segunda-feira, 27 de junho de 2011

A casa sonolenta


Por Germano Xavier

Tenho este livro. Ou melhor, este livrinho me tem. Não o comprei. Ele apareceu num dia azul de malinações dentro do baú do meu finado avô, João Pimenta, aqui na despensa da casa onde moro. Empoeirado, com as orelhas crescidas, uma edição de 1993 de que tenho o maior ciúme. A narrativa conta a história de uma casa onde seus moradores viviam dormindo, até que um dia, por causa de uma pulga, uma reviravolta toma conta do ambiente e a casa, que antes era sem vida e triste, acaba por se tornar um recanto de muita vida e alegria. Os autores são Don e Audrey Wood.

quinta-feira, 23 de junho de 2011

Sempre na ida


Por Germano Xavier

XII

“Pai, perdoai-vos, pois eles não sabem o que fazem.” Eles não sabem mais o que fazer com a civilização, com esta mecânica fajuta e deplorável que está sempre à procura de alguma vítima, alguém despreparado, alguém inocente. (...) “Porra, o que será que aconteceu?!”, interrogou exclamando a moça que estava ao meu lado, na frente do shopping center. Virei a cabeça e dei de cara com um rapaz que se aproximava velozmente de mim. Confesso que aquilo não me despertou nenhum sentimento de surpresa, tamanha é a carga de violência estampada em nosso cotidiano. Fato que nos despudoriza. Vocês já desconfiam, eu já disse que não me importo com essa realidade, com esse mundo cada vez mais ligeiro e artificial. Tive vontade de tomar um daqueles chazinhos que tanto me fazem bem, mas fiquei só na vontade. Estamos fadados à civilização! Estamos fadados à realidade! Maldição! Maldição! Três vezes maldição! Quis baixar a cabeça, mas não deu tempo. O mesmo rapaz surgiu feito um leão feroz diante do rival que lhe quer tirar o domínio do seu território, agora segurando o menino pelo pescoço. “Cadê o som do meu carro?”, “Cadê o som do meu carro?”, “vamos!”, “desembucha logo, rapazinho!”, dizia o moço raivosamente e com a tez do rosto bastante corada. “Não, moço, eu sei de nada não!”, “o que foi que eu fiz?”, “eu não peguei nada, não” – retrucava o encurralado menino, que a essa altura também já estava acompanhado por um segurança daqueles que parecem mais (desculpem a comparação) um gorila, de tão forte. Ah, meus “redondinhos”! Tenho saudade dos meus fantasmas noturnos. Alguma coisa me dizia que, quando se é criança, a gente precisa de ajuda (é cada vez mais complicado fazer uma leitura desse “mundo”) e de amparo. Se não for assim, a tendência é a pior possível. Vocês são mesmo uns imorais! Não são éticos, não são dignos! Mas é para isso que estou aqui, simplesmente para mostrar o caminho verdadeiro. Acreditem! Eu sei! Eu sei que há “mundos” cheios de esperanças e de paz, onde todos conhecem o sentido da palavra LIBERDADE. Vocês deviam parar de se preocupar comigo. Eu não valho a mínima parte do seu trabalho. Mas não pensem que eu sou um louco. Eu sou apenas um sonhador que acredita em “mundos” e que está aqui só de passagem. Eu não vejo a hora de voltar para a minha casa. As coisas aqui parecem que não mudam, começando pela sua cabeça. Ah, o final! Vocês devem estar querendo saber que rumo essa história tomou. Perdoem-me, não há final. Não existem previsões de melhora condizente a isso. O que eu quero é que vocês me entendam! Eu sei de tudo que te fere, eu sei. O tempo é passageiro como nós, meu amigo! A aventura, não se esqueça da aventura! O futuro está aí, na fumaça que sai do seu cigarro. Continuem! Não podemos parar! Vivam! Sirva-se de seus pseudofrutos, mas não deixem de viver! O coração ainda pulsa, e isso é um bom sinal! Os faróis ainda alcançam os navios mais longínquos destes mares. Salve a conduta dos homens, desses homens. Continuem procurando o “som dos seus dirigíveis”, continuem!

terça-feira, 21 de junho de 2011

Cama mulher


Por Germano Xavier

A Vida: uma mulher.
Seus olhos, minhas tristezas.
Seu olhar, minha agonia.
Seu beijo, minha fraqueza.

A Vida: uma mulher.
Um mistério, uma incompreensão.
Metal afiado, cego.
Caminho alongado, longa felicidade.

A mulher cama magia.
Macia.
Lança, fúria e corte.
Profunda modelação.
Cama mata, mulher.

Instante e cria selvagem.
Meu retrato fugidio.
Porte de meus sonhos humanos
de homem.

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Calçamento


Por Germano Xavier

É prematuro o sorriso da felicidade.

Os portões
fechados das ruas entreabertas de sombras...

Cortei
um naco de sombra ao meio,
e meu ato fez surgir uma revoada
de pássaros
- fantasmas que foram pousar longe,

no outro escuro da Vida, na mais

inalcansável colina,
onde toda a luz adormece,
pelos séculos...

domingo, 19 de junho de 2011

Os sentidos de Adão e Eva


Por Germano Xavier

o horizonte distante e a pressa em chegar, sentar, acender verdades sob a árvore, fez de Eva a resposta aos mundos dos sentidos. Adão se sujeitava a colher frutos dos produtos que não se juntam, oferecendo-se poema inteiro. mulher de café e antistamínico, borbulhava em roupas que mal cabiam a alma, sequer o coração acelerava sob o seio que emoldurava o corpo. o homem, formalizado, recordando-se a propósito, estimaria a falta de certeza. sem anteparos nem escolhos, continuava em admirações. presa de si e sustentada por anos e erros do passado, falava sozinha porque jamais entenderiam sua eficácia em transformar parábola em vocábulo simples. com as bochechas rosadas, o primogênito do pai aprendia que pecar era gostoso e que o melhor fruto é o fruto que não desnatura. o homem amava o pai, amava o próprio homem e amava a mulher do homem. se era tarde, era tarde e se fosse cedo, hora de dormir e comer mais sonhos sem as teses entrecortadas de Freud. nenhum psicanalista saberia da anatomia do amor nem da alma como a única criatura dos dois, que nasceu assim para ser assim. o que teria de tão espetacular e analístico em sonhar com escadas migratórias e pães açucarados? sonhos são castiçais, candelabros individuais. por que complicar se tudo já era disperso ( uma bola de neve no cerrado)? talvez por ser a vida uma caixinha de surpresa, ou um clube de carteado, com formigas e cigarros e bocas. ela pensava que o mundo se escondia embaixo de sua cama e sempre o mesmo inseto criaria casa, casca e certeza em seu abajour. a mulher arrepende-se, por ter ficado embaixo da cama durante toda a guerra e por perder o melhor da festa. o homem não sabia o quanto tudo aquilo soava verdadeiro. Eva tinha quarto, cama e abajour. um amor por segundo e o movimento dos sentidos era eterno. sua emancipação era carregar as chaves de casa. melhor é a língua tanta da língua, nossa tanta torre de babel. era sua a casa em que morava e também o inseto e a luminária azul - coisa de quem vive de antigos convites não aceitos. marca de batom, clara marca de si no pescoço do amor do minuto seguinte. ela não eternizava a vida. eternizava o beijo de sonho e Freud não saberia amar os seios de Eva como ela amava seus pensamentos noturnos. Adão, no final, que era só um iniciar, criou a teoria do amor. e a teoria resumia-se a um só item: amar com amor. tinha amor por si e - navegava em si - a nova egoísta dos segundos que vivia. o segundo era o amor. e o primeiro também.

Daqueles ele é


Por Germano Xavier

XV

imbricado feito pele de peixe de rio
o menino desembestava suas atividades de solilóquio
malsucedia os atavios de vida empacava
dizeres de lorota e percalina e findava os dias
esfogueteando o seu contrário jeito de ser

"queria era era sê antípoda" palavreado ornado
mas que parecia se adicionar respeitos
leitura feita em livro de geografia usado
maltratado por mãos que ora vivem
se sepultar teorias adoradoras da práxis
parou pensou pensou mais um tantinho
e concluiu num arroubo de luz
"an-tí-po-da anti-poda sou desses"
era verídico Doró no mais das horas
não se interessava em aparar ramos desbastar
que ele o morenín era era deslimitado
por natureza desejoso por ver tudo
se alevantar de impulso ou de luta
saltar ganhar mundos e aforas
por isso mesmo naquela ensimesmadura
não fazia questão de se professar aos outros
em sentimentos de cisternas enormes
salpicava no rosto uma vermelhura de feliz
quando no seu vizinho brotava um orvalho no olho
isso somente de se contar uma história
imagine se ele Doró se arresolvesse de pronunciar
um dos tantos discursos experienciosos que nele habitava
aí a Grandeza nem precisaria mais mijar
que os homens mesmos se prontificavam de serem os regadores
e o mundo desde Pastinho até o mundão mesmo
se assentaria convencido de que a chuva ou a seca
só se é quando se permite que seja

"sou desses" pensou

sexta-feira, 17 de junho de 2011

O mundador de mundos


Por Germano Xavier

XIV

e deu de ser construidor de geografias?
e arrumou de ser regador também de palavreados
apanhados em literaturas, o menino moreno?
curió osado esse que nem lembra que indivíduo
ferroso pode não ser aquele que sustenta uma baita
inchação de bucho mole! oxe sô e oxe

marnué que é ô disgramadin osado
o disgramadin osado, o do mato!
vai ver que agora anda de serviço
misterioso e medonho com essas providências
fantasiosas de letras, que vivem disfarçadas
e em máscaras de algum baile duvidoso
numa resmada de papel variado e multicor
tá ele num desejoso de estreitar o beijo
das cores do mundo por ele mundado?
ou de modo que não assim Doró
pegou foi mazela de confundimento de cuca
que dá em gente que véve feito galináceo
em chocação preso em si por uma quentura sem pólo
o que será que se foi, meu padin?
o que será que se foi!

Doró aquele mesmo o mundador de mundos
parece assim por parecer às vezes que já
escolheu sua escolha mais de nobreza e estampa
ele quer é continuar sendo é ele mesmo ou seja
o que ele sempre não e jamais deixou de se saber ser
um fazedor de coisas
um coisador de fazeres

"um fazedô de mundos multicolores ou
um coisadô de fazeres viventes", disse assim
para o primeiro que lhe acercou de olhos naquele
instante disse assim para um samanbaio!

oxe, sô! e oxe!
disgramadin...

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Branca agitação


Por Germano Xavier

pássaros,
na margem
do rio,
alvoroçados.

cai a treva.

sobre a terra, estreitas luzes
mancham o silêncio
de incandescência.

sufocados,
os pássaros
na margem
do rio,
alvoroçados,
não cantam, meu deus!,
eles estão chorando.

Torrinha, um capítulo à parte


Por Germano Xavier

Quer viver uma aventura típica de filme norte-americano? Já imaginou você na pele de um Indiana Jones ou qualquer outro caçador de tesouros? Então saiba que a ficção não é tão irreal e impossível quanto se imagina que seja. Distante pouco mais de 15 quilômetros da sede Iraquara, indo em direção ao município de Seabra-BA, entramos a pisar em terreno conhecido como Torrinha.

Segundo contam, um holandês que atendia pelo nome José de Fulô, nascido no dia 02 de fevereiro de 1792 e falecido em 03 de abril de 1882, havia escolhido o nome ainda no início do século XIX. A área é basicamente um pequeno conglomerado de terrenos e casas de simples arquiteturas, por vezes demasiado arcaicas, edificadas no barro cru e com telhas artesanais produzidas pelos próprios moradores. É também aqui onde encontramos a Gruta da Torrinha que, dentre as mais de 100 grutas já catalogadas por instituições e pesquisadores dos mais diversos países, sem dúvida é a mais rica em espeleotemas e a mais misteriosa.

Foi ainda em minha adolescência, numa excursão organizada pela escola Educandário José de Arimatéia, que pela primeira vez tive a oportunidade de conhecer o lugar que é, em grande parte, propriedade de José Fernandes de Carvalho, conhecido por Zequinha. A região é riquíssima para a atividade de extração de água através de poços artesanais, devido aos inumeráveis mananciais que por ali passam por seu subsolo. A Gruta propriamente dita está localizada a pouco mais de um quilômetro à beira da estrada principal.

Já investido em anos, por lá me detive em outras ocasiões, porém recordo que esta primeira visita me trouxe imagens que até hoje não desgrudam de minhas retinas memoriais, como a grande “boca” da gruta, escura e tenebrosa, os guias se preparando para mais uma “corrida”, cada um responsável por doze visitantes a desbravar, à luz bruxuleante de candeeiros à gás, os mais recônditos interiores da terra, o canto dos pássaros, a cor vermelha da terra, entre tantas outras.

Eu olhava os rostos dos meus colegas de classe, e todos não conseguiam deixar de transparecer a expectativa e a apreensão depositada naquele instante. Apesar de a maioria ter nascido e crescido em Iraquara, passeios como aquele ainda eram difíceis de acontecer, principalmente por conta da pouca idade de todos. Mas, certamente, todos estavam com as suas almas transbordantes de felicidade.

O motorista da escola estacionou a van, as professoras acertaram as últimas pendências com os guias, e lá fomos nós, em dois grupos separados por cinco minutos, tempo de segurança para que lá dentro da caverna não haja interferência entre as conversas produzidas por um ou mais grupos.

Chegando à “porta” única da Gruta – diferentemente da Gruta Lapa Doce, que tem também uma saída -, logo fomos tomados por uma sensação de frio singular. É o gelo das eras, do escuro, das profundezas. “Na entrada da caverna, fazem-se ver várias inscrições rupestres grafadas em línguas desconhecidas; figuras de bisões que em nada são inferiores aos atuais; abelhas habitam a entrada da caverna e ali fabricam seu mel; crânios com características humanas, que parecem pertencer aos nossos antropóides que aqui viveram entre cinqüenta e cinco e quarenta e cinco milhões de anos, já descorados pela passagem do tempo.¹” Pequenas placas na entrada nos davam pequenos alertas acerca do caráter sagrado da localidade.

Entramos, e a cada passo que dávamos o teto parecia que caía lentamente sobre nós, obrigando-nos a caminhar agachados em fila indiana por um bom tempo, até chegarmos a um salão onde um dos três roteiros disponíveis era escolhido. A programação previa a andança pelo curso mais longo, com aproximadamente três quilômetros de extensão, o que foi motivo de mais alegria e adrenalina. Este caminho foi o último a ser descoberto, apenas levado ao conhecimento do público depois que uma pesquisadora francesa descobriu uma passagem que dá para o itinerário maior da caverna. Por seu feito, a fenda fora batizada de Passagem da Francesa, e é justamente a parte mais assustadora e que mais desperta curiosidade, por ser estreita e de difícil acesso.

Depois de adentrarmos, fascínio foi ver as Agulhas de Gipsita espalhadas pelo chão, brilhando sua luz cristal, a Flor de Aragonita – mineral ortorrômbico mais carbonato de cálcio - como uma majestade no final do caminho, as Bolhas Calcitas, o Salão dos Vulcões, as Cortinas, o Salão dos Golfinhos, o “rosto” de Cristo, as imagens de santos, as estalagmites e as estalactites - raríssimas formações espeleológicas, algumas unicamente encontradas ali.

Fantástico foi escutar o som do silêncio quando o guia apagou o candeeiro no meio do percurso e nos permitiu a visão do escuro absoluto. Inesquecível sentir que somos apenas uma ínfima parte perante o mágico esplendor da natureza. Indeléveis recordações de quando voltávamos para casa com a nítida impressão de ter conhecido o infinito desconhecido.


Notas.
1 – Excerto retirado do livro O império das serranias, de Ângelo de Mattos Pereira.

Conceito?


Por Germano Xavier

- Amiguinho meu, tu me ensinas a voar um vôo nunca existido?
- Não, eu não posso. Um dia tudo já existiu.

Indo ao dicionário Aurelião, encontraremos o seguinte significado para o termo grego "Mímesis (Mimese)": imitação ou representação do real na arte literária, ou seja, a recriação da realidade". Roger Samuel trabalha dentro dessa perspectiva de exemplificação quando malina nas gavetas de suas teorias e de suas pestes. Por ser um conceito filosófico, portanto demasiado amplo, esta "imitação" a qual indica tal autor alcança um horizonte de discussão quase que ilimitado. Para Platão, mímesis é uma espécie de imitação da realidade (Idéia) em terceiro grau, um pouco distante do plano do pensamento original. Se no platonismo a mímesis ocupa um espaço recatado, sem grandes importâncias nem faculdades, em Aristóteles o termo vai ocupar um lugar de destaque, revelando-se como o processo pelo qual o fazer poético encerra variados símbolos e significados. A mímesis não é um exercício metalinguístico - como é óbvio que não deixa de ser, jamais -, porém ela mais se aproxima da metáfora, como energia vital e força propulsora integrante do núcleo poético. Sem tanto me alongar querer, mímesis está mais para um exercício de revelação externa ou interna de algo, tendo como ponto de apoio uma determinada realidade já existente, sofrendo influência do nosso inconsciente e, também, das circunstâncias diversas as quais estamos diariamente e temporalmente entrando em contato.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Braçadas



Por Germano Xavier

Para Rafael Medeiros,
amigo-irmão que está aprendendo a voar...


Quando Deus apaga nossos olhos
passamos a enxergar com as mãos.
Quando Ele nos serra as mãos
apalpamos a vida com o coração.

Quando Deus esconde nossa voz
falamos através do silêncio.
Quando Ele desgosta os gostos
temperamos tudo com o tempo.

Quando Deus nos retira os sons
ouvimos através dos cheiros.
Quando Ele nos poda o andar
está querendo que alcemos voo.

terça-feira, 14 de junho de 2011

Sobre empurros e alturas


Por Germano Xavier

XIII

palavra viva é medo resolvido dura
esfera de se criar fantasia solta
e de onde veio o meu nome é o céu
castanho e de onde veio a decisão
curta de ser grande e de cócoras o tempo
fazer-se criar-se nos matagais e grãos
e a messe colher o dom escasso de vista
ser campina e vôo ser-me a história

melhor lembrar que a vida é em rodopios
de bola de pano? chuva que molha o chão
esperança que mata a fome indo a arte
o monumento maior de ir em desenredo vale?
mais? o mundo quanto? custa à morte a vaidade
quando? a verdadeira festa elevatória música?

a gente joga e não espera a gente brinca
de barriga varrendo o chão e os telhados
a gente fujamos voa é preciso saber
que não se escolhe o pouso o front
que se vai e se deixa ir ventado em empurros
a ida a volta precisamos? estamos sempre indo
com certeza para os cantos e para as alturas

Doró não lamenta o sonho na guimba desperdiçado
Doró alcança estica os artelhos compridos
de acordado e quisto em tudo e se chega

Doró toca os demais os abismos e se alma
mais que ver ele sulca guerreia de dentro
para fora os mundos seus carinhando-se

que se é frio se amorna em umidades
em humanidades em humildades o principal
diz dizendo a voz do coração e ensina compassado
que a vergonha é estrangeira desnatura e quebra
deixa de esconder as manchas nossas verdades

mundar deixa ele o recado de mundar de mundar
de ser em capricho para outros o pão
para si mais de um mundo em borboletas
de se imaginar feituras nossas animais

e nascer nunquinha deixar esquecer e nascer
e sujar-se em nascer-se
e enlamear-se em nascer-se
renascer-se...

sábado, 4 de junho de 2011

A quem odeio, com muito amor


Por Germano Xavier

Alina Pontes, duas filhas meninas e um filho homem, divorciada, professora aposentada e dona de uma alma escura como piche, é uma mulher incomunicável. Ao longo de seus trinta e seis anos de idade, Alina cultivou equívocos e dissecou pecados. Hoje, no dia em que resolveu que iria morrer, acordou e o sol era já inteiro sobre sua cabeça. A metade do dia, que na vida dela tinha vinte e quatro horas, atravessada em sono. Despreocupadamente, ainda no encalço de um andar trôpego e vacilante, dirigiu-se ao sanitário de azulejos brancos. De pijama azul-turquesa, a mãe da Lúcia, da Beatriz e do Jorge, escovou os dentes amarelos, por causa dos hábitos alimentares não muito exemplares, reparou o rosto já em rugas iniciado, sardento, e o lavou.

Alina casou-se cedo, aos dezoito anos. Aos vinte engravidou e nasceu o Jorge, seu primogênito. Hoje Alina ostenta uma cintura larga e um vocabulário minguado. Parou de estudar porque o marido a queria no cuidado dos rebentos. Na curta idade que tem, usa de ferramentas parcas para entrecruzar sua voz numa ou noutra conversa familiar de domingo.

Certa vez, o Arnaldo, o homem que havia passado a última noite ao lado de Alina, fez uma peça de origami para ela, e no mesmo dia a entregou. Era um cisne feito com um quadrado perfeito de sulfite branco. Uma belezura oriental, sabe. Coisinhas fofas para pessoas carinhosas, caridosas. Quase uma jogada. Na verdade, não tinha sido ele o construtor daquela pequenina obra. Havia sido a Juliana, uma colega nova que conheceu na faculdade de Letras. Ela, uma moça de um par de seios bem generosos e de aparência macia, sem fim nem começo, assim ligeiro, despertou o interesse do macho. Além de trabalhar com papel, a rapariga que, não raras as vezes sentava ao seu lado esquerdo, junto à porta, também fazia trabalhos em biscuit, uma massinha de tonalidade creme que leva glicerina, maisena e água. Tinha oferecido uma oficina particular naquele dia e o Arnaldo não pensou duas vezes. Queria agradar Alina, mas não era no fundo. Os homens, por mais que se esforcem, sempre estão querendo agradar as mulheres. Mais observou as mãos de seda da Juliana que todas as dobraduras no papel.

Pronto. Foi um belo pretexto para iniciar uma conversa com ela. Estavam no ônibus, que sempre os levava e os trazia de volta para as suas respectivas casas. Havia dez minutos que ele a esperava. Foi quando ela surgiu com aquele sorriso de morango que, de todas as criaturas femininas que ocupavam aquelas poltronas, só ela possuía. Talvez fosse por essa razão que ele gostava tanto de conversar com ela. Alina, ainda enxergando o mundo sem viço, pensou se iria morrer de barriga vazia ou cheia. Era época de desaparição, ela sabia. Como sabia que todas os seus ornatos de pescoço agora eram joías mortuárias. Alina só sentia, mulher que era.

“Toma, é pra você!”

“Para mim?!”

“É. Fiz com muito carinho.”

“Ai, obrigada! Você aprendeu rápido, heim?!”

“Guarde-o, não perca. Você mesma me disse que dá sorte.”

“Tá bem. Vou colocá-lo em cima do meu criado-mudo.”

O Arnaldo acreditou. Nessas horas, todo homem acredita em sorrisos de morango. Juliana, delicadamente, pôs o cisne de sulfite branco em sua bolsa. O ônibus entrara em movimento. Da janela, a lua daquela noite não passava de uma lua, bem longe. Vítima de uma modernidade maligna, Alina ainda leu um conto escuro de um francês antigo e quis plasmar seu planeta inteiro. Internava-se em si mesma como faz a avestruz selvagem na terra que tem. Estava sem terreno, Alina. Varrida pela angústia, continuou a ler do livro amargo. Ela suspeitava do outro mundo que havia. Arnaldo era só um dos tempos. E sabia que, certamente, ele tinha coisas mais importantes para estar se preocupando. Ela disse:

“E aí, quais são as boas?”

“As boas?”

“Sim.”

“Ah, não sei.”

“Nadinha?”

“Hummm...”

Ele logo afastou a cortina vermelha e olhou novamente para o céu cheio de estrelas. Alina, em sua casa, suando frio mas delicadamente, entra na cozinha. Novos e seguros rumos para uma vida inteira de lamentação. Alina não gostava de ser apenas aquela em quem havia se transformado. Odiava ser só mama e ser só leite de criança. Odiava ser só roupa e ser só fralda. Odiava ser e ser já não queria. Caminho abalado e caminho interrompido. Interromper-se-ia. Era segunda-feira.

“Estás vendo? A lua, todos os pequenos astros, este céu...”

“Que é que tem tudo?”

“É tudo um jogo. Todos jogam, inclusive os homens.”

“Do que você está falando?”

“De que tudo, nesse exato instante e em todos os momentos de nossas vidas, não é mais que um quebra-cabeça.”

“Não. Pára com isso! De novo com essas conversas para o meu lado! Me faça o favor!”

Desconversou. É o que sempre faz um homem quando começa a sentir que está começando a ficar chato. Alina, do outro lado do muro, revisou uma intervenção. Julgou seus trinta e seis anos de idade como imprestáveis e vergonhosos. Tinha vergonha agora. Sempre teve, mas agora mais. A viagem do desbunde ela não havia feito. O tempo havia passado e ela sem reparar que todo o seu sonho estava falido. Sensibilíssima e tardia, Alina chorou um pouco. Arnaldo existia.

“Esquece... como foi o teu final de semana?”

“Foi maravilhoso. Eu não disse que ia comer uma pizza neste feriado! Pois então, dito e feito. Sei que estou mais gorda. Tenho de entrar em uma academia. Mas valeu a pena, estava uma delícia. Foi num rodízio, lá na orla.”

“Eu odeio pizza.”

“Por quê?”

“Não suporto. Sou ruim de boca.”

“E de que você gosta?”

“Do básico. Feijão com arroz.”

“Que pena!”

“Que pena, por quê?”

“Sei lá, de não gostar de pizza.”

“Não entendo.”

“Não entende o quê?”

“Não estou pedindo para sentir pena de mim. Eu apenas não curto pizza.”

“Ah, sei lá... esquece!”

“Tudo bem, vou deixar passar.”

“Hoje acordei triste.”

“Triste?! Com todo esse sol que baixou nessa terrinha!”

“É, triste. Muito triste. De ontem para cá não parei de pensar no meu ex-namorado. Éramos felizes. Sabe como é, não estou conseguindo suportar a minha solidão. Não me suporto. Não me dou.”

“Eu sei. Também já passei por isso.”

“É um mal universal, e só de pensar que milhões de pessoas já sofreram o mesmo tanto que estou sofrendo já me descansa. Mas está sendo difícil lidar com isso.”

“O meu relacionamento terminou faz seis meses.”

“O meu foi agora. Na quarta-feira fará duas semanas. Foi um desastre. Chorei muito, eu e minha mãe. O meu pai não liga muito para isso. Deve ter achado bom. Pensei que não ia sobreviver. Doeu muito.”

“Na época, pensei em suicídio. Aqui na cidade tem uma ponte, um rio... sabe como é, um cenário perfeito. Foi uma discussão besta pelo telefone. Não consegui acreditar no desfecho tão sem graça, diferente do início. Acho que todos os relacionamentos amorosos começam assim, mas aos poucos se desgastam, enferrujam e acabam morrendo. Comigo foi assim.”

“Mas eu o amava. Falava isso a ele todos os dias. eu não tinha vontade de viver com outra pessoa, queria somente ele, amava somente ele. pensava em casamento. Todos lá em casa pensavam em casamento. Foi duro. Não sei se vou suportar.”

“O meu foi parecido. Estávamos pensando nas alianças. Estávamos juntos, depois de muitos desencontros. Fazia cinco anos.”

“É horrível. Não estou me suportando. É simplesmente horrível. Ficar sozinho não dá. Mas, eu não entendo! Eu o amava, ele sabia disso. Eu o amava com todo o meu amor.”

“Querida, às vezes precisa-se de algo mais, de um complemento.”

“Mas eu nunca deixei faltar nada em nosso romance. Sempre o enchia de beijos, de carícias, de abraços. Não conseguia ficar sem ele um só instante. Eu o amava de verdade. Foi o meu primeiro namorado.”

“Agora tenho medo de namoros sérios, ou que se dizem sérios.”

“Não entendo. Às vezes você parece ser louco. Está falando uma coisa e, de repente, começa a blefar.”

“O bom mesmo é quando você encontra uma menina de cabeça boa, que não fica pegando no seu pé. Existem delas nas capitais, muitas dessas. Tive o prazer de namorar uma desse tipo. O nome dela era Cristina. Morava num bairro de grã-finos e não ligava para o meu jeito taciturno de ser. Adoro essas meninas. Elas não se importam com o que os outros falam ou vão pensar quando estamos do lado delas, de mãos dadas. Só se importam com elas e conosco. Fazem tudo por nós. Chegam a dizer “eu te amo” quando a comemos insaciavelmente e lhes damos prazer. Sabe, nunca disse “eu te amo” para uma garota. Aliás, minto. Demorei quase quatro anos, mas a ela eu tinha dito. Foi quase que uma obrigação. Mulheres nos obrigam a dizer que as amamos. É verdade, somos, depois de um certo tempo, obrigados a dizer “eu te amo”.

“Não vejo isso. Você é louco ou está ficando amalucado. Vocês parecem ser todos iguais mesmo. São todos iguais! Não se diferem em nada.”

“Acho que quem está ficando louca aqui é você. Acabou de me dizer que o amava de verdade, que fazia tudo pelo ragazzo. E agora vem com estas chorumelas... Então, agora rejeitas os machos?!”

“Não, eu não quis dizer isso. Você está me forçando a agir em confusão.”

“E , então?”

“Esquece. Tenho de parar de falar nele, de parar de pensar nele. Se eu continuar assim, não sei o que vai ser de mim. Sobre aquele “algo mais” que você me disse... me explica melhor!”

“Acho que não é o caso.”

“Por favor!”

“Um dia você mesmo vai descobrir. Como eu disse, é tudo um jogo.”

“Não enche, rapaz!”

“Você vai acabar descobrindo, sozinha.”

“Mas, eu quase nunca descubro algo sozinha.”

“Então, aprenda a despetalar!”

“Começou, você e suas viagens. Não gosto desse teu jeito obscuro de falar, sempre nas entrelinhas.”

“Não precisa ter pressa.”

“Já chega! Chega desse joguinho de merda.”

E, de chofre, levantou-se da poltrona e, sem se despedir, foi embora. Talvez estivesse chateada com ele, ou talvez não. Em casa, a justa imagem da isenção no recorte, Alina pegou de uma faca e, sem dó, enfiou em si mesma, na altura da aorta. Morreu aos trinta e seis anos de uma morte necessária. Só isso. Engendrada, nem jornal nem nada quis saber de sua dor. Mas o necessário havia sido feito, ele tinha dado o cisne de sulfite branco a ela. E também sabia que, mais cedo ou mais tarde, acabaria por revelar o que estava faltando naquele sorriso de morango. Disso ele tinha certeza.

Fus de soidade


Por Germano Xavier

XII

disse um fu! com desprezo o moreno
disse um ai! cabeçudo de soidade

Doró esperneava enlameado das lamas
das cinzuras das desalegrias dos supostos
e tudo isso os de mal nas esquinas fácil
mas não deixa de ser bem almado
aquele que apeia o próprio fado não
nunquinha não deixa de ser aboiador
de regatos milagreiro e o mais simples
o mais de tudo que se queira crer
avuador leve o estar algodoando
os outros no justar da gente colheita

arante roçante o sulco na terra o
barro febril aberto plantador os sonhos
essas nossas aleivosias de interno abisso
lá longe aqui perto tudo e nada
o ser verbo azul esse demais o mar
é mesmo azul de vidro ele quebra
em ondas vontadeando a umidade eterna

disse um hale! guerreiro menino-fonte
não estranha terra estrangeira engole ela
cozinha ela ajeita no prato das sabenças
e te ergues dando garfadas sendo ela
você inteiro tua casa teu passaporte tua ida

Pastinho mais perto um dia a morte
um dia chega a hora de partir infinito
dividido cortantante partir da terra a fenda

dia de não poder dizer um fu! com desprezo
o moreno do mato garganta seca a hora disso

dia de dizer um ai! cabeçudo de soidade
lembrador passa tudo na gente essa hora vivi?

sexta-feira, 3 de junho de 2011

Brasis



Por Germano Xavier

A relação existente entre o excerto do livro Raízes do Brasil, intitulado de "Novos Tempos", cujo autor é Sérgio Buarque de Holanda, e o documentário "Casa-Grande e Senzala", sobre a obra de Gilberto Freyre, faz-se essencialmente visível na tentativa de ambos em explicar o processo de formação do povo brasileiro através de diversas teorias, explanações, conceitos e interpretações. A obra de Gilberto Freyre discorre tendo em vista o mito das três raças - Branco, Índio e o Negro -, partindo do pressuposto de que a junção dessas três raças constituiu o alicerce fundamental para a "construção de uma identidade brasileira, realçando as parcelas de contribuição condizentes a cada uma, através de seus costumes, crenças, línguas, entre outros aspectos". No texto de Sérgio Buarque é notável o enfoque dado aos conflitos e perturbações dos povos que aqui viviam no período colonial. Há também uma preocupação na questão da chegada dos imigrantes (portugueses, em sua maioria), que ocasionou mudanças no modo de agir e pensar dos nativos, retratando também as transformações ambientais. Segundo o autor, os velhos padrões da colônia se viram ameaçados com a migração forçada da família real, no ano de 1808; tal fato fez com que o país deixasse o anonimato para começar a ser pensado como uma ordem nacional propriamente dita. Toda essa modificação, drástica e rápida, veio contribuir para a germinação de um "caos", de uma desordem que atingiu mais especificamente os modos de vida rural. Em "Novos Tempos", Sérgio Buarque mostra o apego da sociedade atual moderna ao recinto doméstico, uma relutância em aceitar a super-individualidade. O autor questiona a importância da leitura para o cidadão (indivíduo). O texto deixa claro a existência de uma preocupação exacerbada com a gramática, com o Direito Formal, com a retórica e com a palavra, elementos que eram utilizados na fomentação de uma nova "realidade", mais artificial e livresca; fator esse que colocava a intelectualidade num patamar de sujeito diferenciador e segregante, já que o livro e a sua rotineira leitura funcionavam como um instrumento de elevação e de dignificação para aqueles que o cultivavam. A posição social ou a mobilidade social, de acordo com o pernambucano Gilberto Freyre, não estava vinculada diretamente com a aquisição de conhecimento, ou com a leitura de livros, mas sim à cor, ao poder, à hereditariedade e até à quantidade de escravos que um senhor tinha. O livro e a leitura, assim como a cor e o poder eram fatores de repressão social. O documentário conta a formação do povo brasileiro, enfatizando o fato da colonização explorativa dos portugueses, o contato com os povos indígenas e os negros trazidos de diversas localidades do continente africano. Esse povo - o brasileiro - acaba tendo uma singularidade, uma caracterização intrínseca, apesar da complexidade do seu surgimento; surge um povo com hábitos e costumes próprios. A verdade é que Sérgio Buarque tenta, através do nosso passado, enxergar o futuro. O Brasil, diz o autor, tem muitas características ibéricas, e que é justamente daí que é construída a sua cultura. E então?

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Cantares de preservo


Por Germano Xavier

I


guardei o que não se guarda,
lâmpadas de deserto, películas sem cor,
eternas canções de águas rasas

e alguns amores tantos - outros nem -,
valises inabitáveis e uma baça dor...
e sendo assim, eu, nu e em face levantada,
no fechado navio de machucados peço

que nunca se apercebam de mim,
mesmo se em transe estiver o meu estado,

eu, este pobre molhado,
que só guardou o que jamais seria fim...

Diálogo para fim de papo


Por Germano Xavier

Braga é o homem do acontecido e inicia o discurso:

- Quanta saudade, Helena!
- Imaginei que estes hematomas te impediriam de enxergar a realidade inconsciente que você produziu.
- Como assim, inconsciente? Eu estava sob o efeito do álcool, não havia um gole sequer de consciência naquele meu gesto.
- Rá, rá, rá! Ah, não?!
- O que tem de engraçado nisso, Helena?
- É que os sinais de uma consciência, plena e madura, não florescem nos instantes mais precisos, não acha?
- Qual a razão para tanta ironia?
- Você sabe...
- Fale! Continue!
-Continuar o quê?
- Diga porquê eu não lhe devo matar.
- Se você me odeia, mate-me.
- Eu te odeio porque te amo. O ódio é o amor em excesso, sabia?!
- Rá, rá, rá... não me faça rir, por favor.
- Amar também é ser fiel a quem nos trai, eu te perdoo, juro.
- Nelson Rodrigues deve estar se pocando de rir... quem está com o punhal não é você, por que você não me mata logo?!
- E quem disse que este punhal é pra você?
- Se não é pra mim, é pra quem?
- Lentamente este punhal irá retalhar um coração despedaçado.
- O que é isso?
- Adeus, Helena.
- Não, não, não... filho da puta, você não merece isso... se matar por mim... desgraçado, covarde!

Me dá essa desgraça, eu vou também...