Por Germano Xavier
Alina Pontes, duas filhas meninas e um filho homem, divorciada, professora aposentada e dona de uma alma escura como piche, é uma mulher incomunicável. Ao longo de seus trinta e seis anos de idade, Alina cultivou equívocos e dissecou pecados. Hoje, no dia em que resolveu que iria morrer, acordou e o sol era já inteiro sobre sua cabeça. A metade do dia, que na vida dela tinha vinte e quatro horas, atravessada em sono. Despreocupadamente, ainda no encalço de um andar trôpego e vacilante, dirigiu-se ao sanitário de azulejos brancos. De pijama azul-turquesa, a mãe da Lúcia, da Beatriz e do Jorge, escovou os dentes amarelos, por causa dos hábitos alimentares não muito exemplares, reparou o rosto já em rugas iniciado, sardento, e o lavou.
Alina casou-se cedo, aos dezoito anos. Aos vinte engravidou e nasceu o Jorge, seu primogênito. Hoje Alina ostenta uma cintura larga e um vocabulário minguado. Parou de estudar porque o marido a queria no cuidado dos rebentos. Na curta idade que tem, usa de ferramentas parcas para entrecruzar sua voz numa ou noutra conversa familiar de domingo.
Certa vez, o Arnaldo, o homem que havia passado a última noite ao lado de Alina, fez uma peça de origami para ela, e no mesmo dia a entregou. Era um cisne feito com um quadrado perfeito de sulfite branco. Uma belezura oriental, sabe. Coisinhas fofas para pessoas carinhosas, caridosas. Quase uma jogada. Na verdade, não tinha sido ele o construtor daquela pequenina obra. Havia sido a Juliana, uma colega nova que conheceu na faculdade de Letras. Ela, uma moça de um par de seios bem generosos e de aparência macia, sem fim nem começo, assim ligeiro, despertou o interesse do macho. Além de trabalhar com papel, a rapariga que, não raras as vezes sentava ao seu lado esquerdo, junto à porta, também fazia trabalhos em biscuit, uma massinha de tonalidade creme que leva glicerina, maisena e água. Tinha oferecido uma oficina particular naquele dia e o Arnaldo não pensou duas vezes. Queria agradar Alina, mas não era no fundo. Os homens, por mais que se esforcem, sempre estão querendo agradar as mulheres. Mais observou as mãos de seda da Juliana que todas as dobraduras no papel.
Pronto. Foi um belo pretexto para iniciar uma conversa com ela. Estavam no ônibus, que sempre os levava e os trazia de volta para as suas respectivas casas. Havia dez minutos que ele a esperava. Foi quando ela surgiu com aquele sorriso de morango que, de todas as criaturas femininas que ocupavam aquelas poltronas, só ela possuía. Talvez fosse por essa razão que ele gostava tanto de conversar com ela. Alina, ainda enxergando o mundo sem viço, pensou se iria morrer de barriga vazia ou cheia. Era época de desaparição, ela sabia. Como sabia que todas os seus ornatos de pescoço agora eram joías mortuárias. Alina só sentia, mulher que era.
“Toma, é pra você!”
“Para mim?!”
“É. Fiz com muito carinho.”
“Ai, obrigada! Você aprendeu rápido, heim?!”
“Guarde-o, não perca. Você mesma me disse que dá sorte.”
“Tá bem. Vou colocá-lo em cima do meu criado-mudo.”
O Arnaldo acreditou. Nessas horas, todo homem acredita em sorrisos de morango. Juliana, delicadamente, pôs o cisne de sulfite branco em sua bolsa. O ônibus entrara em movimento. Da janela, a lua daquela noite não passava de uma lua, bem longe. Vítima de uma modernidade maligna, Alina ainda leu um conto escuro de um francês antigo e quis plasmar seu planeta inteiro. Internava-se em si mesma como faz a avestruz selvagem na terra que tem. Estava sem terreno, Alina. Varrida pela angústia, continuou a ler do livro amargo. Ela suspeitava do outro mundo que havia. Arnaldo era só um dos tempos. E sabia que, certamente, ele tinha coisas mais importantes para estar se preocupando. Ela disse:
“E aí, quais são as boas?”
“As boas?”
“Sim.”
“Ah, não sei.”
“Nadinha?”
“Hummm...”
Ele logo afastou a cortina vermelha e olhou novamente para o céu cheio de estrelas. Alina, em sua casa, suando frio mas delicadamente, entra na cozinha. Novos e seguros rumos para uma vida inteira de lamentação. Alina não gostava de ser apenas aquela em quem havia se transformado. Odiava ser só mama e ser só leite de criança. Odiava ser só roupa e ser só fralda. Odiava ser e ser já não queria. Caminho abalado e caminho interrompido. Interromper-se-ia. Era segunda-feira.
“Estás vendo? A lua, todos os pequenos astros, este céu...”
“Que é que tem tudo?”
“É tudo um jogo. Todos jogam, inclusive os homens.”
“Do que você está falando?”
“De que tudo, nesse exato instante e em todos os momentos de nossas vidas, não é mais que um quebra-cabeça.”
“Não. Pára com isso! De novo com essas conversas para o meu lado! Me faça o favor!”
Desconversou. É o que sempre faz um homem quando começa a sentir que está começando a ficar chato. Alina, do outro lado do muro, revisou uma intervenção. Julgou seus trinta e seis anos de idade como imprestáveis e vergonhosos. Tinha vergonha agora. Sempre teve, mas agora mais. A viagem do desbunde ela não havia feito. O tempo havia passado e ela sem reparar que todo o seu sonho estava falido. Sensibilíssima e tardia, Alina chorou um pouco. Arnaldo existia.
“Esquece... como foi o teu final de semana?”
“Foi maravilhoso. Eu não disse que ia comer uma pizza neste feriado! Pois então, dito e feito. Sei que estou mais gorda. Tenho de entrar em uma academia. Mas valeu a pena, estava uma delícia. Foi num rodízio, lá na orla.”
“Eu odeio pizza.”
“Por quê?”
“Não suporto. Sou ruim de boca.”
“E de que você gosta?”
“Do básico. Feijão com arroz.”
“Que pena!”
“Que pena, por quê?”
“Sei lá, de não gostar de pizza.”
“Não entendo.”
“Não entende o quê?”
“Não estou pedindo para sentir pena de mim. Eu apenas não curto pizza.”
“Ah, sei lá... esquece!”
“Tudo bem, vou deixar passar.”
“Hoje acordei triste.”
“Triste?! Com todo esse sol que baixou nessa terrinha!”
“É, triste. Muito triste. De ontem para cá não parei de pensar no meu ex-namorado. Éramos felizes. Sabe como é, não estou conseguindo suportar a minha solidão. Não me suporto. Não me dou.”
“Eu sei. Também já passei por isso.”
“É um mal universal, e só de pensar que milhões de pessoas já sofreram o mesmo tanto que estou sofrendo já me descansa. Mas está sendo difícil lidar com isso.”
“O meu relacionamento terminou faz seis meses.”
“O meu foi agora. Na quarta-feira fará duas semanas. Foi um desastre. Chorei muito, eu e minha mãe. O meu pai não liga muito para isso. Deve ter achado bom. Pensei que não ia sobreviver. Doeu muito.”
“Na época, pensei em suicídio. Aqui na cidade tem uma ponte, um rio... sabe como é, um cenário perfeito. Foi uma discussão besta pelo telefone. Não consegui acreditar no desfecho tão sem graça, diferente do início. Acho que todos os relacionamentos amorosos começam assim, mas aos poucos se desgastam, enferrujam e acabam morrendo. Comigo foi assim.”
“Mas eu o amava. Falava isso a ele todos os dias. eu não tinha vontade de viver com outra pessoa, queria somente ele, amava somente ele. pensava em casamento. Todos lá em casa pensavam em casamento. Foi duro. Não sei se vou suportar.”
“O meu foi parecido. Estávamos pensando nas alianças. Estávamos juntos, depois de muitos desencontros. Fazia cinco anos.”
“É horrível. Não estou me suportando. É simplesmente horrível. Ficar sozinho não dá. Mas, eu não entendo! Eu o amava, ele sabia disso. Eu o amava com todo o meu amor.”
“Querida, às vezes precisa-se de algo mais, de um complemento.”
“Mas eu nunca deixei faltar nada em nosso romance. Sempre o enchia de beijos, de carícias, de abraços. Não conseguia ficar sem ele um só instante. Eu o amava de verdade. Foi o meu primeiro namorado.”
“Agora tenho medo de namoros sérios, ou que se dizem sérios.”
“Não entendo. Às vezes você parece ser louco. Está falando uma coisa e, de repente, começa a blefar.”
“O bom mesmo é quando você encontra uma menina de cabeça boa, que não fica pegando no seu pé. Existem delas nas capitais, muitas dessas. Tive o prazer de namorar uma desse tipo. O nome dela era Cristina. Morava num bairro de grã-finos e não ligava para o meu jeito taciturno de ser. Adoro essas meninas. Elas não se importam com o que os outros falam ou vão pensar quando estamos do lado delas, de mãos dadas. Só se importam com elas e conosco. Fazem tudo por nós. Chegam a dizer “eu te amo” quando a comemos insaciavelmente e lhes damos prazer. Sabe, nunca disse “eu te amo” para uma garota. Aliás, minto. Demorei quase quatro anos, mas a ela eu tinha dito. Foi quase que uma obrigação. Mulheres nos obrigam a dizer que as amamos. É verdade, somos, depois de um certo tempo, obrigados a dizer “eu te amo”.
“Não vejo isso. Você é louco ou está ficando amalucado. Vocês parecem ser todos iguais mesmo. São todos iguais! Não se diferem em nada.”
“Acho que quem está ficando louca aqui é você. Acabou de me dizer que o amava de verdade, que fazia tudo pelo ragazzo. E agora vem com estas chorumelas... Então, agora rejeitas os machos?!”
“Não, eu não quis dizer isso. Você está me forçando a agir em confusão.”
“E , então?”
“Esquece. Tenho de parar de falar nele, de parar de pensar nele. Se eu continuar assim, não sei o que vai ser de mim. Sobre aquele “algo mais” que você me disse... me explica melhor!”
“Acho que não é o caso.”
“Por favor!”
“Um dia você mesmo vai descobrir. Como eu disse, é tudo um jogo.”
“Não enche, rapaz!”
“Você vai acabar descobrindo, sozinha.”
“Mas, eu quase nunca descubro algo sozinha.”
“Então, aprenda a despetalar!”
“Começou, você e suas viagens. Não gosto desse teu jeito obscuro de falar, sempre nas entrelinhas.”
“Não precisa ter pressa.”
“Já chega! Chega desse joguinho de merda.”
E, de chofre, levantou-se da poltrona e, sem se despedir, foi embora. Talvez estivesse chateada com ele, ou talvez não. Em casa, a justa imagem da isenção no recorte, Alina pegou de uma faca e, sem dó, enfiou em si mesma, na altura da aorta. Morreu aos trinta e seis anos de uma morte necessária. Só isso. Engendrada, nem jornal nem nada quis saber de sua dor. Mas o necessário havia sido feito, ele tinha dado o cisne de sulfite branco a ela. E também sabia que, mais cedo ou mais tarde, acabaria por revelar o que estava faltando naquele sorriso de morango. Disso ele tinha certeza.