Por Germano Xavier
Está em seu quarto agora, descansada, enquanto eles prosseguem burilando dentro dela sons arredondados e orbiculares. Ela sabe que os plurais possuem um grito gris de horror. O abajur aceso do lado esquerdo do quarto fabrica uma penumbra que toma conta do quarto inteiro. Livros adormecidos na prateleira de mármore, o anzol decorativo pendurado no molho de chaves, sapatos emparelhados no criado-mudo. Achava que livros sempre traziam a verdade mais pura, que um ou outro dia precisaria de um anzol para uma pesca dominical, que chaves eram objetos que davam sorte. Estava tentando ultrapassar a décima quinta página do livro estrangeiro que segurava em uma das mãos, mas a noite por vezes é um telhado escarpado de símbolos execráveis.
Aquele dia havia transformado para sempre a vida de Catarina. Uma manhã caiada, retangular, mas improvavelmente árida. Menina doce, criada a mel e pão de casa, parecia ser sempre uma menina doce e criada a mel e pão de casa. Difícil era ver Catarina esbravejando temporalidades comportamentais. A família estava normal, com todos os seus integrantes em perfeita harmonia. O cão Bosco, a gatinha Lili, Mario, seu sobrinho de dois anos, seu quinhão na loja de conveniência do posto Dois Irmãos, sua caneca de café, com a qual tomava desde água até os insossos chás gelados. Normal e silencioso era o seu tempo.
Estando lá, acobertada até a altura dos seios por um casaco puído, Catarina olha incidentalmente para a fechadura na porta do seu quarto. Roupas ensebadas estão penduradas numa espécie de cabide do lado de dentro, do lado onde ela está. Há uma blusa cor de rosa e um bolero felpudo na cor preta que usara no último sábado. Havia um efeito pernicioso em perscrutar aquela aparentemente inofensiva fechadura de metal. Mas uma resistência quase estóica lhe dificultava a antevisão de outras formas. Como que num esboço de algum presságio, o olhar de Catarina seguiu fitando vorazmente a imótua porta.
Apanágios foram escritos no amor das metáforas, e o silêncio era sua suave arma. Recebia os proventos daquela hora numa arribação da memória.
Lembrou do susto instantâneo, da quebra da monotonia daquele lugar.
- Tac, tac, tac – um barulho vindo do outro lado escondia em sua face alguma espécie de medo.
Rompantes, os segundos do relógio viram-se apressados, desassossegados. A menina sentiu-se usurpada por maledicências mil da imaginação. Pensou logo no pai tabelião, acostumado a tomar para si as dores do mundo e resolver impasses humanos e desumanos, na mãe dona de casa guerreira contemporânea, no irmãozinho poderoso na inteligência. Mas ela sabia que estava sozinha naquela sala escura. Imputada a fazer algo que destravasse a sua coragem corrompida, Catarina levantou-se claudicante.
Sentiu que não era hora para pensar em Ajax ou Perseu. Pensou no ovário das aves e na bonita utilidade do vôo.
- Bom alvitre, bom alvitre - sussurrou.
O estorvo era insolente. Ela, camalote indolente. Era quase o paroxismo.
Havia de agir de alguma maneira. Abster-se da ida, da luta, certamente não era uma boa escolha. Viu um biombo perdido no meio da saleta. Puxou para perto da porta a fazer dele uma escora de proteção. Na verdade tudo ali poderia suceder. Dois enormes maços de papel mata-borrão também lhe serviram de suporte. As condições eram tácitas, o nervosismo dispéptico, o assombro real.
- Tac, tac, tac – novamente o ruído, agora mais rápido e forte como uma viva alma com pressa para com a ação de abrir.
Catarina calhou de ir mais à frente, para bem perto da porta. Era de uma madeira escura, trabalhada com formas antigas e rústica como qualquer objeto com mais de um século de feito. Na sala, os escaninhos eram fundos. Aliada a sua combalida altivez, enxotada por uma espécie de consternação que lhe feria a vontade, Catarina empertigou-se, dizendo:
- Quem está aí? O que deseja?
Seria ali o seu patíbulo, lugar de sua morte? Catarina, tão doce, tão crassamente dulcífica, vitimária de um outro que ela ainda não o sabe? Tão apolineamente linda e castigada pelo nada? Que tipo de anagrama era aquele em que estava agora metida?
Litografia. Hipogeu. A sala escura. Inconábulo do mundo. Alguém atrás da porta.
Aproximou-se, contributa à fulgurativação do seu medo. E depois de alguns instantes escutando o som cessado, atirou as vistas na direção do estranho.
Baixéis negros. Arrabalde menoscabo. Não havia vulto, sombra que fosse, só a percepção de que do outro lado a luz existia.
Prospectivamente, Catarina continuou. E imaginou que via tudo, absolutamente. Seus olhos nunca haviam lhe deturpado visagens. Acossou o desconhecido, sem dar chance à liberdade dos ventos do externo. Último plano era abrir a porta, último. No entanto sentia-se mais sólida do que nunca, tijolo duro.
- Sete palmos de terra, não há nada nem ninguém atrás desta porta – proferiu nubladamente. – Até quando me permitirei estar em laços irreais enrodilhada? Ah, minha cruz rúnica...
Que inabarcável teatro o de Catarina, perdida dentro de uma sala consigo mesma. Temente a si própria, incrédula de alguma força dêitica que pudesse uni-la à fortaleza de sua natural essência.
Ela com os olhos na fechadura, vendo a luz – Catarina enxergava? -, driblava as cercas de zimbro e as muralhas imperiais que lhe surgiam na fronte. Quando, certa de si, divisou o depauperamento de seus clamores. Olhou para o cós de sua calça e viu a chave.
Interressonâncias. Nume. A palavra lua.
Tenteia, prostra-se ao descerramento da barreira. Catarina tem a chave que faz falecer o outro, que assassina suas perspectivas sem claridade. Catarina tem o candor improviso, a degelada brunidura do dessilêncio.
Amava tanto o silêncio.
Ela está na pequena sala agora, cansada, enquanto eles prosseguem burilando dentro dela sons arredondados e orbiculares. Ela sabe que os plurais possuem um grito gris de horror. Recolheu a chave e a recolocou pendurada na calça. Estava tentando ultrapassar a décima quinta página do livro estrangeiro que segurava em uma das mãos, mas a noite por vezes é um telhado escarpado de símbolos execráveis – pensou.
3 comentários:
Crédito da imagem:
"Porta by ~uncapellomorto"
DEviantart
Se eu fosse a Catarina, te diria para que não roubasse os meus esmaltes e nem tentasse adivinhar as cores deles. Homem não entende dessas coisas de armário de garota. Um abraço, Yayá.
Coisa bonita que inspira escrever, escrever, escrever...
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