu sou Jô Tadeu Tábua, sou astronauta. Sou filho da estilista Carolina Vásquez e do Professor de Ciências Contábeis João Tábua. Sou casado com Bevita Santana, a governadora do Estado de Pernambuco, no Nordeste da República Federativa do Brasil e sou irmão do artista plástico Von O’Val, que é casado com a bibliotecária Valbuena Sales, que fala sete línguas ocidentais. Sales trabalhou com meu pai, João Tábua, no local onde é hoje a biblioteca que recebe o nome dele. Tenho um filho chamado João Tadeu. Uma filha que está para nascer. Nasceu. Estou há 35 dias, seis horas e 27 minutos terrestres no espaço.”

Pá. Cal. Fumaceira branca. Ninguém nem. Só lendo, meu nobre amigo. Passa por cima de tudo o que se vê ali, nas páginas. Coisa de quem ousa. Como alguns assim fizeram. Livro chancelado. Torre de Babel. Literatura de excelência. Um salve, Walter. Pá. Cal. Vento. Mais fumaceira. Branquitude. Brumado, um. Tudo continua. Até a névoa. Não se pode ver nada. Sideralismo. Cá. Chegue. Atente-se: este é um bom manual de teoria literária. E muito contemporâneo. E.

domingo, 10 de novembro de 2019

Sobre "Dancing Jeans - Baixo Augusta e outros contos", de Milton Morales Filho




Por Germano Xavier


(Cepe, 2017)


É por meio do Tempo que a persona quase-única que atravessa todos os contos do livro "Dancing Jeans – Baixo Augusta e outros contos", de Milton Morales Filho, se ancora, incurável em sua rebeldia e sua perdição. Atmosfera neon tem a obra. Fala-se de vivos e mortos. Calabouços modernos são os pequenos espaços por onde transitam pessoas aparentemente comuns. Dancing Jeans, no livro, é uma espécie de Pasárgada de mesma falta de austeridade. O paraíso perto dos olhos, das mãos e dos sentidos. 

O Tempo é índigo, colorido para o homem, mas avesso à memória. Figura-se, até o cenário-escada, vivaz em excesso. Tudo é pó. Tudo é poeira. Tudo é pós. Como se existisse uma lua original sob a qual planetas orbitam, flexíveis. A melancolia é um poço. A fossa do cotidiano é quase palpável e, indubitavelmente, sem controle. "Dancing Jeans – Baixo Augusta e outros contos" têm no seu razoável grau de marginalidade um trunfo, por onde autor e obra se encaixam, tal qual um encanto ingênuo e surreal. 

Paralelismos. Condutas bifurcadas. Marés de concreto e luzes artificiais. Caminhos que nos percorrem por estradas já revistas. As nossas histórias sem esconderijos. O livro do Milton termina sendo um reduzido guia de instrução para aquéns nada imóveis, para superfícies que possuem o poder de nos transformar em futuros ainda que incertos, como aquilo que tende a acontecer de supetão e nos revela o dia. Para ler com economia ou voracidade. Como quem espera um depois.




terça-feira, 5 de novembro de 2019

Sobre "Paulatim", de Paulo Gervais




Por Germano Xavier



(Cepe, 2017)


"Tulerunt clavem?"


Peguei a chave. Mas a chave para abrir a Poesia não é uma qualquer-chave. Tem de ser chave-mestra, com várias possibilidades. Dentro ou fora, das duas: uma. A Poesia é Hydra de Lerna. Corta-se, envereda-se, mas ela se amplia. Não há esgotamento. Não há fim, só interstício. Para abri-la, é necessário delicadeza e tempo. Assim se levanta o pó enquanto o vento dura, já dizia Antônio Vieira. Tulerunt clavem? Sim, peguei a chave. Ou teria sido o contrário? Para onde ir depois que entramos? Há saída?

Fugiremos deste mundo ao menor envolvimento com a morte. A morte pode estar em qualquer parte ou em parte alguma. A morte é um Touro. Touros pastoreiam nossa verdes esperanças. Os Touros não morrem nunca, por mais que os espetemos com adagas ou com sabres ou com estiletes seus respectivos e grossos dorsos. Haverá sempre um Touro a ser enfrentado, na vida. A morte nunca deixará de ser. O chão da Terra faz brotar novos Touros, enfurecidos e vingativos. Correr será sempre uma proposta para quem.

Para nossas mortes e para nossos momentos de não-morte, escolheremos nomes. Convencionaremos, como assim o fazem majoritariamente. E dentro dos vasos que nos amparam serão aparados apenas os licores sem arrependimentos, a lágrimas que nunca foram vertidas, as dores que jamais foram gritadas. Para além das raízes, o Nome, assim justo, assim Belo. O Nome, para que fiquemos apenas nele, enluarados, feito linguagem máxima da existência. Feito "Paulatim", de Paulo Gervais. 

Paulatim: poesia de quem já andou. Pés para cima e para baixo. Itinerários. Poesia que serve para abrir as portas dos céus e dos infernos, nossos. Para abrir as portas da Percepção. Tudo planejado: como não ter planos. Homem X Solo X Sagrado. Do jeito que admiro e outros muitos, também. Uma poesia sem marcas, dormida ao sol do meio dia e fria como a madrugada mais gélida. Para pensarmos sobre nossos cálculos vitais, sobre o que importa realmente ou não. Pois até mesmo este discurso aqui pode não durar o suficiente para mover algo.


domingo, 3 de novembro de 2019

Sobre "Recife em tom menor", de Bartyra Soares




Por Germano Xavier


(Cepe, 2016)


Recife, capital do Pernambuco: uma cidade que não tem vergonha de revelar as suas faces e os seus fantasmas. Daqui de Caruaru, onde moro há 6 anos, pouco mais de uma hora em boa velocidade. Chega-se a ela, assim, quase-facilmente. Uma cidade que nos obriga a esperar, pois tem um tempo próprio. Recife, ondular, caminha entre suas árvores centenárias, seus dutos fétidos, seus rios quase-mortos e seu povo. Recife avança para onde não se pode mais, como tantas. Cresce para sua finitude. Sua ciranda malemolente é a de quem anda de lado. Manguetown.

Suas antemanhãs aclaradas pelo sol das chuvas quase diárias espalham suas feridas de Camaragibe a Boa Viagem, passando por todos os seus viadutos. Mar que arrebenta, horizontal-Brennand. Recife nos adverte: Transcender é preciso, viver também é preciso. Além-mar, rosa-dos-rumos, uma Mauricéia antiga tocada em tons menores entre o Estelita e as ladeiras de Olinda. Recife cinza e verde das mentes alternativas. Recife das vésperas de alguma coisa, sempre. Recife dos convites, dos casarões sem Tempo, das tantas possibilidades de nada vir a ser.

Seus Maurícios homens dormem sob as pontes, seus hóspedes gemem, sitiados no caos. Não se corre na lama. A lama é densa e afunda os pés. Insulado, o Recife se põe apesar das tardes. Exilado, o Recife se alucina para se abrir no próximo Galo da Madrugada uma folia de agoras e futuros. Suas torres me lembram as saudades do meu pai. Os Trólebus já inexistentes me remetem ao mundo dos cartões de memória, dos álbuns de família. Recife nos provoca mudanças. Muda. 

Bartyra Soares, brotada em Catende, sabe disso. Pede amparo às fotografias de Marcus Prado. Recife talvez seja mesmo fantástica a ponto de não caber apenas em palavras, em versos, em estrofes. A fotografia amplia a melancolia sufocada de seus canais e de suas ruas. Ao fim, página por página, o Recife acaba nos comovendo. Discretamente, em tom menor, sabedor que é de suas todas alegres tristezas. Recife, capital do Pernambuco, um imenso navio ancorado prestes a zarpar para o mais distante e bonito Nada.



sábado, 2 de novembro de 2019

Sobre "O azul também se revolta", de Paulo Gustavo




Por Germano Xavier


(Cepe, 2018)


Por vezes, é bom e necessário refutar o óbvio do mundo, o que já está entregue logo de cara nas frontes das pessoas, todas as gratuidades afastar... Marchar a ré em muitas das coisas que nos solidificam diariamente: vital. A poesia é uma força-una, sabemos. Mas quem a opera é todo mundo ao mesmo tempo, a soma de suas vivências e o total de suas quedas e conquistas. Paulo Gustavo, poeta recifense nascido em 1957, filia-se ao que há de mais universal e caro à poesia: sua própria voz, voz de poeta. De maneira natural e sublime, diga-se de passagem.

O AZUL TAMBÉM SE REVOLTA é um acordo do poeta para com a sua voz gutural, ancestral, universal, mas única e criteriosa, amansada após uma vida de aprendizados. Nos campos da forma e da linguagem, o poeta adere à personalidade acima de qualquer custo. Resultado: cria sua própria tradição, uma dialética modernosa e, simultaneamente, com um pé fincado nos antepassados, em seus ídolos, em suas referências (que não são poucas). Paulo Gustavo rompe com outros totens artísticos, mas sempre com paciência, como quem aguarda a procissão passar.

A palavra aqui é CONSCIÊNCIA. 

Há sempre uma retomada de temas, promoção de imagens verticais/horizontais, utilização de formas já há bem muito consolidadas. Todavia, Paulo Gustavo formata tudo com o raciocínio esmerado de quem recorre sempre às melhores experiências técnicas. Multiplica-se, asssaz-assim, em outros tantos sendo um só, sem precisar ser outro nem perder-se na vastidão de ser mais do que se é verdadeiramente. Um poeta de transição, "que tomou o último vagão" que rumava para estimada Geração 65 das letras pernambucanas e da contemporaneidade nacional.

Percebe-se, de antemão, uma espécie de condensamento na obra. Estamos, sim, diante de um Tempo repartido, porventura compartilhado. Uma memória congelada pelo poeta. Memória que é gênese para o futuro. Dócil, cheio de vertentes nada costumeiras para os dias atuais, Paulo Gustavo se insere maduramente na ordem de seus versos. Faz do Belo sua palavra de ordem, sua incessante jornada. O Azul aqui é de busca, de escavação, de intromissão. O Azul de todas as coisas, dos equadores todos, seu ofício virginal.


terça-feira, 29 de outubro de 2019

Sobre "A Dakimakura Flutuante", de Camillo José




Por Germano Xavier


(Cepe, 2017)



Dakimakura: travesseiro pop gigantesco. Coisas de uma Ásia vaporwave, e de um mundo caótico. Cáustico. Para dormir abraçado (o travesseiro). Mas só ele abraça. Nada mais abraça. Só abarca. Livro diferentão. Diferentão mesmo. Todo quebrado. Todo cheio de cacos. Experimental: a poesia de Camillo José. Línguas e linguagens dançando em uns anos-80-quase-anos-90. Séculos integrados. Amor e computador. Rebeldia e entrega. Deus-dinheiro. Capitalismos das cores. Poesia sem crítica. Algo a se pensar.

Segundo livro de poesia do cara. Uma viagem. Mesmo! "A dakimakura flutuante", título inteiriço. Dono do "Chave de espadas" (Patuá, 2013), Camillo é total no que nos entrega do segundo petardo. Referências de onde nem sei, mas-que. Cultos e culturismos, culturalidades, culturas. Doses cavalares de uma nipônica estética vaporwave misturada com tantas outras reentrâncias. Filmes, desenhos, pandemônios adolescentes, internet revirada ao avesso, prismáticos envenenamentos de consciência. Trans-psicodelia. O mais-que-moderno. Livro para se ler inúmeras vezes e tentar algo.

Com a publicação, Camillo foi o vencedor do 4º Prêmio Pernambuco de Literatura, em 2016. 


sábado, 26 de outubro de 2019

Sobre "A arte do descaso", de Cristina Tardáguila




Por Germano Xavier



"A arte do descaso – A história do maior roubo a museu do Brasil", da jornalista Cristina Tardáguila, é um pequeno apanhado factual acerca da ineficiência e do desprezo para com a valorização das artes em solos brasileiros. Tardáguila montou um livro-reportagem que prende o leitor do início ao fim, tal qual os grandes exemplos do gênero, que tem como ponto-mor as inovações jornalísticas experienciadas a partir de meados do século passado, quando o New Journalism apontou sobre a superfície das redações dos grandes jornais e das gráficas de todo o mundo com seu time espetacular de autores, a citar Truman Capote e Joseph Mitchell.

A autora reconta, com minúcias, toda a trama que envolveu o roubo que subtraiu do Museu da Chácara do Céu, situado no bairro de Santa Teresa, na cidade do Rio de Janeiro, obras de alguns dos mais importantes nomes das artes do mundo, a citar Monet, Matisse, Salvador Dalí e Picasso. O roubo, que aconteceu no ano de 2006, mesmo já passados vários anos, ainda é considerado um dos maiores atentados às artes de todos os tempos (maior roubo do Brasil e oitavo maior roubo do mundo). Ao todo, cinco obras foram roubadas que, juntas, somavam um total de aproximadamente 10 milhões de valoração estimada.

Após efetivarem a rendição dos guardas do local, munidos até de uma granada, os meliantes levaram os quadros mata adentro e nunca mais foram vistos. Para decifrar toda este novelo, Cristina Tardáguila iniciou uma busca incessante através de viagens, congressos internacionais e entrevistas com os maiores especialistas no ramo, além de pessoas aparentemente metidas no imbróglio. As suspeitas eram firmes e por pouco não se transformaram em brutais convicções. No fim das páginas, a certeza é única: o Brasil é um país completamente despreparado para vivenciar tais situações.

Ao entrar “(...) definitivamente no mapa do roubo de obras de arte com o assalto ao Museu da Chácara do Céu”, o Brasil terminou por demonstrar a sua fraqueza, o seu desleixo e a negligência de seus mecanismos de investigação e de justiça. O livro é deveras um Thriller muito bem elaborado e  uma grande sacada de Tardáguila, que assim, com maestria, resolveu estrear em livro. Quando terminamos de lê-lo, cria-se uma enorme fazenda de pulgas em nossa cabeça. Sim, amigos, aquilo de que já desconfiamos há bastante tempo se define em tons claros e evidentes: o Brasil, definitivamente, não é para amadores.


segunda-feira, 14 de outubro de 2019

Sobre Arquiteturas de Vento Frio, de Walther Moreira Santos




Por Germano Xavier


(Cepe, 2017)



Frio é o vento-nascente de dentro, aquele que aflora e deflora. Corta, afia, amola: lâmina invisível. Cultivo de bala é vento que mata sem dó de quem nestes pernambucos tão brasis. Fogo de dentro e também de fora. Chama acesa, labareda-de-meu-deus. Vem varrendo tudo! Vem que vem. Cada ser é uma correria humana. Ponta aguda contra o peito nosso de cada dia. Quão complexa é a vida! E quão simples ela é? Dá para se ter uma mínima noção do tamanho do estandarte que carregamos? Nossas alegrias parecem poemas cobertos com querosene. Podem servir para fogaréus.

Primeiro carro abre-alas: precisamos fugir para amar com amor o silêncio mais bruto. Segundo & rubro carro abre-alas: a cidade não para, a cidade só cresce, em nome de todas as mutilações possíveis e inimagináveis. Ela cresce. Cresce a mente de quem faz a cidade crescer? Andar é morte. Respirar é morte. Bocejar é morte. Sair é morte. Feriado é morte. Sumir é morte. O que é mesmo a vida, meu amigo? Por isso, a palavra? Ainda uma regra de três sem mote esgotado, a Palavra. Engenharia de quem é a caminhada para os ondes? Lugar bom é o peito de quem nos acolhe?

O "se" torna-se eterna ponte: arquitetura de vento frio. Dúvida X Pedagogia. Tão cedo tem sido a marca da imaturidade nas gentes. Pessoas cada vez mais sem. Faltando escolher o que abandonar, o que vale a pena carregar nas costas, os pesos tantos, o peso destes corpos desabitados e secos. Quem à margem insistirá em ir? Murmuremos, pois. Prolongados são os dias à espera do que nos convém. Rogar a quem quando teu é o reino funesto que encampas? Santíssimo, tende piedade de nós! Misericórdia, senhores da guerra! E que nos ensine o caminho onde o que mais nutre é palavra posta em papel nu, Senhor dos Universos!

Coragem não basta, nunca. Fazer manso não basta, sempre. Louvado seja aquele que renova suas manhãs no café bebido logo cedo. Punidos sejam os homens de igual tarde todo dia. Reinventar é preciso quando o buraco esconde o fosso-mor de nossas almas. Prolongar-se, tentar ser e ir mais adiante. Remanescer dentro de nossas gargantas gélidas como o branco do Ártico. Sobreviver aos ensaios de antropologia brasiliana dos agoras em agonia. Retesar a corda já rija. Fazer chover. Chuva de água morna. Sobre nossos pés. E viver, apesar.


domingo, 25 de agosto de 2019

Sobre Cerco, de Stenio Erson




Por Germano Xavier



"Se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia."

Leon Tolstói



Narrativas que transformam algo são sempre as mais difíceis de serem escritas. Narrativas que nos transformam, ou que transformam pessoas, ainda mais. Gerar evolução no outro é ofício de doido, diria alguém. Todos os textos têm introjetados em si esta carga de poder, de máxima, mas a experiência de vida do autor é, talvez, o detalhe que possibilita que algo mais nos aconteça ou nos toque quando estamos a ler um livro qualquer, já que ela – a experiência - irá nos requerer um gesto de pausa, um gesto que é tão difícil nos tempos de agora-ontem-amanhã, um parar para ver-melhor, um parar para ouvir-mais, um parar para pensar-além, mais devagar, mais plástico, mais sentido, mais demorado e minucioso.

A narrativa, quando opinião e pureza, quando vontade, quando menos automática, quando mais atenção e quando mais delicadeza, abre olhos e ouvidos gerais, fala e acontece num mesmo instante, apreende, aprende e ensina, realiza encontros, cultiva calores e sabores humanos dentro dos tempos vários e dos espaços múltiplos do nosso viver em sociedade. Quando o autor opera este pequeno milagre, dá-se a Literatura com a maiúscula inicial. E é com base em tais potencialidades narrativas que o livro CERCO (Multifoco, 2019), de Stenio Erson, chega até o olho-nosso que lê.

O autor, natural da Chapada Diamantina, utiliza-se de histórias pessoais e sociais para construir uma identidade narrativa que posiciona o leitor em um tripé bem resolvido: o vivido, a memória e o narrado. Tudo isso em cerca de 80 páginas e 10 contos. Um servidor que morre e deixa o devedor no vácuo, um caroneiro que some no meio do trajeto, uma mulher que se joga do alto de uma cachoeira, um menino feito de muita vida, entre outras passagens, autorizam momentos de autorreflexividade, de intersubjetividade e de alteridade perante as personagens que maquinam as composições narrativas do livro e, também, diante de nós-mesmos.

No meu caso, que também sou nativo da inigualável Chapada Diamantina, ali no centro geodésico baiano, que fui parceiro do prezado autor em viagens, travessias, poeiras e trabalho, senti-me conhecido e reconhecido em várias passagens da obra. E como é interessante quando é o outro que conta a nossa história ou a sua história! CERCO é daqueles livros que não se dissociam do lugar, que não fogem de sua territorialidade, e que, por isso, acabam ampliando sentidos de pertencimento, transformando tudo em novas perspectivas, deixando claro que tem potencial para reverberar em mentes diversas dos quatro cantos do mundo. CERCO ainda conta com ilustrações fabulosas de Pedro Lima, artista plástico bastante renomado na região.


* Imagem: Acervo do autor/Stenio Erson

domingo, 4 de agosto de 2019

O professor e a alegria do movimento




Por Germano Xavier


Muita gente não sabe, mas a minha caminhada dentro do planeta Educação começou mesmo, de verdade verdadeira, no ano de 2004, apesar de eu ser filho de professora e ter um certo convívio para com esta Dona já de bem antes desta. Paulo Freire (ainda podemos falar o nome dele, assim, abertamente?) já dizia: "A alegria não chega apenas no encontro do achado, mas faz parte do processo da busca. Ensinar e aprender não pode dar-se fora da procura, fora da boniteza e da alegria". Naquele ano, estava eu em Salvador-BA esperando que as aulas da Universidade do Estado da Bahia  (DCH III) começassem após uma greve que fez com que o semestre letivo se atrasasse cerca de oito longos meses. Num dia bonito, minha mãe me liga: "Germano, uma professora vai sair de licença... você não teria coragem de pegar as aulas dela, não?" Foi o estopim. Fósforo riscado.

De lá para cá, passei por várias modalidades e níveis de ensino, principalmente pela Educação Básica de ciclo público, trabalhando em comunidades quase sempre carentes ou menos favorecidas, entre elas algumas em zona rural. Para este público, o professor é ainda mais necessário. Trabalhar com cognitivos adormecidos, carências motivacionais e sensibilidades afetivas muitas vezes destronadas é feito pisar um campo hostil e misterioso, que não nos oferece o óbvio olhar sobre as coisas que nos rodeiam. Todavia, eu sempre soube que ser professor é buscar, é se manter em movimento, é estar-além, e sempre fiz isso em minha trajetória na docência: buscar. Descobrir os caminhos para se chegar ao fim da reta, com mais fôlego e menos arfante, é saber manusear as estratégias mais inteligentes para se descobrir e construir habilidades.

Digo a vocês, meus caros, em alto e bom som: saber reconhecer a importância de uma pedagogia da afetividade voltada para o aluno representou, e ainda representa, para mim, um dos maiores avanços meus no trato educativo, ano após ano. A escola, assim, tende a deixar de ser vista como um território amargo para os discentes. O interesse aumenta, o respeito, a reciprocidade, a empatia, o acolhimento é sugerido já de pronto. As competências dos estudantes logo são atingidas, conhecidas, desabrochadas, incentivadas. Tal pedagogia, a da aproximação, a do olho-no-olho, a do pulso-com-pulso, esboça querer resolver o que temos a fazer com este Novo Tempo que nos cerca, veloz, midiático, ríspido, de superfícies e pouca amorosidade entre os iguais. 

Descobrir-se professor, na ativa sê-lo, em luta, reconhecer-se, saber-se poderoso e capacitado para enfrentamentos vários e diários já é, sim, um ótimo começo. O mundo anda complicado demais para se ser em metades. É cada vez mais primordial mudar a realidade, auxiliar pessoas, empoderar almas, instruir, aconselhar caminhos, apoiar destinos na fortaleza que é o conhecimento. O professor, mais que qualquer outro profissional, tem a chance de operar estes pequenos milagres cotidianos, que farão do futuro o reino de todas as graças. E é sua obrigação prestar mais atenção em tudo isso.


terça-feira, 9 de julho de 2019

O Equador das Coisas - 12 anos




Republicação



Tudo começou durante uma aula da disciplina Programas e Ferramentas II no curso de Comunicação Social/Jornalismo em Multimeios da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) que eu até então fazia. A professora Jussara Moreira, depois de explanar um pouco do seu conhecimento acerca da linguagem HTML para produção de sites pessoais e outros projetos de cunho cibernético, levou-nos a conhecer uma ferramenta que, para mim, ainda era uma incógnita: o Blog (ou blogue, como preferir). Lembro que ela havia indicado alguns sites onde poderíamos escolher a plataforma que mais agradasse nosso gosto e, ainda sem nenhum conhecimento de causa, entrei na ferramenta que o portal UOL disponibilizava à época.

De pronto, achei tudo muito simples e funcional. Uma espécie de caderno virtual, de diário, de pasta, um portfólio, "mas que coisa boa!", pensei. E assim se deu o meu primeiro contato expressivo com esta ferramenta informática. Deu-se a luz, diria o outro. E sem muito pestanejar, fui logo criando o meu próprio espaço na blogosfera. PAROLAS DE UM SUJEITO QUEDO foi o título que dei ao meu primeiro esforço “bloguístico” e foi parido em 09 de julho de 2007. Lá, e aos poucos, fui colocando alguns velhos textos que eu tinha guardado e também escrevendo coisas novas. Como nestes idos ainda não possuía computador em casa, reservava alguns momentos quando me encontrava no laboratório de informática da faculdade para postá-los.

No PAROLAS DE UM SUJEITO QUEDO, a série de textos do “Sonhador Gervixa” foi, talvez, o maior destaque. Com cerca de 20 capítulos publicados, foi através deste personagem, um sujeito que se dizia não ser deste planeta devido a sua extravagante repulsa por todas as más ações humanas, que os primeiros leitores – geralmente meus próprios colegas de Jornalismo e outros poucos amigos - foram se acercando de minha produção textual, conquistando assim paulatinamente o que posso chamar de “credibilidade” e por que não dizer “fidelidade” no meio.

Depois de algum tempo, burilando na internet, achei de investigar a plataforma BLOGGER. Percebi que nesta havia mais instrumentos de edição e diagramação, além de que as interfaces eram muito mais convidativas que as do UOL. Destarte, abandonei o PAROLAS DE UM SUJEITO QUEDO e criei em 12 de novembro de 2007 meu segundo blog, agora intitulado A AUTO-ESTRADA DO SUL, por influência direta da leitura do livro de contos "Todos os fogos, o fogo", do escritor belga-argentino Julio Cortázar, que andava a realizar naqueles dias. Transferi, ao passar dos dias, todos os textos que havia publicado no PAROLAS DE UM SUJEITO QUEDO para o novíssimo e empolgante – pelo menos para mim - A AUTO-ESTRADA DO SUL e, de modo bastante paciente, fui colocando mais um montante de produções textuais de minha autoria, assim como algumas colaborações que recebia de amigos, sempre com a preocupação de devidamente analisar se os mesmos se alocavam bem aos propósitos do blog. Com minha entrada no universo “BLOGSPOT”, percebi que o mergulho constante no blog - um saudável vício, penso - estava despontando em mim como um local de construção de saber e de possibilidades de diálogo acerca das incontáveis formas de conhecimento nunca antes imaginadas, cuja responsabilidade para com o que ali estaria exposto aumentava em progressão geométrica, o que muito me agradava.

Alguns meses transcorridos e optei por mudar apenas a titulação do blog, que agora passaria a receber o nome do meu primeiro livro de poemas, publicado no ano de 2006 pela Editora Franciscana, com sede na cidade pernambucana de Petrolina. Era o nascimento do blog CLUBE DE CARTEADO, nomenclatura que permaneceu até os idos de 2009, mas que por problemas de ordem estrutural tive de deixá-lo para trás. O CLUBE DE CARTEADO foi quem guardou a maior parte dos textos que eu havia escrito ao longo dos anos, desde poemas e contos, passando por crônicas e resenhas de todos os tipos, até projetos de pesquisa mais apurados e artigos científicos, sendo também, tenho quase certeza, o primeiro blog a ter (ou a querer ter) a figura de um ombudsman – experiência que infelizmente não vingou. No total, foram exatos 821 textos/postagens publicados em seu espaço, registrando no período de pouco mais de um ano cerca de 30 mil visitas reais e algumas centenas de comentários e participações várias.

Depois de visualizado o problema em sua configuração, a construção de um blog totalmente novo foi a alternativa mais viável para dar seguimento a minha relação com esta significante parcela do mundo virtual. Foi aí que O EQUADOR DAS COISAS veio à superfície do ciberespaço. Com ajuda de pessoas mais entendidas neste universo da informática, selecionei um template que trouxesse um pouco da carga dramática que o título requeria, e logo foi feito a transferência de todos os textos que estavam no CLUBE DE CARTEADO para o arquivo do novo blog. O primeiro texto originalmente escrito para O EQUADOR DAS COISAS data de 23 de julho de 2009.

Daí por diante, outros inúmeros textos foram publicados até o presente dia – só para constar, já passamos da considerável marca das 1.800 publicações/postagens. Como se números fossem importantes, não é mesmo?! Tantos números assim soam como um discurso contraditório até para mim, que sou daqueles que têm mais medo de um sujeito que escreveu um livro em toda uma vida àquele que escreve meia dúzia de títulos em cinco anos – se formos vasculhar, exemplos não faltam. Recentemente o EQUADOR DAS COISAS passou por uma nova reforma, tanto na estética quanto em seu conteúdo. E como você vê, amigo leitor, hoje já está tudo diferente do que era antes. Tudo muda o tempo todo, não? Aí você me pergunta quando vou parar com tudo isso, e eu respondo que “nunca”. Cada vez que penso em desistir do blog, mais certo fico de que sem esta ferramenta, exemplo de expressão libertária e democrática, mesmo que virtualizada, fica mais pesada e difícil a balada das horas do meu dia. A vocês, leitores e leitoras, meu muito obrigado por ajudar na edificação e na concretagem deste real espaço de troca de experiências e saberes. Vocês são peças fundantes em toda esta ladainha. Recebam um abraço-amigo-imenso deste Germano que vos fala agora, exímio “aprendedor” de coisas. E para não dizer que não falei das flores, sim... continuemos, bucaneiros! – até porque o mar, o mar!, o mar quase nunca está para peixes...


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quarta-feira, 3 de julho de 2019

Luísa Fresta lançará livro em Portugal




Divulgação


CONVITE



No dia 19 de Julho pelas 19h00 terá lugar, em Lisboa, a apresentação do meu último livro de poesia, intitulado MARÇO entre meridianos e lançado em Luanda no Memorial António Agostinho Neto a 8 de Março de 2018, por ocasião da entrega do prêmio de poesia no feminino Um Bouquet de Rosas para Ti.

Seria uma grande honra para mim e para os meus editores (Livros de Ontem) podermos contar com a tua presença.

Consulta p.f. abaixo o convite bem como os detalhes do evento.

Desde já agradeço o teu interesse.

Um abraço e até lá,

Luísa


LIVRARIA BRAÇO DE PRATA
RUA DA FÁBRICA MATERIAL DE GUERRA, 1
Lisboa


COMO CHEGAR
Comboio: Linha de Sintra – Estação Braço de Prata
Autocarro: 728, 718, 755, Nocturno
GPS: 38.7433703 / -9.1006499
(Estacionamento fácil e transportes públicos).

A obra será apresentada através de textos críticos dos poetas Cíntia Gonçalves (Angola), Germano Xavier (Brasil) e Manuel Iris (México), para além do editor, João Batista.

segunda-feira, 17 de junho de 2019

Infarto




Por Germano Xavier


(baseado em fatos surreais)




Enterrei meu pai hoje.

Difícil. Di-fí-cil.

Não estava preparada. A pior dor do mundo. Nem sei descrever.

Peguei o primeiro voo. Ele sempre me esperava no aeroporto. Acenava de longe quando me via. Dessa vez foi diferente. Meu irmão estava no lugar dele. Desolados, abraçamo-nos. Chorei.

A cidade estava diferente. Não, a bem dizer não era a cidade, mas alguma coisa estava fora do lugar.

A casa estava cheia. Muitas pessoas... De várias cidades, o bairro inteiro foi... Ele era muito querido por aqui... Minha mãe, meu Deus!, minha mãe não tinha mais lágrimas. Difícil demais tudo aquilo. O caixão no centro da sala. Pessoas conhecidas e pessoas desconhecidas. Uma confusão dentro de mim.
 
Queria dar uma mesa de sinuca para ele. Pesquisei para o próximo Dia dos Pais. Sei que iria adorar. Cheguei até a escolher o modelo, tecido verde no campo, um de ficha com tacos de madeira nobre. Pena que não foi antes.

Da família, era ele quem mais se parecia comigo. Tínhamos as mesmas ideias. Sobre Deus, sobre igreja, sobre liberdade. “Viva e deixe viver”, ele dizia. Impulsivo e teimoso. Era um homem bom. Fiz de tudo para poupá-lo de meu sofrimento. Fiz de tudo. Mas tudo nem sempre significa o necessário.

Na sexta-feira de manhã ele saiu para buscar um amigo no hospital, no centro. Deve ter passado mal enquanto dirigia. Quando o amigo chegou, ele já estava morto dentro do carro. Foi o que disseram. Fulminante. Ele era assim. Nunca dizia Não. Ajudava todos os vizinhos. O vizinho estava tratando um câncer. Ele era o primeiro a ajudar.

A casa ainda está cheia... Eu não quis olhar no caixão... Não vi o rosto dele... Preferi guardar a memória dele vivo... Eu estou. Estou viva. A pior sensação do mundo é enterrar a vida...

Todos estamos abalados. Isso vai mudar a vida de todos nós. Não sei como será ainda. Estou atordoada.

Comprei a passagem de volta.

Mas como vou voltar?

Obrigada.


sábado, 15 de junho de 2019

A menina congelada



Para o pai da menina da penumbra, in memoriam.
E para a menina da penumbra.



notícia ruim: valsa da Morte.


a menina congelada está só
no mundo e o mundo todo agora espoca
e até o silêncio
é ponto de partida.

veio a morte-levada
com seus instrumentos de cordas pinçadas
a fazer vibrar a onda eterna das eras.

ela tenta compor uma buliçosa polca,
mas a certeira ausência aterra o esforço:
a menina congelada é parte da sinfonia.

pedirão clemência!
estéril, tocará o impulso
e a vocação para a dor.

correrá ao piano,
recordará suas lutas
e sua sorte será o próprio gelo,
já criado e insuperável, do seu coração.

a menina congelada sobreviverá,
assim, ao frio e vadio baile das horas.



domingo, 2 de junho de 2019

Rap do 30 de Maio



Por Muhatu



um dia diferente, luta de frente pela capacitação
há um menino adulto que lê pesadelos no jornal
a morte do ensino em tempo integral
e o espanto boquiaberto da nação

um dia urgente refuta restrição de liberdade
estudantes/professores desamarrem pensamentos!
sois brilhantes como o sol e livres como o vento
ser cidadão é coração maior de idade

jornada prenhe de mil luzes de mudança
em prol das ciências sociais tão humanas
e fundamentais | a reflexão crítica nos irmana
[o desconcerto assusta mas a coerência avança]

jornada de verbo sem verbas – só esperança
não sou panfleto doutrinário sou luta pacífica
minha luta é ética, minha sementeira científica
dizemos sempre e ainda: quem espera sempre alcança

um dia de apaziguamento e chamada à razão
cremos em hospitais e universidades públicas
nossas exigências são pedidos [nunca súplicas]
sonhadas com cabeça, alma e antecipação

será jornada de batalha ideológica
que tempo é este retrátil e inseguro?
educar não é gastar, é construir o futuro
negativismo é destruição | aposta ilógica

no dia trinta a palavra será tinta e voz
pela merenda, pelo transporte escolar
educação inclusiva temos que assegurar
o tempo urge como um rio para a sua foz


segunda-feira, 27 de maio de 2019

Os manejos em assanho de Orobó (Parte IV)



Por Germano Xavier


reza a lenda que os dois se tornaram um só:
corp'alma e todo um aspecto plástico-poético,
ou ainda mesmo pura pirotecnia.



O fogo se instaurou quando dentro
e uma narrativa solidária fora brotada.

No canal, esperm'ardente em avanços,
Ikan foi sendo Muhatu e Muhatu foi sendo Ikan.

Orobó agora deixara de ser real.
Orobó era magia sem Tempo.

Condenados à coragem, astutos imaginaram
o persistir: modos únicos de revolução.

A hora em que Ikan iluminou Muhatu
fora também a hora em que Muhatu, 
já diagnosticada com "doença de amor",
fartou de nomes as coisas-meras-coisas.

Toda uma maneira se desintegrou.
Então, compartilharam personalidades.


sábado, 4 de maio de 2019

Os manejos em assanho de Orobó (Parte III)



Por Germano Xavier


reza a lenda que eles pousaram no Grande Horto 
e que o pouso fora a certeza do amanhã.
e que o amanhã era o ind'agora em ontens.



Pedra brilhante de Itá Berá: é brasa na Chapada.
Lugar incendioso das matas antigas e do povo bom.

Brigadista é Ikan, mas antes tocador de fogo,
que é ser-liberdade em cores e crepitares.

Saiu para fazer arte no céu das dúvidas.
Levou Muhatu, a Pequena, pois dela é o Reino.

Quem liga o sol é o próprio calor da hora.
A massa é antes o forno: carvão ativado.

Pássaros sobre o fio - alta tensão.
Porta-porto: pousada. Lama no beijo.

Mel. Água. Suor. Rosto. Corpo. Seios.
Vãos nada vãos. O Gigante e a Pequena.

IkanMuhatuIkanMuhatuIkanMuhatu.

Os dois, pálidos de tantos.
Os dois, certos de que sempre.
Ikan e Muhatu, corações grávidos.


* Imagem: https://www.deviantart.com/einsilbig/art/Signs-of-the-future-707174452

segunda-feira, 1 de abril de 2019

Nunca mais



Por Muhatu



“[…]Ya no es mágico el mundo. Te han dejado.
Ya no compartirás la clara luna
ni los lentos jardines. Ya no hay una
luna que no sea espejo del pasado […]



Jorge Luis Borges, excerto do poema 1964





Nunca mais



64

Nunca mais

Dizem os meus irmãos na outra margem

Do enorme rio atlântico

Nunca mais o pesadelo a tortura

A ignomínia o silêncio

Nunca mais

O nome de Deus e da família em bocas vãs

O amordaçar sumário das ideias

O apagamento de homens e mulheres

A condenatória sentença da dissidência

Nunca mais

A intolerância o ódio o bestial

E sádico prazer do encarceramento

O autoritarismo falho de liderança

A pátria algemada no ardil do nacionalismo

Nunca mais

A ditadura travestida de mão disciplinadora

A opinião condicionada ao medo

A expressão do pensamento algemada

E a liberdade esbracejando para a superfície

64

Será sempre

Um sonho de Paz por Martin Luther King

As constatações proféticas e dolorosas de Borges

A Literatura e As Palavras autobiográficas de Sartre

Chilenos marchando lado a lado com Allende

Será sempre

A combate pacífico e LOVE

Na voz de Nat King Cole

Outra Garota de Ipanema

Paris em festa n’as memórias de Hemingway

Será sempre

Os Pastores da Noite de Jorge Amado

Ou Isto ou Aquilo na poesia da Cecília

Millôr Fernandes e uma revista abortada

E também Luuanda do Luandino

Será sempre

Chitty-Chitty-Bang-Bang

Nós Matámos o Cão Tinhoso

A Legião Estrangeira

E O Cavaleiro da Dinamarca

Será sempre

Mariem Mint Derwich

José Rodrigues dos Santos

Adjoua Flore Kwame

E esta esperança que vos fala.


* Imagem: https://www.deviantart.com/s0n-et-lumiere/art/street-at-night-III-105032016

sábado, 23 de março de 2019

Canovaccio



Por Germano Xavier



Tema: o antídoto do Eu

Cena: há só um escritor no auge (nada pode descrevê-lo).

Personagem: um inverno.

Observação: ou se vive na carne ou tudo é anulação.


* Imagem: https://www.deviantart.com/humpf/art/dias-assim-64253843

sábado, 16 de março de 2019

Os manejos em assanho de Orobó (Parte II)



Por Germano Xavier


reza a lenda que uma serpente,
enveredada na noite quilométrica, 
correu chão até ser o encanto das línguas.



Itá Berá, pedra que brilha, veio e se foi em silêncio,
cidade das acutilâncias e dos espantos inaugurais.

Ikan era já Muhatu, Muhatu era já Ikan.
E toda uma Terra imensa se tremia.

Os dois, doentemente contagiados pelo tumulto
das farturas, agora veriam de perto a Mãe-Noite.

Sem-igual era a estrada.

A estrada era uma longa serpente
de riquezas, fluidos, sensos, línguas

e escolhas.

Sem-igual era a estrada.

A estrada bem no centro da Mãe-Noite, além-Orobó,
era a impressão mais nítida do Corpo, do Amor, da Vida.

Muhatu era o licuri maduro, inchado de dentros,
arte-mor de todo um conflito. Muhatu era a reação.

Ikan, caído em morte póstuma, agora renascia,
criança de colo no seio do Deus-Depois.

Ikan era a serpente, e a serpente era a estrada.
Muhatu, o emblemático destino e sua larga distinção.


* Imagem: https://www.deviantart.com/cllozdemir/art/ciplak-168844490

domingo, 10 de março de 2019

Entre Mares e Marés: Conversas Epistolares (Parte XVI)




Viana, esta carta é ditada pela saudade.

Das nossas conversas, também, mas sobretudo das pessoas que já fomos e daquelas em que nos tornaremos.

Hoje ouvi a minha voz gravada há quatro anos. É estranho, eu já não sou bem aquela pessoa, dizer aquelas palavras agora seria plagiá-la. Continuo a subscrever o que diz, mas a voz endureceu e as esperanças são outras. Vamos empurrando com a barriga até atingir os nossos objetivos, que são simples: ser feliz e ajudar outros a sê-lo também. Tudo o mais parece ser secundário. Apenas os caminhos para se chegar lá podem parecer tortuosos e cheios de armadilhas. Como é o teu?

Falámos já das nossas rotinas e do meio local em que nos movemos. Não vou retomar esses diálogos porque gosto de pôr à prova a nossa memória das circunstâncias e das emoções, mais do que dos factos em si.

Pensei há dias que não gosto de política, ou melhor, de falar de política em público. Não significa que não me interesso, pelo contrário, apenas que nada tenho a dizer de relevante tendo em conta as opiniões fundamentadas de pessoas mais informadas do que eu, de especialistas, de cidadãos atentos. Fico a pensar se é possível que o nosso mundo esteja a viver em caos apenas porque andam soltos meia dúzia de monstros. Será que nós é que os parimos? Isso seria assustador. Nós manifestamo-nos contra extremistas e tentamos fazer prevalecer os valores em que acreditamos. Mas depois vemos cidadãos comuns, que compram pão na mesma padaria que nós e cujos filhos estudam com os nossos cometerem atrocidades, matarem indiscriminadamente, comportarem-se como vândalos, sem noção clara das suas responsabilidades e do impacto das suas ações. Até onde é justificável a ira? Até onde podemos ir para mostrarmos a nossa indignação? Não deveríamos nós também, cidadãos, que tanto clamamos direitos, termos consciência das nossas responsabilidades como seres humanos? Não vou citar factos concretos, tragédias comentadas até à exaustão, até porque qualquer uma delas depressa ficaria soterrada por tantas outras que acontecem diariamente e que desviam a nossa atenção. É a banalização da violência o sentimento de impotência que se instala.

Mas eu explico porque não falo de política, porque me abstenho de comentar, a não ser em conversas íntimas como esta nossa, impublicável e secreta. Se alguém nos lesse fora deste contexto caía o Carmo e a Trindade e a ditadura do politicamente correto haveria de se divertir a esmurrar-me a consciência. Chamar-me-iam alienada, superficial e egoísta. Desatenta e indiferente. Não sou tanto, não sou nada disso, na verdade. Cresci vendo nascer um país — Angola — com convicções éticas iluminadas por uma certa moral de esquerda, ligada aos ideais que professei toda a vida, e que mais não são do que uma expressão concreta do humanismo e da fraternidade. Esse país é também meu, pois ser angolano não exclui ser-se também português, ou de qualquer outra nacionalidade; e não falo de passaportes mas de cultura e de laços históricos e familiares.




Quando esse país nasceu eu tinha onze anos e experimentei coisas que causam estranheza a outros meninos da minha idade, nos dias de hoje: participei em campanhas de vacinação, assisti a reuniões de adultos na Comissão de Bairro, onde se tentavam sanar alguns problemas prementes de um país que começava com graves dificuldades, ligadas a infraestruturas inoperantes e muitos serviços deixados ao abandono. Tudo isso me marcou, positivamente, em termos de cidadania e de civismo. Acho que o que ficou para sempre, de maneira mais absoluta, foi a solidariedade. Por isso falar de política hoje parece-me algo descabido, absurdo, está tudo muito refém da economia e de uma certa noção de segurança. Os partidos têm programas de ação e uma base ideológica débil. O voto tende a ser meramente útil — o do medo, o da incerteza — e da derradeira e desvairada desesperança. O voto significa rejeição, condenação, algo como um simples “basta”. Não sei como se pode propor aos cidadãos, ao mesmo tempo: transparência, segurança, pleno emprego, ética, combate a todas as formas de discriminação, saúde e educação tendencialmente gratuitas e universais, uma economia equilibrada. Se alguém conhecer um político ou partido capaz de responder a estes desafios com responsabilidade diga-me que eu voto, se for daqui. Tu conheces?

Cada direito tem um custo e lá vamos nós ter outra vez à questão de direitos/deveres. Sem o cumprimento dos segundos, bem podemos sonhar com os primeiros.

Mas chega de banalidades sobre um tema de que nem gosto. Eu quero é ver gente à minha volta com saúde e bem-estar e acreditando no futuro.

Por aqui escreve-se muito, cada vez mais, de forma mais orientada. Tenho o sonho de publicar literatura infantil, mas como chegar a esses leitores tão exigentes? Ilustrador eu já tenho um em mente, uma pessoa que faz desenhos fabulosos que antecipam as minhas histórias.

A poesia e o conto estão sempre na ordem do dia e penso que alguma novela poderá surgir de um conto, mas isso implicaria mais cuidados com o desenvolvimento das personagens, do cenário e da história. Rigor cirúrgico, delinear situações que se mantenham de pé. É um exercício difícil. Agora divirto-me também lendo em voz alta, procurando interiorizar histórias alheias com as quais me identifico (muito). Poesia, sobretudo. Se soubesses como é difícil. Provavelmente saberás, até pelo teu percurso como professor: como reagem os teus alunos a estas pequenas torturas?

Viana, eu tenho sempre muita coisa guardada para te contar, às vezes quando faço longas caminhadas por aí vou falando contigo internamente, tenho pena que não me possas ouvir. Pouparíamos toneladas de papel. Estas conversas — nossas — têm um certo encantamento que surpreende: por mais tempo que passe a gente arranja sempre forma de resgatar aquela palavra que falta para ligar a ponte à outra margem.

E hoje fico por aqui. Na escrita. Pois no pensamento a conversa continua meses a fio.

Um beijo cheio de amizade,
Clara


Lisboa, 16 de Dezembro de 2018


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Clara,

É também a saudade imensa. Quanto tempo sem as nossas cartas, sem as nossas conversas e diálogos? Muito. Muito já. Muito para nós que somos-sempre e perto-querer. Aqui, deste outro lado do oceano Atlântico, as coisas não vão boas nem mesmo razoáveis. Eleições findadas em 2018 e um novo (des)governo assolando tão gerais gentios e terras tupiniquins. Brasil que perdeu o prumo, o rumo, o caminho.

E você que me pergunta sobre caminhos, impossível não ligar nosso caminho ao caminho que toma a nossa nação nativa, natal terreno. Se o país vai bem, nosso caminho é mais tranquilo, podemos chegar mais longe e levar mais gente do nosso lado. Se o nosso país capenga, titubeia, ardeja e claudica, nossos passos se tornam incertos, improváveis, repletos de surpresas pelo trajeto. Ficamos à mercê do destino ou quase isso. Mas é indubitável o nosso crescimento, o nosso amadurecimento. Por mais que não percebamos em sua inteireza, o nosso desenvolvimento enquanto seres humanos é algo bastante real. Vez ou outra também caio nessa de me ver refletido em alguma ação do passado e termino por elaborar comparações que, em grande parte, me alegram pelo justo fato de me enxergar evoluído perante outrora.

Infelizmente, nem todos evoluem, Clara. Alguns não se tocam e permanecem os mesmos durante anos a fio. É o caso do Mijair Bozocoiso, vulgo Jair Bolsonaro (ou simplesmente "O Mito", para os seus devotos), que assumiu a presidência do Brasil após golpes e mais golpes contra o Estado Brasileiro e contra a Democracia. Este sujeito, ratazana política e parasita congressista da mais vil espécie, representa a mais tosca forma de discurso político que já presenciei em vida aqui neste imenso país. Mentiroso, caloteiro, corrupto, hipócrita e maldoso são apenas alguns adjetivos carinhosos que posso destinar a este homem que claramente é racista, misógino, defensor da tortura e de outros muitos métodos nada humanos de convívio para com o próximo.

Ludibriando o eleitorado com um pregão baseado em clichês sobre segurança pública, moral familiar e religião, além de vomitar ódio para cima da esquerda brasileira, este sujeito incutiu em parte da população um sentimento de ódio em ebulição, principalmente voltado ao Partido dos Trabalhadores (PT), e jamais concebido anteriormente. O certo, Clara estimada, é que estamos chegando ao terceiro mês do governo atual e nada além de prejuízos à sociedade puderam ser vislumbrados até então. O povo está em último lugar se depender dele e de sua equipe, completamente despreparada, por sinal.






Também não sou muito de conversar sobre política, Clara. Você bem sabe disso. Mas as coisas estão tão evidentes aqui, e risíveis e ao mesmo tempo preocupantes, que não dá para ficar calado, por vezes. O ódio contaminou a todos. Quem tem o pensamento voltado à esquerda, como eu, sofre para ficar sem alimentar ainda mais o pandemônio que estamos vendo e vivendo a cada novo dia.

Enfim, é preciso amadurecer. Decerto que não há no mundo nenhum grande homem com todos os poderes e soluções nas mãos. Todavia, aceitar monstruosidades e bizarrices de um governo puto e cruel não é papel de alguém que sonha ver seu país caminhando para frente. Não dá para regredir. Não mesmo. Para se revoltar o verbo é também muito útil, pois.

Uma curiosidade, Clara. Você poderia me dizer um pouco de como a imagem deste presidente brasileiro atual está chegando aí em Portugal? O que dizem os noticiários, os especialistas no assunto? Já há um pensamento formado acerca de Bolsonaro? Se não quiser responder, fique à vontade. Não perca seu precioso tempo com estas minhas coisas, também, se achar prudente.

Fico imensamente feliz quando me contas sobre tuas novas e próximas aventuras no ramo literário, Clara. E fico também ansioso para que elas vinguem e consequentemente para que eu possa tomar conhecimento ainda mais real acerca de todas elas.

Veja, Clara, sou e sempre fui professor de alunos mais humildes, de uma classe econômica mais desfavorecida, apesar de minhas investidas também no ensino superior e em outras faixas educacionais. O desafio meu, antes de tudo, é fazer com que o meu aluno se interesse pelo livro, por ler livros, textos, pelo letramento em si... Grande parte chega até os meus domínios com alguma dificuldade na escrita e na leitura. Daí é preciso todo um esforço de prevenção e assistencialismo mesmo, para que depois possamos vivenciar o amadurecimento de alguns estudantes frente ao poder transformador dos livros e da leitura. E como é gratificante ver o resultado em alguns deles! É um trabalho bastante exigente, mas necessário e muito importante, onde não se pode fraquejar em momento algum. 

Também carrego alguns projetos para os próximos dias, meses, anos... vamos ver se algum conseguirá sair do papel. Até lá, seguirei com o blog e outras tratativas. 

Um beijo doce, Clara, desta Caruaru pós-carnavalesca e de clima agora mais ameno.

10 de março de 2019.



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Clara e Viana são dois amigos de longa data que se redescobrem e desenham o mundo à sua volta pelas palavras que encontram, que constroem e que usam para pintá-lo. (De longa data em face da finitude da vida, recentes diante da imensidão da eternidade). Mas, que importa isso? Eles propõem-se descobrir dois universos complementares, sem artifícios nem maquilhagem, para além das máscaras habituais, as que protegem o ser humano da solidão e das agressões.

Clara e Viana são dois heterónimos, duas personagens que ganham vida através do tempo, do ritmo da palavra e do sabor dos respectivos sotaques.

Luísa Fresta e Germano Xavier dão vida a este projecto.

* Imagens: Cristina Seixas