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Olha só, Viana, a gente fala-se tanto e de tantos pequenos nadas que perco a noção do meu atraso na correspondência formal. Eu também gosto de formalidades, de etiquetas, até na amizade é bom poder contar com uma palavra amável no tempo certo.
Por isso te peço desculpa, sei que não gostas mas vai assim mesmo. Depois zanga-te se quiseres, mas eu estarei já sem essa pressão de ter falhado contigo sem sequer ter esquissado uma apressada justificação.
Então vamos falar de formalidades: dizer bom dia, uma palavra gentil ou encorajadora de vez em quando, perguntar se a tosse melhorou, falar da nuvem que passa agora na janela, convidar para tomar aquele copo onde não falaremos de nada mas viveremos tudo.
Não obriga a horários, exceto aqueles que de comum acordo definirmos, mas tem uma cadência, quase impercetível, um ritmo que nos sustem. Por isso quando eu falho um passo me sinto culpada, mesmo que tu não queiras.
Nestes quase dois meses de ausência de diálogo por esta via, privilegiámos outras formas de comunicação. Uma delas foi o respeito pelo silêncio do outro. Quando alguém começa a falar, a expressar-se, seja em que tom e de que maneira for, ninguém sabe quando vai acabar. Também ninguém sabe quando o silêncio acaba. Ele tem o seu próprio tempo e escolhe terminar quando o ar começa a faltar e as palavras voam soltas pela boca. Escorrem, saltam, explodem, às vezes.
Vou falar um pouco de tudo o que gira à minha volta: alguns vazios que vou preenchendo como posso. Uma filha que cresce depressa demais. E bem, direitinha e formosa. Uma ausência de objetivos concretos que me deixa insegura, uma obsessão pelo rigor que me deixa sozinha.
Eu adoro cumprir horários e urdir compromissos. Gosto de certezas, mesmo que sejam pequenas, a curto prazo, só no aqui e no agora. Eu lido mal com mudanças repentinas, trapalhadas, mensagens confusas, intermitentes, ambíguas, suspeitas.
Eu preciso do tal bom dia caloroso e carinhoso, mesmo que seja o começo de um hábito; o hábito é uma pele quentinha que vestimos e nos acalma a pulsação.
A minha produção tem sido escassa e irregular. Com fases em que fluem ideias e palavras, nem sempre ao mesmo tempo. E com períodos de vivências intensas, doces, amargas, surpreendentes, assustadoras, lúdicas, secretas, arriscadas, exuberantes. Viver intensamente nem sempre é viver bem. Queria morar naquela sinusoide que nos diz que está tudo bem, pelo menos a curto prazo. Mas ela não está lá e as arritmias são genes da criação mas não de bem-estar.
No meio de tudo isso tenho “as minhas pessoas”, fabulosas, que me amparam as quedas ou me retiram os espinhos do chão. Por pudor não queria dizer que tu, Viana, és um dos pilares dessa tribo, aquele que tudo faz pelos seus. Mas afinal acabo por não conseguir esconder-to.
As tuas palavras são as tais terapias que acalmam uma angina e uma forte tensão no trapézio. São um bálsamo. Nada mais temos do que a palavra, por isso tendemos a sobrevalorizá-la, pois ficam de fora os abraços e as conversas de fim de tarde, a troca de discos, os passeios ao ar livre, a ida ao cinema.
Falando em passeios tenho feito caminhadas brutais na minha cidade, uma experiência nova, não as caminhadas, mas a sua intensidade, extensão e grau de complexidade, pelo relevo do terreno e pelas vias atravessadas. Percursos de 7 a 8 quilómetros em terreno acidentado. Uma experiência vivificante. Não é milagrosa, ainda, mas lá chegaremos, é esse o objetivo. Regula o sono, permite colocar as ideias em dia e olhar a magnífica paisagem que nos rodeia há décadas e na qual não tínhamos ainda reparado com o devido respeito. Olhar com olhos de ver. É essa a finalidade, um exercício de contemplação, para dentro e para fora.
Parece simples, mas não é. Mudar pequenos hábitos, e substituir rotinas por outras mais saudáveis e prazeirosas. Ler tenho lido pouco, por incapacidade de absorver todas as palavras e todos os seus sentidos. Estou mais predisposta agora a vivê-las, às palavras, para que elas depois adquiram significados novos e sejam contadas. Por mim ou por outros.
Às vezes zango-me comigo, outras com os outros, as minhas expectativas são muito elevadas, o meu grau de exigência é imenso, incluindo comigo. Vou-me tornando intolerante em relação à maldade travestida de inocência, de incoerência, de simpatia.
A minha legendária cordialidade tem ficado submersa diante da expressão de outros sentimentos. Não quero parecer boazinha, pois na verdade nunca o fui. Talvez isso me traga alguns dissabores, talvez me ajude também a ver mais claro.
As festas de fim de ano vieram trazer muita azáfama à maior parte dos lares e cidades como a nossa, por questões logísticas, mais do que por qualquer outra coisa. Não gosto particularmente deste estado de coisas; a solidão pesa mais nestas alturas, não forçosamente para quem está só, mas sobretudo para quem se sente só.
Já passou; ouso dizer, ainda bem. Uma árvore de Natal e um presépio fazem-me perceber que esta época deveria ser algo mais íntimo, vivido com muito maior profundidade.
E tu, como tens vivido esta época tão cheia de contradições?
Da última vez falavas-me de solidão, diz-me, ela tem sido boa companheira? A minha, quando aparece, é uma persona incómoda, desagradável e espaçosa. Eu tento abreviar a sua visita mas ela é insistente e abusadora. Tenta ocupar um espaço que não lhe é destinado, interfere na conversa com os amigos, rouba tempo ao repouso e prazer aos momentos de lazer. É má conselheira e meio doida. Às vezes quer-me levar para dançar, outras faz-me ser excessiva e incorreta. Deselegante. Eu suporto-a porque ela é família; bem ou mal, é a única que fica quando os outros partem (mas entre nós, queria mandá-la para bem longe, junto com as suas manias). Se quiseres eu mando-ta para aí, para veres que não estou a exagerar.
Viana, eu quero saber tudo de ti. O que tens feito, como te sentes em relação a tudo, de que cor são os teus dias, como é o vento que bate na cara quando andas de moto. Do convívio com os pais às aulas que dás, quero saber tudo sobre ti, não em tom de interrogatório mas por interesse genuíno. Amizade.
Diz-me o que achares que eu devo saber, sem invadir o teu espaço.
Um beijo grande já esperançado numa resposta tua em breve, cheia de peripécias com cheiro e música.
Eu tenho saudades. Muitas, já.
Até breve,
Clara.
Lisboa, 3 de Janeiro de 2016.
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Boa noite, Clara. Tão bom rever você em forma de carta, missiva esta que atravessa os infindáveis oceanos atlânticos de nós todos e termina por chegar aqui, nesta Iraquara chuvosa dos últimos dias de 2015 e dos primeiros de 2016, numa parcela da Bahia que há poucos dias estava a arder em chamas miseráveis e infernais, num incêndio que dizimou muito da natureza secular do Parque Nacional da Chapada Diamantina.
E por falar em formalidades, Clara, como vai você? Gosto-te tanto! A saudade de te escrever já estava imensa e quase sufocante. Mas que bom que. Como bem lhe falei nas linhas acima, estou a passar alguns dias em férias na casa dos meus pais, em minha pacata cidade natal, lugar de reminiscências múltiplas e de guardados imperiosos de nostalgia. E por falar em caixas e caixotes, veja que escrito lindo encontrei por cá numa dessas minhas tardes iraquarenses em vasculhamentos de biblioteca própria...
Não é de se embonitar toda a alma um excerto de texto perdido no meio do nada-tudo feito este, que nos acomete quando a gente se aproxima do passado, presente ou do futuro de nós mesmos? Eu, particularmente, ganho o dia quando descubro estas pequenas pérolas de humanidade entre as páginas dos meus dias. E você, Clara, gosta tanto de surpresas quanto eu? Conte-me, pois.
Eu também me abri a novas experiências saudáveis, Clara, desde meados de 2015. Passei a frequentar uma academia que fica ao lado do prédio onde moro. Lá, corro, ando de bicicleta ergométrica, pratico musculação e, ainda, karatê com a turma do sensei Assis – parte esta minha preferida. As artes marciais sempre me fascinaram, desde muito pequeno. Quando no início da adolescência, pratiquei Kung fu, arte marcial de incrível beleza. Foi um tempo maravilhoso e inesquecível. As aulas aconteciam no antigo Clube Social de Iraquara, com um trio de professores de origem nipônica. Você já praticou alguma arte marcial, Clara? Quando você escreveu sobre seus passeios quilométricos, lembrei-me logo do escritor Mario Vargas Llosa, que também tem tal costume, que desempenha logo no período das manhãs - li isso numa entrevista em algum jornal.
Você tem razão, Clara. A solidão, essa secura por dentro, aquela sensação de arrasto que nos dá por longas horas e mais a fundo, parece mesmo ser mais próxima a estas datas de fim de ano. Nem as curto como a maioria das pessoas. Natal sempre significou para mim uma já batida ceia noturna com meus pais ou parentes próximos. Virada de ano, a mesma coisa. Nada de pompas em festas mirabolantes e de significados turvos. Apenas respeito. No mais, vivo estou. Com algumas tarefas a cumprir e outros sonhos a realizar. Escrevo-te da garagem de casa, com meus pais na sala a conversar e uma chuvinha fina “molhadeira” a banhar o solo de meu coração. E, faça-me o favor, não me mande a tal da solidão. Que fique longe de todos nós, apesar dela em quandos necessária.
A matar saudades verbais, um fiel Viana amigo.
Iraquara-BA, 07 de janeiro de 2016.
Clara e Viana são dois amigos de longa data que se redescobrem e desenham o mundo à sua volta pelas palavras que encontram, que constroem e que usam para pintá-lo. (De longa data em face da finitude da vida, recentes diante da imensidão da eternidade). Mas, que importa isso? Eles propõem-se descobrir dois universos complementares, sem artifícios nem maquilhagem, para além das máscaras habituais, as que protegem o ser humano da solidão e das agressões.
Clara e Viana são dois heterónimos, duas personagens que ganham vida através do tempo, do ritmo da palavra e do sabor dos respectivos sotaques.
Luísa Fresta e Germano Xavier dão vida a este projecto.
* Imagens de Cristina Seixas.
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