sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Mais um tempo de nascer



Por Germano Xavier

Sejamos francos: o mundo já não pode ser mais descoberto. Já invadimos os seus escuros. Todavia, ainda é um dia bonito esse. No corredor externo estou, no manejo de minha antiga máquina de escrever, hoje revisitada por meus artelhos. Bonito também o cenário que minha parte oeste agora avista, um céu sutilmente azul, sem exageros, dois coqueirais adolescentes, verdes com extremidades douradas. E tudo isso por detrás do muro rosáceo que traça um espaço limítrofe com a casa contígua. Mas eu sei – a gente sempre deseja o além e o ademais das coisas -, ou imagino saber, que a vida não é só isso que nos acerca em rutilâncias e fulgores. Creio isso ser o de menos, o fungível. Dizem os sinos que o Bom Homem nasceu e que ano finda agora. Mas não conheço o Homem e nem sei se acredito. Tanto que se porventura alguma vez em minha vida estive ao seu lado, não me ative aos seus encalços. E no momento estou descalço. Na verdade, nenhum borrachudo abafou meus pés no dia que acontece. Coisa de cinco graus abaixo da temperatura ambiente é como deve estar o velho piso retangular e avermelhado do rol em que estou, mas não estou com frio. Dificilmente sinto frio. Tenho essa sensação por outras coisas, não pelo frio propriamente dito, mas que ela existe é certo que sim. E é justamente por esses desencadeamentos, muitas vezes inoportunos, que tomo consciência do quão estranho posso ser se. E sou somente isso? Certamente não. Significo. Fito novamente o vermelho dos azulejos. Sinais de passos não existem, como não há nada de interessante em meu horizonte leste. Apenas um lavabo sujo onde as pessoas se imaginam purificadas depois de um ligeiro asseio matinal. E sei que o cachorro também é leste, o quintal fica para o ocidente. Todavia, nem sempre foi assim. Será sempre para sempre? Mas nem os “todavias” importam agora. Dizem as línguas, boas e más, que alguém nasceu e o ano finda. A vida sempre está além de qualquer coisa. Entre outras pessoas, o não se ater ao ínfimo é coisa natural. Não sei suprir minhas deficiências com suplementos vitamínicos sintéticos. Não sei. Aprendi desde cedo que o bom mesmo é o que dá trabalho, que nos faz pestanejar, suar. Aquilo de sentar a bunda numa cadeira, noite inteira, noite adentro, aquilo de suar a camisa, de matar o leão diário. Aprendi em casa que a vida, para ser boa, tem de ser dura. E tem sido assim comigo desde o dia em que resolvi que morreria escrevendo. Tem sido árdua a minha vida, apesar de não parecer. Disse, sim, ensimesmado, numa certa tarde de março ou abril, de algum certo ou incerto ano, que minha missão aqui na Terra seria escrever, deixar coisas impressas em papéis. Escrever sobre tudo, sob tudo, com pressa, compresso, sem, com, amando, detestando, não e sim, escrever, escrever sem fim. Faz alguns anos e hoje estou dos meus vinte e tantos de vida. Os últimos passei lendo e escrevendo. Poemas sem pé nem cabeça, prosas sem graça, com graça, desejosas, textos e textos. Vida escorrida do meu peito, do que já vi, ouvi, li, senti. E mesmo olhando os muitos papéis que guardo comigo, tingidos numa letra horrivelmente medonha, perco-me e não sei dizer se estou indo como desejei. Mas sinto que estou seguindo. Passos lentos, ingênuos ainda, mas estou. E isso me faz alegre, porque triste já sou de nascido. Escrever me faz acordar do pouco sono que durmo, alimenta-me na tarde dominical de fome anímica, seduz-me, apaixona-me, diz a mim que sou algo e isso basta. Sou algo para mim, e basta! Escrevo, escrevo, escrevo. Escrevi. Escreverei. Sim, escreverei até quando me for possível escrever, até quando me for possível destilar minha água podre ou límpida num papel alvo, puro de tanta criança interna. Portanto, faça daí que faço de cá. Esqueçamos um pouco dos frios e acendamos nossos quentes. É um pedido. Feliz 2011.

sábado, 4 de dezembro de 2010

Uma epígrafe nota de sangue quente


Por Germano Xavier

Por vezes, quando tomamos um livro em nossas mãos, é a capa, bem chamativa, que nos convida a lê-lo. Outras vezes é a brochura, o cuidado com o acabamento, a dedicatória que o autor usou, a cor do papel, as ilustrações, o gênero textual, a quantidade de páginas, o próprio autor, entre tantos outros aspectos que esse suporte pode oferecer em direção a uma atitude de fidelidade envolvendo o duplo leitor-interlocutor. Durante estas minhas andanças por lugares imaginários e reais, impressos em páginas de livros, muitas vezes deixei-me dominar por pequenos sinais que um ou outro catatau me enviava. Porém, mesmo depois de quase dois anos de lido, a epígrafe-nota do livro A Sangue Frio (In Cold Blood ), escrito por Truman Capote em 1959, relato de um grotesco assassinato em cadeia no interior do Kansas, nos Estados Unidos, ainda não viu concorrente em minhas anotações oculares, tamanho o seu potencial expressivo. A bem da verdade é que ainda estou por ver algo tão sintético e puro, algo tão capaz de dizer aquilo que sempre quis um dia, para o Deus-Palavra e para mim.

Eis o fragmento:

"Um dia, comecei a escrever, sem saber que me acorrentava por toda vida a um senhor nobre, porém implacável. Quando Deus nos dá um dom, ele também nos dá um chicote; e o chicote se destina apenas a autoflagelação... Estou aqui na escuridão de minha loucura, sozinho com o meu baralho - e, é claro, o chicote que Deus me deu."

Nada tão verdadeiro.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Das raízes antropofágicas


Por Germano Xavier

Não sou das Antas lerdas
devoradas por predadores velozes.
Pinto-me de azul e branco,
e não do conservadorismo caviloso
do Verde-Amarelo.

Meu Brasil é assim: um mundo!
Meu Brasil é primitivo.
Chega a ser obsoleto, mas original.
Sem elementos falsos.
...

E o tempo é índio!
É consciência e revalorização.
É a semente da cultura,
o rosto descalço,
o pé descamisado e feliz.
...

Feliz por não ter porções
imprestáveis do sangue
deste “Velho Mundo”...
Feliz por ser Abaporu.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Oaristo em madrigal


Teu gosto na minha boca
teu olhar no meu colo
nossos poemas entrelaçados
sem rima, sem remos...
poesia à deriva

páginas viradas
com dedo salivado,
a filosofia existencial
sussurrada nas entrelinhas
tocadas como cordas
de um instrumento mudo
clip under graund
dos nossos hits mais profundos

corpos textuais
espalhados entre livros-livres
escritos no silêncio
do pós-fácio
de um único Ato

uma pixação humana
sobre lençóis imaginados
adormecidos num hiato
balbuciam em sonho
sílabas de des-pe-di-das...
prá manter a conexão
num até...

Só Bataille traduz o dia seguinte.

Presenteado por Cláudia Lemos.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

2011, dia primeiro



Por Germano Xavier

Eu acordei meio grogue. Não dormi bem, o que não é nenhuma novidade. Levantei. Quase uma vertigem. Libei um gole d'água. O cobertor estava no chão, o travesseiro todo amassado. O ventilador girando lento no quarto abafado. Meu irmão resfolegando seu sono de seixo.

"2010 acabou", disse alguém. E aquilo me soou estranho. “Como assim, acabou?”, perguntei aos meus botões. “E tudo que aprendi "naquele" ano, também se acabou? E a lembrança de certas coisas que fiz em 2009, não existe mais? Os 187 livros que li - batendo meu próprio recorde, que foi de 172 em 2006 -, não valeram de nada? As inesquecíveis viagens de moto que fiz por aí, cortando O LUGAR MAIS LINDO DO MUNDO, também sublimaram? As pessoas que conheci, os suores que senti, os aprendizados, as aulas que lecionei, os poemas que escrevi... tudo isso, "acabou"?”, insisti.

Não arrumei a cama, fato insólito. Caminhei pelo corredor, fui ao banheiro. Meu pai já havia acordado. Minha mãe ainda estava deitada e pronunciava meu nome imperativamente: “Você não disse que ia viajar hoje?", bradava. Respondi que sim.

Estava de malas não-arrumadas. Destino: Algum Lugar. Decidi isto, desde que entrei de férias. Preciso espairecer a mente, pois 2010 não foi um ano fácil. E se escrevo este texto, neste exato momento, é porque perdi o ônibus que passa aqui pela manhã com destino a. Mas, tudo bem, o tempo passa e não existe apenas um ônibus no mundo. Vou sozinho, levando na mochila um livro.

Eu não sei onde quero chegar escrevendo este texto, mas sei que não é no que é "acabado". Quero, sim, que ele seja recomeço, que balbucie ventanias por mundos distantes, que me sirva de alento sempre, que me encaminhe por paraísos não descobertos nesses idos iniciados novamente. O que eu quero, na verdade, é que seja ele, só. Um texto, por simplesmente ser ele mesmo, e que eu, aqui, o seu escritor, pudesse calçar palavras por muitos "onzes" que, sei, ainda vingarão.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Leituras


Por Germano Xavier

Para começo de conversa, é preciso salientar que o poeta Gregório de Matos tinha absurda e considerável ciência acerca do que produzia. É necessário uma boa dose de vivência para que um determinado escrito consiga elevar-se como obra e conquistar outras dimensões de significação e representatividade. Ele, o "Boca de Brasa", é um retrato fiel da idéia de que a vida imita a arte, ou o inverso. Gregório viveu, comeu e bebeu do seu tempo. Para Alfredo Bosi¹, o bardo "é mais do que uma figura e um autor porque retrata, sob muitos aspectos, e tipifica, em quase toda a sua obra, o meio e o tempo". E quando voltamos o nosso olhar à retratação da figura feminil em sua obra, cuja autoria é ainda bastante polemizada, não acontece de modo discrepante. Analisando os poemas propostos para o devido estudo ("RETIRA-SE DESDENHOSA DO POETA PARA HUM SOLDADO DE CUPIDO A TEMPO, QUE ELLE FAZIA O MESMO COM ANNICA" e "EPITAFIO À MESMA BELLEZA SEPULTADA"), percebe-se claramente um posicionamento ideológico baseado em extremismos. De um lado, a visão essencialmente preconceituosa da mulher negra - diante da questão, Gregório não titubeia, e escreve com a inicial maiúscula o termo "mulata". O destinamento e a evidência de um racismo é por demais escancarado. O poema tem como enredo, se assim pode-se aferir, um troca-troca envolvendo duas mulheres e dois homens. As mulheres, aqui, são negras e vêem-se traduzidas à míseras mercadorias ou produtos de negociação. O poema primeiro se desenvolve, do início ao fim, numa atmosfera densa, marcada por uma tensão que envolve os paradigmas do "ter", do "poder" e, mormente, da eternidade das relações humanas. Comparado ao segundo poema, este apresenta-se totalmente encaminhado sobre um território ameno, livre de aturdimentos e tensões, fluido e mais contemplativo, uma vez que o seu destinatário é uma mulher de pele alva, portanto digna1 dos mais altos congraçamentos. O poema expõe uma linguagem mais coloquial, chegando a beirar a vulgaridade, aproximando-se de um erotismo encadeado por expressões e jogos de palavras por demais singulares. Para corroborar da idéia de aproximação do que é popular através do uso de uma linguagem diferenciada, Bosi² vai dizer que "não menos interessante é o estudo da contribuição de Gregório de Matos para a aproximação entre a linguagem literária e a linguagem popular, pela maneira como introduziu em suas composições não só palavras até então proibidas ou vedadas ou mal-aceitas como expressões de uso comum". Dedicado à Dona Ângela, a comparação elogiosa concebe à personagem um caráter de gigantismo e de inesgotável estima. D. Ângela, mesmo morta, é possuidora de uma beleza quase inefável. Aqui, a dualidade temática "vida X morte" faz-se demasiado presente. Eis, pois, poemas comprimidos em antagonismos, dum poeta-marco do Barroco, que pouco soube fingir a inverosimilhança das relações, das coisas e do mundo do e no seu tempo. Já no poema árcade "VI", de Cláudio Manoel da Costa, o homem consegue, após consideráveis embates, encontrar-se. E é a natureza, o ambiente bucólico, o fator que ilumina o ser. Nela, sendo-a e estando inteiramente entregue a ela, o homem encontra a necessária paz e a vida harmoniosa, pautada numa lida ponderada, racional, sem aflições. Já no poema barroco "AO BRAÇO DO MESMO MENINO JESUS QUANDO APPARECEO", o humano confunde-se com a própria parte e o próprio todo conflituoso. O linguajar, o modo como a palavra e a imagem são confeccionadas transforma-se em mais um entrave para a compreensão, impedindo o suave transcorrer da leitura por parte do leitor. E assim vamos...

1- P. 86/ 2- P.87
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo. Cultrix, 1970 – 44ª ed., 2007.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Comunidade


Por Germano Xavier

Homens de norma.
Homens de morna língua,
cobras-Norato sem escamas.
Homens sem amas, sem peitos, sem mamas.

Homens sem camas,
na lama.

Homens sem gana, descamados.
Desengrenados, homens-ladeira.
Homens-engano. Homens sem peixes,

homens-aquário

sem o riso dos rios, sem a obediência
das lágrimas. Homens sem Natal,
sem

a fatal idade das sortes.
Homens fardados. Homens fortes?
Homens pardos, enfadonhos,
parcos, poucos, porcos,
passam

imunes.
Homens pastos, homens pastam.
Homens ignorando homens,
homens deixando de ser
o que tem.

Homens armados. Homens amados?
Homens sem alma, sem arma
alguma.

domingo, 26 de setembro de 2010

A mudez de Deus



Por Germano Xavier

Não era o Príncipe Feliz. O barulho dominical tinha terminado para sempre. A casa ficara livre para canários. As sacolas plásticas dançavam valsa. Ursos de pelúcia esparramados pelo corredor da casa agora andavam pelo vestíbulo quase Arco do Triunfo. O suspeito de tudo teria ido. A viagem era de se ir. Todos vão, e o vão é também suspeito, mas apenas isso. Andorinhas não existem nessas horas. Não há itinerários. Somente retornos. O café gelado bem poderia estar gostoso. Não era feliz em nada, coração de bronze, pedaços dados e jogados aos pombos. A praça tinha sabor de bolinho de chuva. Quando pensou que os tempos não eram os mesmos deu seu sinal de bem-aventurança. Cada qual ama aquilo que ama, e ama ser saber o que é amar. Cada qual morre da morte que é, féretro ou terra batida. O príncipe vivia sem viver, e queria morder repolhos. O rouxinol é simples na cor da idade, flor de Aragonita. A igreja foi embora de lá. Deixou o grito e o aperto no peito. A cama ainda suada, corpos nus, ambos, mudos de Deus...

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Linguística: um texto?


Por Germano Xavier

BORBA, Francisco. A linguística. In: Introdução aos estudos linguísticos. Campinas. São Paulo: Pontes,1991.


Diante do texto de Borba, a primeira informação a ser destacada é a de que o termo "Linguística" faz referência à ciência da linguagem (forma de expressão ou uso da palavra articulada, ou escrita, como método de comunicação entre indivíduos) e, particularmente, da linguagem articulada. Sendo assim, a linguística tem por finalidade básica determinar a natureza da linguagem e a estrutura/funcionamento das línguas.

A linguística trilha dois caminhos diferentes. Um é o de fomentar uma metodologia de trabalho para a montagem e explicação dos fenômenos linguísticos. O outro é o caminho da observação e descrição de línguas, o que serve como uma tentativa para se chegar ao entendimento de todo o "funcionamento" de uma língua, seja ela qual for.

As roupagens diacrônicas e sincrônicas que a linguística perpassa não podem, em hipótese alguma, deixar de ser reveladas. Nesse caso, a primeira faceta observa todo o arcabouço e mecanismo de uma determinada língua levando em consideração a sua maleabilidade e a sua capacidade mutacional no espaço e no tempo. Do outro lado, trabalhando com um respectivo estágio analítico, e "desprezando a questão da evolução temporária", encontra-se a linguística sincrônica.

O objeto da linguística é mais complexo e complicado de se trabalhar do que julga a nossa vã imaginação. Como é um segmento do conhecimento que acaba invadindo diversificadas matérias e, por sua vez, termina por dialogar com outras disciplinas e assuntos, o linguista, em seu papel de elaborador e organizador temático, desempenha um labor de difícil execução e que exige demasiada destreza. É o linguista o responsável pelo ordenamento, pela captação e análise das manifestações e manipulações da e na língua.

Áreas como a psicologia, a sociologia e a antropologia estão cada vez mais influenciando e sendo influenciadas pela linguística, posto que o estudo detalhado e específico dos elementos basais da comunicação entra em constantes choques e conexões com o que há de interferências sociais, culturais, comportamentais e logísticas no que concerne à relação homem-indivíduo-sujeito, o que as tornam disciplinas mais ricas e aptas a se desenvolverem ainda mais, aumentando o espaço da mediação interdisciplinar.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Concreta poesia


Por Germano Xavier

Vaga
Vaga
Vaga

VagaVagaVagaVagaVagaVagaVaga
vagavagavagavagavagavagavaga
Vaga Vaga Vaga Vaga
Vaga Vaga


vaga
vaga
vaga

Lume

O segredo de Kant e Sofia relendo a carta




Ritmo de toda hora, cor de toda forma, avesso de quem vai embora, lágrima de quem não chora, céu de cada um, música de um acorde só, origem do espinho, nuance do neologismo, volta incompleta de um círculo, movimento turvo no escuro, grito de voz rouca, parada militar na TV, peça de mostruário, intervalo para cigarros, sinal para pedestres, ave que voa sem bando, Beauvoir sem tentação, crítica qualquer sem lança chamas, medo de altura, tremor de terra distante, tremor de carnes sobre camas, visão gigantesca do abismo, queda livre em busca do equilíbrio, vozes do ventilador, ranger de porta engraçada, risada de deboche antes da piada, recôncavo sem entonação, imitação de canto avulso, marcha de cupins, filme europeu sem final feliz, peça encenada em dois atos, gente decorando sua fala, roubo de órgãos, auto-piedade, intoxicação boca a boca, revestimento da pele, hipotermia, insolação, cultos de preservação, melodias, sorrisos de criança, trajeto curto no espaço, segredo sem mistério, moça fazendo magistério, coagulação dos hemisférios, niilismo da nova estação, encontro sozinho, mãos sem abrigo, noite sem vinho, semente fora do ninho, pacificador, antropofagia de amor, levitação, vociferação, verbos e arquétipos, Anaïs Nin, Denser sem jardim, filosofia de boteco, casa sem teto, teto sem gente, linha sem trem, telefone fora do gancho, roupas na tinturaria, lavanderia, palavrão de cada dia, boca suja, velha tia, aposto, bom vício, sobriedade de virgem, linguagem médica, linguagem poética, metalinguagem de uma nova era, era tempo, era vez, era sol outra vez. Era começo de mundo, começo de tudo, poeta se irritou, apagou texto e deixou tudo nas mãos do leitor.

* A escritora Letícia Palmeira disse que escreveu este texto pensando em mim, após uma conversa virtual demasiado aconchegante, numa noite de encontro. Vindo da dona da Livraria Cósmica, a palavra se transforma em átomo primordial, passível de explosões... Muito obrigado, Letícia! Desse modo, a gente costura a teia da vida eterna e brinca de ser humano...

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Desbunde


Por Germano Xavier

Eu ficaria bem se tivesse permanecido ali, mesmo imótuo ou com aquele ar de criança chorando por querer tomar um pouco de sereno na noite que desce, sim, eu ficaria muitíssimo bem. Principalmente se jamais me passasse pela cabeça que o momento do agora não fosse coisa tão real assim. Pôr fim a um amor é encontrar um deserto, pedir ao pai do mundo, o criador do céu e da terra, um instante de silêncio para que toda a intensidade do abalo sísmico humano seja capaz de ser absorvido e interrogado se. É quase ter de pensar que com muito menos pesar ou dor poder-se-ia pensar em outra coisa qualquer, arrojada numa esfera destituída de lamentos, discórdias e decepções. Eu penso em como é inútil o pensar nestas horas! Parece mais a forma do abisso se formando por detrás das nossas retinas, a cor do inferno empapando as bolsas embaixo de nossos olhos, a febre doentia do molestado arruinando o corpo da alma e a alma do corpo, a corrente presa à pata traseira de um corcel indomável, este mal que me toma, este mal que me traga, este mal que não me soma... como é desnecessário o fim tendo começado esta toda história, agora estória, como é imprestável o pensamento feito de amargor! A quem cabe a engenharia das desamarrações? A quem se presta a patente das forçadas indiferenças? E pensar que deste modo estarei desistindo de tudo, principalmente do que fiz e que simplesmente ficou, por um motivo ou outro, descomposto e com o alicerce frágil, pois sonho era, e apenas, e ainda... e quando é a pergunta que fica, capitânia, capital, cercando o horizonte do porvir talvez. Grosso modo, quando um amor termina, os astros no firmamento afirmam, desbrilhados, que é hora de apagar as luzes e pôr as estrelinhas para dormir. E quando é a pergunta que torna sempre, que corteja o tempo infiel, que desabilita a juventude das certezas mais certas. Eu gostaria de ter ficado até o fim e no fim ter de contar uma outra história, ou ter conseguido beirar o sonho e realizar ao menos os desejos ou as vontades, estes édens. Mas se é para pôr fim, então que seja simples, porque é no simples que o amor persevera. Dou-te adeus, ex-amor.

"Recebi esta MISSÃO do blog da Pâmela Rodrigues, que consiste em criar uma carta terminando um relacionamento com alguém. Essa idéia surgiu a partir da exposição Cuide de Você, da francesa Sophie Calle. Ela convidou 104 mulheres para interpretarem um email de seu ex-namorado que gostaria de romper o relacionamento de ambos. Espero ter me saído bem, literalmente. (Escrito em 2009)"

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Eu que guardo rebanhos

Por Germano Xavier

"Porque quem ama nunca sabe o que ama/
Nem sabe por que ama, nem o que é amar..."
(Fernando Pessoa/1914)

Quando a noite dos dias aparecer na escama da tarde, lua nova pingando as doenças da alma, acredite no corpo vermelho de tua ânsia. Acredite que o tempo é o amor. Porque o amor é o sangue-instante coagulado em poços artesianos humanos. Não prive teu olhar para a lâmina côncava da água negra. Não prive tua mão ao reconhecimento do sol. E deixe, não queira, deixe o corpo em lança perfurar teu perfume... e viver o amor-fragata navegando mares sem cor. O não saber o suspeitável ou o não querer sentir fumegantes ares é o real dom daquele que sabe. Não precisa querer. Querer é matar-se. Não precisa precisar, a voz é rouca sentinela apática. Não olhe de longe a carga do teu ombro, a doença de ver extrapola o fio do terror tecido: o amor.

domingo, 20 de junho de 2010

Bad trip


Por Germano Xavier

anos de agora, a droga é nova
(por que não usar de um palíndromo
e resgatar o contrário de tudo?).
o mundo inteiro aperta o passado,
mas ele nem.

quem vai bodar na viagem sem fim
da vida? abrir a boca em vômito, as prisões
sem grade, bocarras sim.

o filho vai matar e comer.
a mãe vai matar e comer.
o pai vai matar e comer.
a família carnívora, que come.
minha teoria social é a de que nada há
fora deste samba de matança e do espelho.

nem mente, nem dor, nem alucinações.
a viagem é apenas cardíaca, e o coração se amplia.
deus criou o verbo para acionar a bomba e a cena.
e um segredo para um possível escape:

fotografar a anedota que é nossa essência fátua
para os meninos do destino nos anos de amanhã.

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Diálogo impertinente


Por Germano Xavier

- Ei!
- Manda.
- Quem te ensinou?
- Gostou daquele último, hein?
- Longe fui, desgovernado.
- É, só serve para isso mesmo, e para estes, os desgovernados. Depois, cada um escolhe a sua cruz...
- Pesada?
- Diria malva, quase púrpura.
- Dói muito?
- Minha casa fica na do Pronto-Socorro. Quando quiser...
- Passar bem.
- Melhor dizer isso aos pássaros. O que eu quero é o contrário. Só assim...

sábado, 22 de maio de 2010

O cinismo do sol


Por Germano Xavier

Onde estão as algemas? Preciso prender o Tempo! Devo armar uma tocaia, eu sei. E pegá-lo por trás, sem que ele perceba. Mas, onde estão as algemas? Não sei onde as deixei. Estou perdido. O frio é insuportável! É noite... Pequenos insetos voadores circundam os vidros translúcidos das luminárias dos becos da cidade que dorme a morte diária. Muitos fantasmas me espiam. Eles desejam o medo... querem que eu sinta medo... Bravo sou! Mas, onde estão as alg...

Que frio intragável! A escuridão noturna é a ironia do sol. O sol é mesmo um cínico, um partidário da rutilante desfaçatez. Sinto o vento gélido que vem dobrando as esquinas vazias, sem almas. Frio... Preciso amarrar o Tempo! Vou construir armadilhas para pegá-lo desprevenido. Espalharei ardis por toda a cidade. Isto me custará um tempo. As copas das árvores balançam numa dança macabra, elas parecem sinalizar alguma coisa.

O frio é cada vez maior. As algemas! Procurei por todos os lugares e nada. Estou perdido. Não conseguirei o que quero. As velhas casas parecem tão vivas. Mas, e o Tempo!? Meu Deus, onde estarão as algemas? Minha cabeça, onde estará?

Antes em forma de brisa, os ventos agora resolveram se agigantar. Eles sopram forte. O cenário é de esquisito. Sinto frio... Meu corpo treme. Sinto-me fraco, cansado. Vou descansar um pouco. Encosto numa parede e recolho algumas armadilhas para perto de mim. Folhas são sinfonias que escuto. Minha visão é confusa. Acho que vejo alguém se aproximando. Uma sombra. Um vulto. E cada vez mais perto. A sensação de frio é desumana. Tento um velho agasalho, não adianta. Meu Deus, será Ele? Algo de feições muito estranhas está vindo em minha direção. Beiro a cegueira. Por Deus, as algemas! Onde estarão as algemas? Até quando este suplício? A sombra... A sombra que desaparece. Não vejo nada. Tudo é silêncio e noite. Indesejável frio! Preciso prender o Tempo! Mas...

Saí em disparada. Os loucos...

O sol se lança. Um novo dia atravessa o caminho dos meus olhos. E eu que preciso prender o Tempo! Eu que preciso! Ainda o frio. Sento na calçada. As antigas formas se reconfiguram. Daqui, pacientemente, espero o Tempo passar...

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Solto no tempo


Por Germano Xavier

o amor volta desesgotado
como num céu só azul
tomado pelo branco fundo
e como refúgio sem pragas
um pássaro negro voa.

aceita o convite do vago
e enche o vão,
bota em baque a explosão
presa no disparo.

pooowww!
quem cairá será homem?
ninguém regressa de uma morte
mesmo sem queda.

quem ama impele a deixa
e deixa
o passado solto no tempo.

terça-feira, 11 de maio de 2010

Uma conversa, uma espreita


Por Germano Xavier

XIV

"É, se Deus quiser tudo vai melhorar!"

"Ah, não sei não. Eu duvido! Do jeito que as coisas vão..."

"A gente precisa pensar positivo, acreditar no ser humano e nunca desistir de lutar por nossos objetivos. E também nunca deixar de ter fé, porque sem fé tudo desanda."

Li isso em um destes livros de auto-ajuda, onde se ensinam as melhores formas de ser feliz, como se a vida tivesse uma cartilha.

"Sei não, eu sou meio cética em relação a esses pensamentos. Para mim, a vida é dura mesmo. Isso é baboseira editorial, só para vender livros."

"Não é bem assim, como você pensa. Estes livros de auto-ajuda sempre estão certos. Se a gente seguisse as 'receitas' que existem neles, o povo certamente encontraria a felicidade, a alegria de viver, a harmonia e até saberia a maneira mais fácil de arranjar dinheiro, porque você sabe, hoje em dia quem não tem a bufunfa se dá mal na vida, muito mal..."

"Eles ensinam a ganhar dinheiro, é?"

"Eu até já consegui comprar um aparelho celular para cada um dos meus filhos! Um televisor de plasma para ver os jogos da Copa, um aparelho de dvd para o meu caçula - ele adora aqueles musicais da Xuxa -, um microsystem de 6000 watts de potência de última geração, uma lavadora de 8 quilos igual a da propaganda, uma mesa de jantar giratória do tamanho daquela que foi utilizada no último reality-show da Globo, um relógio que projeta as horas na parede do meu quarto e outro que mostra até as horas no Japão, um casaco de pele italiano, um colar de ouro 24 quilates, um apartamento naquele condomínio de classe alta que saiu no jornal, dois conversíveis, vinte câmeras embutidas, dezoito seguranças particulares, cinco babás de descendência européia e muito mais. Tudo porque segui à risca os meus livros de auto-ajuda."

"Amiga, como a sua vida mudou!"

"É, graças ao meu bom Deus, a minha vida mudou completamente."

"E como vai a família?"

"Estão todos bem. O Eduardo está estudando na Inglaterra, a Ana Maria é dona de uma rede de supermercados em São Paulo e o meu caçula está seguindo os passos do pai."

"Ah, e o teu marido, mulher! Como vai o Adamastor?"

"Ele está bem, mas muito atarefado. Depois que abriu a Igreja da Universalidade Cristã do Amor do Bom Deus Sagrado do Quinto Dia, ele quase não tem mais tempo para vir aqui. Sabe como é, aquela igreja é a nossa fonte de vida. Tudo que temos hoje devemos a ela. Aleluia, Senhor! Aleluia!"

(...)

Ai, como dói a minha cabeça! Até parece que levei uma martelada ou coisa parecida. É a civilização, meus caros! É esta podre civilização! O que é isso? Quem são vocês? O que estão fazendo, seus impostores? Eu preciso urgentemente da minha puçanga! Onde estão meus comprimidos, onde estão? Não fujam de mim! Eu não sou louco! Eu não sou louco! Eu sou apenas um sonhador que acredita em "Mundos". Onde os meus "pássaros coloridos"? Onde a corda, eu preciso afastar meus olhos desta visão perturbadora! Vocês sabem o que fazer. Eu confio em vocês! É que eu preciso descansar um pouco. A liberdade está aí, como eu já disse, na fumaça dos seus cigarros. Eu sei de tudo que te fere! Eu sei!

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Um texto boliviano, solamente


Por Germano Xavier

Na verdade, um texto boliviano e preconceituoso, feito de verdades desmistificadas
e regado à "Tabacaria", de Fernando Pessoa.


Quase 4 horas da manhã e o homem da história encontra-se num dos quartos do Hotel España, próximo ao ponto de táxi que tem por origem a localidade de Montero, numa rua adjacente a calle Cañotto, uma das avenidas principais que corta o primeiro anel da cidade de Santa Cruz de La Sierra, no centro da Bolívia. O homem está pensativo, não consegue fechar os olhos. Olha intensamente para o ventilador de teto que gira lento enquanto faz perguntas incontornáveis a si mesmo. A mulher da história tenta dormir ao seu lado, na cama de casal estranha. Ele levanta várias vezes, e deita várias vezes também. Olha da janela a pequena praça quase abandonada de luzes. Enxerga um pequeno homem adormecido num banco solitário. O vento balança a copa das árvores, há um silêncio inquiridor no barulho que adormece. O homem da história visita os quatro cantos do cômodo e vê as malas jogadas e abertas calarem-se diante do destino feito de impulsos. A rota fora feita e lá estavam os dois, o homem e a mulher da história.

A cidade parece estar calma. Do aeroporto ao hotel, foram poucas luzes, ruas estreitas, avenidas sem gente, viadutos em construção, caminhos mudos. O táxi era velho, uma perua Toyota daquelas em que os retrovisores ficam próximos aos faróis, certamente da década de 80. O carro cheirava a sujeira e a gás. O motorista acendeu um cigarro e fez pouco do tempo novidadeiro em que os dois navegavam naquele momento - o homem e a mulher da história. Havia mais um homem dentro do velho táxi, conhecido da mulher da história. Tatuagem no braço, conversa de andarilho de mundos e fundos, jeito duvidoso. Foi contando coisas sem serventia para a vida durante todo o percurso e no final avisou que levaria o homem e a mulher da história para conhecer a UDABOL (Universidade de Aquino da Bolívia) no outro dia, bem cedo. Mas os dois estavam no hotel, dormindo na companhia de pequenas baratas bolivianas que adoram um umbral de porta de banheiro. O silêncio não era silencioso.

Os dois acordaram cedo e foram ao encontro do mesmo táxi do dia anterior. Nada do motorista boliviano. Esperaram sentados em frente a uma estação antiga de rádio, onde se via um homem a pronunciar frases esquisitas por um rádio do tipo amador, como querendo fazer contato com algo ou alguém muito distante. A espera prosseguiu por horas a fio, quando os dois resolveram andar um pouco para procurar algum estabelecimento onde se pudesse fazer o desjejum. Foram na direção do centro, sem saber, compraram água, que tomaram no caminho, e voltaram ainda com fome nas barrigas. Foi quando passou um vendedor de amendoim enrolado em saquinhos e um tipo de semente tostada cujo nome não souberam decifrar. A mulher da história comprou o saquinho com as sementes e experimentaram, os dois. A semente tostada tinha gosto de semente tostada. Fome, de bocas e de corações.

O velho táxi chega em meio aos gritos de “Montero, Montero!”, dados pelos taxistas da área. O calor era “caliente”, como se diz por lá. Sufocante no centro da cidade. Passamos para o terceiro anel – a cidade de Santa Cruz de La Sierra está construída na forma de 5 anéis, cortados por uma avenida-mestre – e logo chegamos ao apartamento onde o segundo homem da história residia, o tatuado sem pinta de estudante que acompanhou os dois desde o desembarque no aeroporto internacional de Viro-Viro. Algumas quadras e lá estavam os dois, ou melhor, os três, diante da bela e tão “sonhada” e “barata” faculdade de medicina boliviana. Antes passaram numa lanchonete e comeram um bolinho de nome salteña, com batata e frango dentro, de gosto duvidoso. O homem da história desgostou da guloseima e pediu um pão mesmo com queijo quente. Depois entraram na faculdade UDABOL e como tudo era tão lindo e maravilhoso!

Os dois andaram pelos corredores, entraram em portas, conversaram e ouviram em castelhano, deslumbraram-se com o tamanho das coisas e bonitezas estrangeiras num país miseravelmente abandonado pelo restante do mundo. O homem da história começou a duvidar de dúvidas já existentes. Alguma coisa devia estar errada. Que contraste!, pensou. Um Hummer H2, no valor que passa de 1 milhão em moeda brasileira, estacionado na frente da universidade, e um país que se movimenta em microônibus do tempo das nossas avós. Laboratórios, saguões, biblioteca, sala de apoio aos estudantes estrangeiros e estudantes de medicina, tudo visto e visitado. A hora da aula de anatomia estava próxima. Uma expectativa imensa e um rolo compressor...

Estudantes de medicina do primeiro semestre esperam alguém vir abrir a porta da sala de aula. Atraso de mais de meia hora. O professor que não chega. Quase ninguém com cara de estudante. Quase ninguém com cara de nada. E o homem da história no meio de tudo, no tudo do meio. O homem da história revisa e visa tudo e todos, parece não estar se sentindo à vontade. O jovem professor chega de preto nas vestimentas. Toma uma espécie de chá e vomita uma curta aula sobre a primeira vértebra cervical. A aula de anatomia estava dada. Em dez minutos, o homem e a mulher da história deveriam se endereçar ao laboratório para a aula prática. O que deveria ser 10 minutos de espera vira mais de uma hora inteira. O professor chega, distribui ossos para a turma, agora fracionada em três, recolhe dinheiro dos livros que ele mesmo editou e vendeu-empurrou aos alunos, corrige alguns exercícios (chamados repasses) e se vai. Os estudantes de medicina estudam medicina sozinhos no laboratório-açougue da UDABOL. A cena choca o homem da história. Tudo não era mais tão lindo nem tão maravilhoso assim...

O estudante brasileiro de medicina típico da UDABOL usa shorts coloridos, com flores como estampas, geralmente são tatuados, usam óculos escuros, estão sempre fumando e falando asneiras. Meninas brasileiras estudantes de medicina na UDABOL passeiam com suas caras da festa do dia anterior, desfilando seus shorts justinhos, suas blusas decotadas e parcos materiais de estudo. Parece haver uma disciplina da grade escolar chamada “Zueira”. O homem da história que pensava estudar medicina na Bolívia não encontrou medicina na faculdade de medicina. O homem da história volta ao hotel, toma um banho e não consegue dormir. Talvez um “pollo a la brasa” sem “plátano” no outro dia resolva...

A mulher da história desaparece da história neste momento por vontade do homem da história. Ele não quer mais interferir nos caminhos da mulher da história e passa a contar somente a história de sua própria história. Nem dois “pollos a la brasa” foram capazes de amenizar a doente alma do homem da história, tamanha a inquietude dentro do seu ser.

Coca cola, sorvete, pão integral e queijo, nada, nada... o homem da história conhecera o inferno dentro de si mesmo. Buscara saídas em todas as coisas e não via portas. O povo pobre da Bolívia lhe atingindo as vistas trôpegas, tão educados e tão esquecidos pelo governo. Pena lhe dava, compaixão ao ver os nativos jogados nas ruas, sem perspectivas. O homem da história havia decidido. Lá não haveria de ser o seu lugar.

O homem da história dormiu certo do que iria fazer. Voltaria ao Brasil o quanto antes. E assim sucedeu. Madrugada na Bolívia e uma ilusão desvendada. A cortina aberta de um teatro de mamulengos desesperados, inclusive ele. Mas ainda lhe havia um tostão de ética e razão enraizada em seu âmago. Abandonou o barco furado no meio do ciclone. Não acenou uma despedida, mas encontrou a paz dentro do avião. Um cheiro de saudade lhe saltou do olfato. Quis o aconchego dos ventos, pois somente eles...

Novamente o ar do país de nascimento. Certezas aprimoradas. Nuvens brancas no céu. Dúvidas solucionando-se na mente. Pés pisados em ovos agora mais leves. O corpo mais leve. A cabeça tranqüila. Nada melhor que um pensamento sem grilhões, pensou.

Seria trágico se não fosse cômico. Mas o homem da história era eu. A própria história do homem da história era a minha própria história de mim mesmo. O homem da história abandonou o naufrágio no começo para não morrer afogado no fim da história. E depois de chegado, abandonou outros barcos furados, para se sentir à vontade remando à vela na companhia de seus velhos e bons ventos pastores...

Doa a quem doer, minha opinião é curta e grossa: não perca seu tempo sonhando em cursar medicina na Bolívia ou em nenhum outro país estrangeiro. Estude para fazer o curso aqui mesmo no Brasil, por muitos motivos. A experiência que tive serviu para eu me encontrar dentro de mim mesmo, para ter uma conversa de mim para comigo. Desisto de ser quem não quero ser e quem nunca quis ser para ser o que quero ser e o que sempre quis ser. Adeus, medicina! Adeus, odontologia! Que venham as Letras e o Jornalismo! Que venham os conheceres profundos, nada técnicos, da arte e da alma humana! Avante, bucaneiros...

Apenas um menino de Iraquara

Por Germano Xavier


Para o pequeno Pedro Henrique, meu mais novo "amigão".


Por que ser adulto é tão chato assim? Eu não entendo e parece que nunca vou entender porque mudamos tanto de uma hora para outra. Sabe, no fundo, bem lá no fundo mesmo, eu não queria que aquele garotinho recluso, inventivo e irrequieto, dono de uma arraia enorme e que nunca planou no ar por falta de ventos mais fortes, ficasse assim sem jeito, mais que encabulado, macambúzio até, apagado aqui dentro de mim.

Aqui dentro, mas é bem dentro mesmo, eu queria que aquele “menininininininininininininininho”, como sempre escrevia em seu caderno, consertador de coisas, continuasse a consertar as coisas para minutos depois desconsertá-las, e para novamente consertá-las... Que bom mesmo é ser inventador de invenções, construidor de planetas, afetador de águas paralíticas, fazedor de diversidades.

É, bom seria!

Mas tem uma coisa que atrapalha, e é o pior de tudo. É que existe uma palavra cruel no manual do homem. A palavra “Tempo”. Você já reparou que essa palavra não larga do nosso pé?! Acredito que sim, não é? Por onde quer que andemos, faça sol ou faça chuva, esteja frio ou calor, seja noite ou dia, lá está o Tempo, implacável, impenetrável, pendurado numa parede, atado ao pulso, movido por um pêndulo, ecoando um tic-tac eterno, calculando as horas, cronometrando os passos, registrando os fatos... Não adianta fugir, ele estará lá, sempre. Até onde você menos esperar, lá estará ele, o Tempo, senhor da vida.

Não que ser adulto ou agir como adulto não seja interessante, mas é que ser criança é muito melhor, anos-luz melhor, e você sabe muito bem disso. Ser adulto é como ter uma inflamação em alguma parte do nosso organismo, é como se uma coisa esquisita quisesse explodir, pular para fora da gente o tempo todo. É a “adultite”, inflamação do nosso lado adulto. Neste caso, é a nossa criança interna que está doida para romper a barreira do corpo e já sair escorregando num carrinho de rolimã ladeira abaixo, rindo aos quatro cantos da Terra. A adultite é fogo, tem casos que nem um divã consegue dar jeito.

Lembra aí, vai! Tente recordar de como era mesmo fantástico ser gente miúda, dono de dente de leite, jogando sonhos para São Longuinho no telhado de casa, e mesmo assim correndo corredores coloridos sem ainda nem poder por causa do sangue vivo na boca. Lembra do pé de umbu que a gente escalava nas tardes calorentas nos roçados da vovozada, das mangas verdes com sal que a gente comia preocupado em não ingerir leite depois, porque nossa mãe dizia que fazia mal e a gente não queria nem fazer o teste para ver se era verdade ou não. Das brincadeiras em cima do monte de areia deixado pelo caminhão da empresa de material de construção quando o pai resolvia reformar a casa. Era tanta alegria, não lembra? E era tão instantânea e espontânea que o Tempo era o que menos importava pra gente. A gente queria mesmo era o pé encardido de brincar na terra vermelha, o grude no rosto de tanto suor bom, a nódoa na camisa novinha em folha de tanto se lambuzar de alegria, as unhas pretas de tanto cirandar de felicidade...

Ah, como era bom e a gente não sabia!

Dizíamos dizeres errados e ninguém da nossa turma nos lembrava das tais formalidades oracionais... Que gramática boa mesmo era a gramática da rua, profanada no calor da partida de futebol improvisada, com traves feitas de chinelos velhos e sujos e jogado com bola murcha de tanto quicar nos paralelepípedos das ruas de Iraquara. Que tese boa mesmo era a de que depois de um dia de alegria e de dedo topado no calçamento de brincar de esconde-esconde, sempre haveria de nascer um outro dia ainda de mais sorriso na face estampado.

Quando se é criança, a gente vive o sonho e sonha a vida. A vida passa como passa a formiguinha no quintal de casa, serelepe, levando risonha a folhinha verde para dentro do formigueiro. É sempre dia de festa, nas chegadas e nas partidas. O fim das coisas é sempre um recomeço e não há espaço para a tristeza nem para a solidão. A gente conseguia ficar feliz até quando não havia ninguém por perto – e por vezes era bem melhor assim, concorda?

Fui menino em Iraquara e a meninice é um tempo verde, que flutua como flutuava a bolha de sabão que a gente soprava com galho de pé de mamão. Um tempo sem tempo, temperado com as mais doces especiarias, as mais raras e as mais preciosas. Um tempo destemperado por vida, liberto de amarras, tempestuoso para o bem. Porém um tempo temporada, com dia marcado para terminar. Um tempo temporal, chuviscado, torrente, toró, que infelizmente acaba. Porque logo a gente sente o peso das responsabilidades, a carga das tarefas banais, a dor na consciência pelos tempos perdidos e que, desditosamente, não voltam mais.

Ah, como era bom não ter o pesar do tempo deixado para trás!

Como era bom andar de bicicleta sem medo até o Vai-Quem-Quer¹, chegar perto das serras da Chapada Diamantina, beirar o céu lá do alto, visitar o Engenho de “seu” Sinésio na entrada da cidadezinha, tomar banho nas cachoeirinhas da Caiçara, fingir que éramos desbravadores do mundo, bandeirantes infantes sem medo do pneu da velha bicicleta furar e nos deixar no meio do caminho...

Como era bom perambular por aí, chupar fruto verde e azedo na estrada de cascalho que dava para a barragem do distrito de São José... como era bom passar pelas casas de farinha da Quixaba e da Queimada, ver aquele povo rico de histórias e de coração a olhar o sossego do mundo das janelas de suas casas... como era bom desbravar o Mulungú e pedir água de pote de barro para matar nossa sede de novidade.

Ah, como era bom e eu não sabia!

Hoje, do jeito que estou, na idade que carrego, só há uma coisa que me deixa feliz como nos tempos de antanho. É saber que a gente nunca pára de sonhar, e saber que a gente pode ser tudo o que imagina, tudo aquilo que a gente sonha ou que um dia já desejamos ser ou fazer. Acho que é por isso que estou vivo até hoje, porque posso ser aquilo que sempre sonhei ser um dia, mesmo que esse sonho tenha sido o de abarcar todas as cores e dores do mundo numa folha de papel em branco, armado de uma esferográfica de ponta fina qualquer, como um dia sonhei quando eu era apenas um menino brincando de brincar pelas ruas de Iraquara...


Notas.
1 – Vila pertencente ao município de Iraquara.

quarta-feira, 24 de março de 2010

A prática da leitura


“É inegável a fundamental importância da prática da leitura dentro e fora da escola, visto que, embasados nesse ato, tornamo-nos aptos a participar ativamente do processo de reconstrução da sociedade. Somos conscientes do quanto é difícil ler neste país, especialmente os bons livros, não apenas pelo alto índice de desinteresse do estudante. Desinteresse que, na maioria dos casos, é gerado pela irregular seleção e quantidade insuficiente do material de leitura colocado à disposição dos alunos, como também pela inadequação da metodologia usada pelo professor. Este, vítima, também, do processo de manipulação da classe dominante, que de um modo ou de outro o impossibilita de crescer culturalmente, via leitura ou outros meios de incentivo, tem como consequência a inviabilidade de mudar sua prática de ensino, posto que o material de leitura adequado é extremamente deficiente.”

Todo texto


Todo texto é um hipertexto. É justamente sobre esse alicerce fundamental que Ingedore Koch vai tentar desvendar os segredos do texto plurilinear, ou seja, constituído de múltiplos sentidos, repleto de ramificações, conexões e possibilidades. Koch pretende o hipertexto como um complexo processual de construção de sentido. Resumindo, o hipertexto como um corpo plurilinear e multiramificado. Para ela, todo texto é um hipertexto, independentemente do suporte que utiliza, sendo que a diferença com relação ao hipertexto eletrônico reside apenas no suporte e na velocidade com que essas outras “direções” são acessadas. Como exemplo mais contundente, a autora cita o exemplo do gênero reportagem, que geralmente é circundado por boxes explicativos, sejam eles gráficos, tabelas ou mesmo fotografias. O hipertexto possibilita ao leitor ser ele uma espécie de construtor ou co-autor do texto, a partir do momento em que, na posse do objeto textual, o leitor desvela diversas fontes de informação, assim como diferentes aspectos e propriedades que só serão reveladas de forma aleatória e desfocada. Entre as características do hipertexto, estão a não-linearidade, a volatilidade, a territorialidade, a interatividade, o descentramento e a multisemiose. O principal componente do hipertexto, ainda segundo a autora, é o hiperlink, que é o dispositivo técnico-informático que permite efetivar ágeis deslocamentos, realizar remissões de outros textos, bem como possibilitar o acesso a outros campos informacionais. São três as funções do hiperlink: 1) Dêitica (indicar, sugerir caminhos, enunciar e focalizar); 2) Coesiva (entrelaçar discursos, amarrar informações); 3) Cognitiva (“encapsulador” de cargas de sentido, acionador de memória e de construção estratégica).

Serventia



Por Germano Xavier



Para que serve um texto? Certamente, esta é uma pergunta um tanto que pretensiosa, pois estamos dialogando com um assunto bastante amplo e, diria, ilimitado. Mas, por que ilimitado? A resposta é simples: porque os textos (gêneros textuais) sofrem influência do espaço temporal/tempo, assim como de todas as suas vicissitudes, sofrendo mutações constantes (transmutações) em seus modelos de organização e disposição de seus elementos, sem falar que novos gêneros são criados a todo instante, em diversas partes do mundo, em diversas circunstâncias. Os gêneros textuais são maleáveis. Os gêneros textuais refletem as mudanças pelas quais o mundo e o ser humano atravessam. A cada geração, novos gêneros textuais surgem, acompanhando as modernas ferramentas tecnológicas de comunicação que revolucionam o modo de efetuar a transmissão de mensagens, informação, conhecimento. Cabe ressaltar a importância e influência da internet, como também a fundação de um espaço virtual: o ciberespaço. Em outros tempos, as espécies textuais se restringiam ao romance, novela, conto, crônica, fábula, carta, apólogo, farsa, tragédia, ópera, revista, entre outros. Circunferência aumentada, nestes renovados idos, pelo uso do e-mail, torpedos, mensagens virtuais instantâneas. Construir o conhecimento e a cultura de um povo, registrando a história através da palavra e da expressão, este é o papel primordial que legitima a função de destaque dada aos gêneros textuais.


Ameaçada liberdade



Por Germano Xavier



Falar em liberdade, nos dias atuais, é uma tarefa difícil. Agora imagine se o devido tema estiver ligado à palavra “imprensa”. Em épocas tão conturbadas e de custosos afloramentos de sensibilidade, a autonomia de pensamentos e idéias nos meandros de uma sociedade é, cada vez mais, assunto de destaque em discussões envolvendo profissionais do setor jornalístico, entre outros. Todavia, como é possível tratar esse objeto se, a cada ano que passa, o número de jornalistas assassinados aumenta consideravelmente – só para citar um exemplo de “trucidação no meio”? A população tem por direito conhecer os principais fatos que, cotidianamente, sufocam e despertam o seu interesse. Mas, se as pessoas encarregadas de levar a informação para todos os segmentos das comunidades estão sendo liquidadas, torna-se quase que impraticável o advento da liberdade de imprensa. A atividade de informar e opinar está se tornando um artigo de luxo, fomentando assim um povo débil e acrítico. Somente com o alimento da informação é que os indivíduos alcançarão o título da cidadania plena – é possível isto? -, com certa independência e capacidade para gozar de suas justas regalias. É incompatível depositar credibilidade na existência da falta de interesse dos jornais e dos próprios jornalistas, quando se trata da transmissão de notícias. Saber compartilhar princípios de caráter básico sem prejudicar a transparência da comunicação é, atualmente, o maior desafio da imprensa em todo o mundo. É mais que necessário, em tempos de informação globalizada, que o acesso desse tipo de constituinte formador às comunidades mais desprezadas seja facilitado através de novas políticas de integração social. Não há mais espaço para nenhum modelo de censura no campo da comunicação. Vaidades à parte, a liberdade de expressão tem de assumir, verdadeiramente, o caráter de ser um manifesto livre de aprisionamentos. Só assim a imprensa e o jornalista serão capazes de, juntos, exercerem suas devidas funções perante a sociedade, começando por injetar doses e mais doses de esclarecimento ao povo.


sábado, 20 de março de 2010

Mais um pitaco saussuriano


Por Germano Xavier

Uma relação entre compadres é como se assemelha os elementos fundamentais do estudo da Semiótica e da Semiologia. Interessante perceber como se dá o processo de ligação entre termos essenciais para o funcionamento da sistemática estudada por Saussure.

Tomando como exemplo os termos “Linguagem”, “Língua” e “Signo”, pode-se ver, claramente, esse tipo de intercâmbio. No caso da “Linguagem”, a sua formação/existência ocorre a partir da junção entre “Langue” e “Parole”, ou seja, Língua e fala. No quesito “Língua”, estamos sempre tratando de uma relação binária entre signos. Já no caso do “Signo” propriamente dito, há sempre a dualidade entre um conceito e uma imagem acústica ou, ainda, por outro prisma, entre significado e significante. Todos, numa ótica de obrigatoriedade, corroboram a idealidade de Saussure.

E, para fortificar esse pensamento, em Pierce essas manifestações continuam existindo, mudando apenas a quantidade de envolvidos; ao invés de binária, a relação em Pierce é triádica. Agora os elementos fundamentais fazem parte de um complexo jogo estrutural composto pela Sintaxe (Estrutura propriamente dita), Semântica (ligado ao significado) e, por último, pela Pragmática (Referente ao uso e prática nos diversos ambientes sociais).

quarta-feira, 17 de março de 2010

Um pouco mais


Por Germano Xavier

XV

Já chega de lugar-comum, eu não estou conseguindo suportar esta minha inapetência, este meu semblante soturno, cabisbaixo e descorado. É horrível o que escrevo, e mais repugnante ainda são vocês, que lêem e nada absorvem. Basta! Basta deste ilusionismo barato! Basta! Até quando iremos aceitar tudo isso? Nós somos todos iguais, temos os mesmos direitos, os mesmos deveres, não podemos esperar mais tempo. Caro leitor, se você chegou até aqui e nada mudou em seu pensamento, peço que volte ao primeiro capítulo destes meus sonhos. Leia calmamente, deixe o seu sentimento mais adormecido ser tocado pelo poder das palavras, estes seres tão magníficos, tão indispensáveis. Tentem não seguir os axiomas deste mundo caduco. A partir de hoje, véspera de um tempo que pode começar, tente despertar sempre que ouvir o primeiro canto dos pássaros em sua janela. Se em seu quarto não existir janelas, construa algumas. Façam-nas enormes e com vista para o quintal de sua casa. Há tantos bons fantasmas, esquecidos no quintal da infância, e que ainda te esperam para brincar de "caça ao tesouro". As nossas raízes são mais importantes, jamais devem ser esquecidas, postas de lado. O almoxarifado talvez seja o espaço mais rico de seu aposento. Muito do seu passado está ali, sob uma camada espessa de poeira, cobertas por teias de aranha. O seu passado, as poucas conquistas, os seus erros, enfim, boa parte de sua vida ali se encontra. Pouco senti de vocês. Quase não enxerguei mudança, menos ainda reflexões. Esta é a minha parte. De vocês espero a prática, a andança, a caminhada, a armadura. Poucos estão acreditando em tudo o que eu disse até agora. Confesso que a minha leitura é um verdadeiro esforço para a sua paciência, mas as minhas palavras são loas ao que é mais urgente neste "mundo". O passado tem de ser revisto, mas nunca como o modelo único de desenvolvimento para o presente, nunca ressentido. O passado é tudo, menos o arrependimento. É, antes de qualquer coisa, o aprendizado e a descoberta das primeiras paisagens que irão atingir os segmentos cognitivos do seu ser. Eu vou continuar a escrever, agora caberá a você decidir se estás apto a avançar a página ou a retroceder - o que recomendo. Pergunte ao seu coração, à sua essência. Certamente ele responderá com a maior das sabedorias: a honesta paciência. Então, seja honesto consigo mesmo! Tente outra vez, mas seja o mais rápido possível, porque tudo aqui é passageiro, o Tempo, os Homens, a Vida... E lembre-se, tentar o mais profundo é olhar o que está por trás das coisas. É somente isso o que quero, que vocês me entendam. Eu sou incapaz de fazer mal a alguém. Eu acredito na existência de "mundos". Eu sei de todos os caminhos, os menos escuros e aterrorizantes. Peço um pouco mais de paciência. Eu não sou louco! Vocês deviam acreditar no que eu digo. Ou será que será sempre assim, mais do mesmo?! Ah, quanto a isso, só depende de vocês.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Conflito


Por Germano Xavier

eu vi a mão rosa
nos candelabros

a fatalidade do verde
inscrito em mim

vivo o bastante
a viver-me

para que eu não morresse
na dúvida de viver

ou morrer de dúvida
ao nascer

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Mar do peito


Por Germano Xavier

Para Natália Macedo,
neste dia 12 tão nosso.


águas de sal do mar,
águas de só, de sol,
botam roxos para irem embora.
em boa hora vão-se
os vãos nos desvãos, pelas mãos – o mundo -
dos mundos,
e nos fundos humanos
do homem, somem homens,
o homem implorando perdão.

dessa água deságua
minha dor vivida,
nossos lastros impedidos
de dizer os nãos nem tão límpidos,
em talvez brancos estes sins malditos.

de fronte a ti, ó mar,
rogo meus erros às tuas ondas
para que não morra em monte
em mim a brusca vontade de (a)mar.


São Luís, Maranhão, agosto de 2011.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

O tempo da gíria


Por Germano Xavier

Em maior ou menor grau, toda gíria é – ou pretende ser – a expressão máxima de um determinado grupo que se utiliza da linguagem verbal para efetuar fenômenos comunicativos. Expressão máxima porque é ela que assegura os limites de uma privacidade de compreensão em quesitos tidos como passíveis de sigilo ou segredação tribal. É natural à gíria o seu poder de guardar ou proteger um desejo por diferença. As expressões giriáticas, dentro do contexto maior da linguagem, buscam a todo instante a sedimentação tanto de uma marca lingüística pormenorizada – e ao mesmo tempo evoluída - quanto de um sentido que, sendo ele lógico ou ilógico, possua o poder de dar significado a algo ou a alguma ação humana, verbalizada ou verbalizável. Esta incessante procura em definir o que é particular a uma tribo social, como num processo de demarcação de uma dada territorialidade expressa através da palavra e suas ramificações, ocorre em sua quase total generalidade na esfera do coloquial. Por sua vez, a coloquialidade inerente à gíria traça para si mesma um perfil estritamente popular. Debutante que é ao que se apresenta como sendo de ordem cotidiana, e desprovida de uma armadura lingüística mais forte capaz de lhe oferecer a necessária proteção ao desgaste natural que o fator tempo impõe a tudo e a todos, a gíria tem entre suas maiores e mais visíveis características a efemeridade. Por nascer e morrer assim, tão aligeiradamente, no falar do povo, a gíria alcança o ápice de sua condição muito rapidamente. É quando o seu sentido extrapola o seu domínio inicial, vaza pelas brenhas de sua própria espacialidade, adentra outros universos, agride outros, prolifera-se na multidão, e termina por perder muito de suas particularidades e possibilidades. De todo modo, mesmo após sua morte, a gíria sobrevive – as mais contundentes, diga-se de passagem -, tal qual uma alma penada, agora funcionando como um registro de um tempo passante, passageiro, passado. Nelly Carvalho, professora da UFPE, em artigo publicado em periódico pernambucano, diz que: “A efemeridade da gíria toca nossa sensibilidade porque demonstra concretamente a passagem do tempo, dos fatos, dos homens, enfim, põe em relevo a fugacidade e a vida”. Não basta que usemos a expressão giriática a torto e a direito, é preciso conhecer o seu funcionamento, a sua situação dentro do contexto linguístico, a sua operacionalidade, a sua serventia. Deste modo, além de nos transformarmos em seres atuantes e participativos dentro de nossa língua, propendemos a melhor nos entendermos como seres em progressiva atualização, ao mesmo tempo individuais e coletivos, descartáveis como uma gíria de verão, eternos como uma gíria dicionarizada.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

As flores da vida


Por Germano Xavier

XVI

Eu trago boas novas, amigo leitor! Hoje foi um dia muito especial para mim, mas muito especial mesmo. A essência das coisas é mesmo invisível aos olhos. Foi nesta tarde de sol, de ventos lenientes. Há muito tenho dito que acredito em "Mundos", mas até a prezada página, ainda não revelei nenhuma faceta destes "lugares". Creio que chegou a hora. Desci escada, bons degraus. E era como seguir a estrada dos Deuses, os da Sabedoria, da Honestidade, da Verdade... Eu tinha certeza (e ainda tenho) da existência de "Mundos" onde olhamos o outro como um ser igual, com as mesmas possibilidades e defeitos, sem diferenças. O mais interessante de tudo é que todo este "Mundo" estava representado pela figura de uma mulher. Como ela, sei que há várias! Serás tu? Subimos escadas, bons degraus. Bons degraus... A idade nas suas costas não fazia com que ela desistisse ou hesitasse diante da subida, bastante íngreme. Seria o Arco-Íris que estaria no cume? Algum tesouro? O que fazia o caminhar daquela senhora? Curiosidade? Poções de mistérios... Eu trago boas novas, meus saudosos! São "pássaros coloridos", que revelam liberdade. É o novo ano que nasceu, feito criança indefesa, sem influências das mais ferozes máquinas abstratas da sociedade. É a esperança que renasce na poesia do aprendizado, do acerto após algum tropeço. É a consciência de que devemos ler, criar, refletir, sorrir, brincar e amar, mas amar verdadeiramente, com entrega total, inteira, sem repartes. Eu trago boas novas, meus amigos! É que hoje vi uma criança desprovida de quase todos os paramentos das "boas classes" sociais com um conjunto de lápis de cor e uma folha de papel em branco nas mãos. Ela desenhava, com a sua imaginação operante e criativa, um desses "Mundos" de que tanto tenho falado. É a prova mais cabal da veracidade de minhas palavras. Eu peço que acreditem no que eu digo, ao menos uma vez. Façam as experiências que venho recomendando, depois me mostrem os resultados. Eu tenho certeza que serão positivos. Não vacilem! Por favor, não vacilem! O remédio está aí, na sua frente. O desenho dos "Mundos", todos são capazes de fazer. Cada um com uma tonalidade, um traço diferente e original. Cada mão com o seu pincel, o seu lápis, a sua caneta, a sua expressão. Porém, antes disso, procurem as cordas e os lugares mais exclusos, ermos. Adentre pelo matagais mais densos. Fujam dos vergéis, não cultivem os vergéis. Os jardins são metáforas da morte, sempre irônicos e sarcásticos. Como diria Goethe, "as flores da vida não passam de ilusões". Vá! Siga! Ande! Não olhe para trás! Só o passado sólido é válido. O restante é volátil, desmancha-se no ar feito bolha de sabão, e se perde. Estás perdido? Continuas perdido? Ache-se! Ache-se! Ache-se!

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Flor de Narciso



Por Germano Xavier

Ela se apaixonou perdidamente. Ela se apaixonou perdidamente por um alguém perdidamente apaixonado. Punida, ela perdeu a fala. Perdeu sua voz, perdeu o seu "self" corporal. Ela, aos poucos, foi perdendo a força de amar, pois não fora mais ouvida, por ninguém, nem pelo coração de seu amado, amado pelo destino pueril de amar. Ela, em seu estado pathos de amar, não desejou sofrer de amor, dor doída dor. Quis ela amar o amor, amado amante. Amou profundamente, profunda-mente, o senhor do amor. Sofreu profundamente, profunda-mente, sua dor. Ela, rejeitada, morreu de amar o amor. Morreu, caiu perturbadoramente sobre o duro regolito do "não", do não-ser o deveras quisto, para si. Humano-mito, morreu como morrem muitos, como morrem amores, como se arruínam amares, como morrem amantes... Morreu de morrer de amor, de morrer de amar, perdidamente apaixonada por um alguém perdidamente apaixonado. Assim, Eco, Narciso virou flor.