domingo, 9 de dezembro de 2012

O caso da rua do albergue velho


Por Germano Xavier

Eu não tive culpa, isso é tudo o que posso dizer. Não tive como desviar o meu olhar naquele momento. Sabia que seria único, que outro de igual intensidade e vivido com o mesmo aturdido pulsar das artérias não haveria. Não podes julgar-me, sou um homem de bem. Vivi toda a minha vida sob total comedimento. Pois se há uma palavra que consegue resumir a minha mais vital característica, esta é a prudência. E, logo adiantando, pegar de uma arma de fogo para despejar sobre outro homem o vil projétil assassino nunca me foi uma atitude que causasse real interesse. Pelo contrário, desperta-me repugnância, e das mais contundentes. Se ao menos tivesse ouvidos para mim, poderia eu explicar-lhe o acontecido. Mas tu não me ouves, sequer por um reduzido instante. O teu desejo é apenas o de esmurrar-me, de me atirar contra as paredes da justiça, espetando-me facas afiadíssimas como quem sangra uma porção de carne destinada ao tempero. Por quê? Nada fiz, saiba disso. Àquela hora da noite, fui apenas um espectador. Poderia ocorrer com qualquer homem, e ocorreu comigo. Qualquer um perderia o seu rumo, o seu destino, diante de tão indigesto cenário. Tenho certeza que assim seria com o senhor, que no palco a mesma cortina possibilitaria a apreciação de teatro tão chocante. Foram essas as minhas palavras, dirigidas a um senhor que trazia estampado no centro da testa e na esquina dos olhos numerosas marcas profundas do tempo, e que denunciavam a sua já respeitosa idade. Lembro-me de tudo. Foi exatamente há duas semanas, numa mesma quinta-feira. Perto das quatro horas da tarde, logo quando resolvi tomar um suco de laranja numa das lanchonetes da Rua do Albergue Velho. Era de praxe andar ali, mesmo não sendo o caminho mais curto para se chegar ao local onde trabalho. Gosto de ficar olhando os velhos prédios, cada vez mais acobertados pela sombra dos gigantescos edifícios que tinham sido construídos naquele mesmo ano. Talvez as velhas construções, assim como os seres humanos, também necessitassem de um descanso no final de suas vidas, como uma espécie de recompensa após um longo período de dedicação e obediência. O certo é que todo aquele contraste me seduzia. As pessoas passando rápidas, esbarrando umas nas outras, como que tratores desgovernados. As sacolas cheias de compromissos e pressas. As crianças olhando paralíticas as vitrinas, sem sonhos. Tudo me paralisava, absolutamente tudo. Preferia o anonimato, pois nunca fui dado às lâmpadas. Não passo de um desconhecido. Moro sozinho num sobrado alugado ao preço de um saco de feijão, e isso tem já dois anos. Fiquei órfão de mãe aos treze. Meu pai morreu no mesmo ano que cheguei a essa cidade. Não tenho irmãos e meus parentes moram na outra extremidade desse país. É tudo muito difícil, se não fosse a bolsa que recebo da universidade, as coisas certamente estariam muito piores. Mas eu não esperava tamanho desrumo... eu não esperava. Ando pela noite sem buscar nem provocar situações, sem notar, sem me fazer notar. Permaneço no lado escuro da noite, mesmo que isso me assuste, tudo provoca prazer em minha alma. Conforta-me o lugar onde moro, mas não esqueço jamais o que vi certa noite. Até hoje não sei o que fazia ali, diante da polvorosa cena. Jamais intencionei entender o que se constrói nas mentes humanas - o que se passa nas vastas florestas cheias de fadas sombrias, permeando as flores que por ora sufocam-se com o pó tóxico de suas asas? Mas agora, ataca-me uma irresistível curiosidade para saber o que ocorria naquele triste cenário. Lembro que abordei o rapaz. Então, que me dizes? O que fazias tu àquela hora naquela rua? Não quero dizer aqui o que presenciei, falta-me coragem. Numa noite como tantas outras, na rua em que costumo passar às vezes, nada especial. Ando. Olho ao meu redor, penso em coisas minhas, quando de repente vejo o fato que faz surgir em mim pavorosa inquietação. Perguntas saltam precipitadas de minha mente. Ali, onde tudo já se tornara contrastante rotina, de onde o meu olhar se acostumara com as aparências das coisas e das pessoas, hoje lugar de pesadelo, apenas fui mais um passante. Não sei o que tanto faço andando pela noite. Na verdade, algo me toma e me ruma aos mais diferentes caminhos. Perco-me de mim mesmo. Então, despertado do transe quase que espiritual, ponho-me a divagar sobre o que sou. Mas há duas semanas evito sair de meu apartamento, da morada de dentro. Talvez, por viver sempre no ócio me ocorram essas situações desagradáveis. Minha idade não permite longas caminhadas. Apesar de velho, não perdi o interesse pela vida, principalmente noturna. Tenho amor pelas ruas escuras, desabitadas. Mas minha intenção nunca foi de observá-las e tampouco de entendê-las. Sigo sozinho neste meu tedioso destino. A noite me exerce misterioso fascínio. Sinto-me parte dela. Eis que acontece tal cena em minhas vistas e me quebra toda uma saudável rotina. Eu vi, tenho certeza do que agora afirmo. Eu vi o rapaz cometer a insanidade. Foi tudo tão rápido. A porta, o sangue, o corpo estendido e aquela cara de espanto para disfarçar o que tinha acabado de fazer. Pensas que não sei o que fizestes, pusilânime? Essas palavras dirigi a ele, que me respondeu sem franqueza. Não. Não continuarei a cismar sozinho nem tampouco me saciarei com tal resposta dada. Diga-me, rapaz, tudo o que te fez agir com nefasta atitude? Tenho ouvidos, mas são meus olhos que te denunciam! Eles presenciaram a tua desgraça. Não o conheço. O discurso de inocência é algo típico deste triste rumo. Não me convencerá. Somente os olhos podem legitimar a cor de um escuro, ou de um clarão. Somente ele, portador da máquina da memória, poderá te absolver. Toda cegueira é uma cicatriz de uma vergonha. Cegos, colocamos para dentro de nós o que não poderíamos perder. O escuro eterniza o que um dia foi evidente. De nada servirá enfiar esta faca que agora seguras nos meus olhos. Nada apagará o que vi. Meu olhar é tua própria lâmina.

2 comentários:

Germano Viana Xavier disse...

Crédito da imagem:

"Quitandinha by ~kiki16br"
Deviantart

Artes e escritas disse...

Que horror! Tão real que apavora. Um abraço, Yayá.