Por Germano Xavier
"Por que contam coisas às criancinhas?"
(José Mauro de Vasconcelos)
"Por que contam coisas às criancinhas?"
(José Mauro de Vasconcelos)
Eu sou o Zezé¹. Sou porque já fui. Precoce protagonista da minha própria vida. Sim, daquele grego protagonistés de ser, somente e só, o principal lutador, o principal figurante, o principal personagem de uma história ou estória. Não nasci em 1968, quando o livro do escritor carioca José Mauro de Vasconcelos veio à superfície da literatura nacional. Época interessante, não? Porém, também possuo uma data de nascer, como toda gente possui. No meu caso, foi em 1984, finzinho e início de um também momento transformador da história brasileira: a Ditadura Militar e o seu descanso.
Hoje, a soma de todos os dedos das minhas mãos com os dos meus pés, já não dá conta de medir a idade que carrego nas costas. É bem certo que ainda bem moço sou. Como é certo, também, que isto de idade não tem tanta importância assim. Importante mesmo é que logo cedo me tornei herói de mim mesmo e que, como o Zezé, tão logo desabrochei para a vida fui descobrindo o lado amargo das coisas.
Meu pé de Laranja Lima foi o primeiro livro que li do começo ao fim, sem pular páginas, sem saltar frases nem diálogos. O primeiro livro que li na vida. O segundo foi "O Pequeno Príncipe", do aviador-escritor francês Antoine de Saint-Exúpery. E foi o livro que, fazendo-me verter lágrimas tristes, despertou-me para o bem da literatura. Posso dizer que o livro Meu pé de Laranja Lima é a causa-mor de todo este meu gosto perante a arte feita de palavras.
Devia eu ter meus dez, onze ou doze anos neste mundo, e lembro que o li no rol da casa lá em Iraquara, deitado sobre o piso de azulejos retangulares e avermelhados e quase que diariamente encerados com cera líquida de coloração equivalente. Eu gostava de fazer as lições de casa ali, porque o chão estava sempre frio e limpo e tal harmonia me dava prazer. Outras vezes, e não raras eram as vezes, vinha minha mãe com um pires cheio de mel para me adocicar a tarde de leitura. E assim, neste ambiente doce, numa tarde azul-celeste iraquarense, li Meu pé de Laranja Lima como atividade proposta pela professora Dalva Menezes, ensinadora de coisas lá no saudoso Educandário José de Arimatéia.
Sim, já fui considerado o próprio cão por ter feito travessuras, que ainda hoje insisto em fazer. Já cantei para o meu passarinho interno. Sim, eu sempre soube que a gente quando quer, pode cantar para dentro da gente e ser feliz por isso. E sim, eu nunca acreditei em tudo que me diziam - hoje a coisa piorou -, mas nunca tive um tio como o Tio Edmundo², que vivesse por colocar caraminholas em minha cabeça, e das boas. Mas tenho consciência de que não é obrigatoriamente necessário ter um tio como o Tio Edmundo para ter sido como o Zezé. E sim, devo confessar, já levei muita pisa de currião vermelho por motivos improváveis e injustos. E meu irmão mais velho nunca foi de me ensinar a atravessar a rua, coisa que aprendi sozinho. Ele não tinha tanta paciência e quando eu brincava de carrinho no quintal de casa, depois de construir uma rede rodoviária com cacos de telha ou giz velho achados no quartinho dos fundos, eu sempre imaginava ter um irmãozinho mais novo brincando e se aventurando naquelas estradinhas junto a mim, como o “rei” Luís³.
Para ser mais direto, ninguém nunca teve assim a obrigação de me ensinar alguma coisa. O Educandário, que ficava na mesma rua Tito Luna Freire, sempre me pareceu mais uma obrigação do que um verdadeiro prazer. Com toda a modéstia, bastava-me um empurrãozinho pouco ou nem isso e eu já sabia andar com minhas próprias pernas, e fazer pipa sozinho para soltar no céu, e inventar brinquedo com lata de leite vazia, além de ler coisas que gente adulta lia, e tanto e tanto...
Um exemplo disso, de que eu sou mesmo o Zezé porque já o fui, é que eu mesmo já tive o meu cavalinho “Raio de Luar”, feito com cabo de vassoura e cabelos de milho na ponta para dar a idéia de uma crina. Fiz o meu Raio de Luar lendo um velho almanaque da minha mãe. Aliás, como o poeta Fabrício Carpinejar já disse, foi lendo livros que aprendi quase tudo, inclusive a abrir portas.
Pois bem, amigo, acabei de reler o primeiro livro que li em minha vida! Teimei muito tempo porque tinha medo de eu mesmo fazer com que todo o sentimento que tinha pela estória contida nele fosse amenizado, perdesse muito de minha fantástica primeira impressão. É quase sempre assim, ao tentarmos recordar ou viver aquilo que vivemos com a mesma intensidade de antes, saímos feridos por tanto dissabor. Mas não foi o que aconteceu.
E de novo lágrimas rolaram em meu rosto quando apontei na última página. Um nó na garganta porque Minguinho já não existia mais nem o Xururuca. Porque o Mangaratiba tinha atravessado ao meio o Portuga, aquele melhor amigo nosso da criancice que sempre temos. Porque tudo agora era lembrança e lembrança é uma coisa que não foi feita para menininhos órfãos de qualquer coisa além de nossas necessidades básicas. Lembrança é uma coisa dolorosa demais, até mesmo quando vem de um momento bom.
Meu pé de laranja lima me marcou profundamente, um tempo todo guardado dentro de mim, dentro de uma Iraquara paralisada pelo tempo, como um baú fechado e enterrado numa ilha esquecida. Uma vida que vivi, indubitavelmente. Uma obra juvenil para crianças de coração. E de novo tive cinco anos de idade, tive um caminho de coisas a descobrir, um mundo interessado em me ouvir, de novo vi a falta que o meu pé de manga rosa, que tanto me emprestou seus galhos para aventuras aéreas, fez depois que o cortaram, e de novo veio a importância dos pequenos gestos, das coisas mais ínfimas, dos sorrisos, a percepção de que eu sou um privilegiado e por isso não me devo penas por mim, me veio a força das pequenas crenças, o som de meus passarinhos internos, a cantoria bonita deles me dizendo "Vá, não desista agora!", e de novo a certeza de que fui quem mais sou, aquela criaturinha investida em descobrir o segredo dos cofres enferrujados nos galpões empoeirados da vida...
Notas.
1/2/3... – Todos personagens do livro Meu pé de laranja lima, de José Mauro de Vasconcelos.
Hoje, a soma de todos os dedos das minhas mãos com os dos meus pés, já não dá conta de medir a idade que carrego nas costas. É bem certo que ainda bem moço sou. Como é certo, também, que isto de idade não tem tanta importância assim. Importante mesmo é que logo cedo me tornei herói de mim mesmo e que, como o Zezé, tão logo desabrochei para a vida fui descobrindo o lado amargo das coisas.
Meu pé de Laranja Lima foi o primeiro livro que li do começo ao fim, sem pular páginas, sem saltar frases nem diálogos. O primeiro livro que li na vida. O segundo foi "O Pequeno Príncipe", do aviador-escritor francês Antoine de Saint-Exúpery. E foi o livro que, fazendo-me verter lágrimas tristes, despertou-me para o bem da literatura. Posso dizer que o livro Meu pé de Laranja Lima é a causa-mor de todo este meu gosto perante a arte feita de palavras.
Devia eu ter meus dez, onze ou doze anos neste mundo, e lembro que o li no rol da casa lá em Iraquara, deitado sobre o piso de azulejos retangulares e avermelhados e quase que diariamente encerados com cera líquida de coloração equivalente. Eu gostava de fazer as lições de casa ali, porque o chão estava sempre frio e limpo e tal harmonia me dava prazer. Outras vezes, e não raras eram as vezes, vinha minha mãe com um pires cheio de mel para me adocicar a tarde de leitura. E assim, neste ambiente doce, numa tarde azul-celeste iraquarense, li Meu pé de Laranja Lima como atividade proposta pela professora Dalva Menezes, ensinadora de coisas lá no saudoso Educandário José de Arimatéia.
Sim, já fui considerado o próprio cão por ter feito travessuras, que ainda hoje insisto em fazer. Já cantei para o meu passarinho interno. Sim, eu sempre soube que a gente quando quer, pode cantar para dentro da gente e ser feliz por isso. E sim, eu nunca acreditei em tudo que me diziam - hoje a coisa piorou -, mas nunca tive um tio como o Tio Edmundo², que vivesse por colocar caraminholas em minha cabeça, e das boas. Mas tenho consciência de que não é obrigatoriamente necessário ter um tio como o Tio Edmundo para ter sido como o Zezé. E sim, devo confessar, já levei muita pisa de currião vermelho por motivos improváveis e injustos. E meu irmão mais velho nunca foi de me ensinar a atravessar a rua, coisa que aprendi sozinho. Ele não tinha tanta paciência e quando eu brincava de carrinho no quintal de casa, depois de construir uma rede rodoviária com cacos de telha ou giz velho achados no quartinho dos fundos, eu sempre imaginava ter um irmãozinho mais novo brincando e se aventurando naquelas estradinhas junto a mim, como o “rei” Luís³.
Para ser mais direto, ninguém nunca teve assim a obrigação de me ensinar alguma coisa. O Educandário, que ficava na mesma rua Tito Luna Freire, sempre me pareceu mais uma obrigação do que um verdadeiro prazer. Com toda a modéstia, bastava-me um empurrãozinho pouco ou nem isso e eu já sabia andar com minhas próprias pernas, e fazer pipa sozinho para soltar no céu, e inventar brinquedo com lata de leite vazia, além de ler coisas que gente adulta lia, e tanto e tanto...
Um exemplo disso, de que eu sou mesmo o Zezé porque já o fui, é que eu mesmo já tive o meu cavalinho “Raio de Luar”, feito com cabo de vassoura e cabelos de milho na ponta para dar a idéia de uma crina. Fiz o meu Raio de Luar lendo um velho almanaque da minha mãe. Aliás, como o poeta Fabrício Carpinejar já disse, foi lendo livros que aprendi quase tudo, inclusive a abrir portas.
Pois bem, amigo, acabei de reler o primeiro livro que li em minha vida! Teimei muito tempo porque tinha medo de eu mesmo fazer com que todo o sentimento que tinha pela estória contida nele fosse amenizado, perdesse muito de minha fantástica primeira impressão. É quase sempre assim, ao tentarmos recordar ou viver aquilo que vivemos com a mesma intensidade de antes, saímos feridos por tanto dissabor. Mas não foi o que aconteceu.
E de novo lágrimas rolaram em meu rosto quando apontei na última página. Um nó na garganta porque Minguinho já não existia mais nem o Xururuca. Porque o Mangaratiba tinha atravessado ao meio o Portuga, aquele melhor amigo nosso da criancice que sempre temos. Porque tudo agora era lembrança e lembrança é uma coisa que não foi feita para menininhos órfãos de qualquer coisa além de nossas necessidades básicas. Lembrança é uma coisa dolorosa demais, até mesmo quando vem de um momento bom.
Meu pé de laranja lima me marcou profundamente, um tempo todo guardado dentro de mim, dentro de uma Iraquara paralisada pelo tempo, como um baú fechado e enterrado numa ilha esquecida. Uma vida que vivi, indubitavelmente. Uma obra juvenil para crianças de coração. E de novo tive cinco anos de idade, tive um caminho de coisas a descobrir, um mundo interessado em me ouvir, de novo vi a falta que o meu pé de manga rosa, que tanto me emprestou seus galhos para aventuras aéreas, fez depois que o cortaram, e de novo veio a importância dos pequenos gestos, das coisas mais ínfimas, dos sorrisos, a percepção de que eu sou um privilegiado e por isso não me devo penas por mim, me veio a força das pequenas crenças, o som de meus passarinhos internos, a cantoria bonita deles me dizendo "Vá, não desista agora!", e de novo a certeza de que fui quem mais sou, aquela criaturinha investida em descobrir o segredo dos cofres enferrujados nos galpões empoeirados da vida...
Notas.
1/2/3... – Todos personagens do livro Meu pé de laranja lima, de José Mauro de Vasconcelos.
4 comentários:
Crédito da imagem;
"Por_do_Sol_1 by ~Epellik"
DEviantart
Gosto de ler seus escritos, as vezes não comento mas sempre estou por aqui.
abraços
Que texto lindo !! Meu pé de laranja lima marcou demais a minha vida , só li na adolescência mas o Zezé vive em mim até hoje(60 anos) Passei todas as férias da minha vida , até me casar , em Ubatuba, meu sonho era conhecer e conversar com o José Mauro de Vasconcelos, fiquei arrasada quando descobri que ele viveu os últimos anos de vida em Ubatuba, não tínhamos as facilidades da vida digital , perdi a oportunidade de conhecê-lo
Estou com o livro aqui , já li 3 vezes , acho que vou ler mais uma vez 📚
Acabei de ler o livro. A gente se identifica com Zezé…
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