domingo, 3 de fevereiro de 2013

Espelho, espelho meu (ou quando a Babel é humana)



Por Germano Xavier e Elizabeth de Souza

Espelho, espelho meu, há no mundo alguém tão parecida comigo? Olho para o espelho e vejo a mim mesma... Bom, então não há dúvidas que sou eu quem está do outro lado do espelho, ou há?

Meus gestos insanos são repetidos pela imagem na minha frente com tanta naturalidade que chega a assustar.

Incisiva, a imagem me olha no fundo dos olhos, o que me deixa perplexa diante de mim, trazendo o benefício da dúvida.

Será que sempre fomos assim, minha imagem e eu?

Será que essa que olho do outro lado do espelho é uma farsa que me faz acreditar nos seus gestos calculados?

Observo seus gestos semelhantes e em perfeita sincronia com os meus. Não consigo pegá-la distraída em algum instante fugaz, onde possa denunciar alguma diferença. Repete meus gestos suavemente, compartilhando o momento como se fosse ela mesma, uma criatura real.

Olha para mim, como se conhecesse todos os cantos do meu ser, despindo-me diante do espelho.

Nessa cumplicidade silenciosa ficamos encantadas, minha imagem e eu. Um encanto do qual desconhecemos a causa e o efeito, mas são quase perceptíveis nossas idas e vindas por tempos imemoráveis e lidas pelo espaço sem fim.


...


“No vestíbulo há um espelho, que fielmente duplica as aparências”, escreveu Jorge Luís Borges em seu conto A Biblioteca de Babel, já quase tomado pela cegueira, mas inda dominado pelo seu gênio literário.

Babel é o homem, e é também o espelho. Babel é a réplica fundada em símbolos ocasionais, e é também a moça tomada de encanto no canto qualquer de um qualquer cômodo, moça prostrada diante de sua semelhança. A infantilidade perdida no olho do assombramento, no moinho da descoberta. O que restará ao homem ante o vazio de se saber? Pode o homem conhecer sua Babel completa?

Borges fuça, dizendo: “Os homens costumam inferir desse espelho que a Biblioteca não é infinita (se o fosse realmente, para que essa duplicação ilusória?)”.

A Biblioteca é o mundo, e é também Babel. A rosa doentia, maculada pela nódoa da história. A Biblioteca é o sentimento dos extensos processos e das ininteligíveis relações. A Biblioteca é a vida, e é também o homem, o experimento.

A moça do espelho, distantemente perdida, perdidamente distante, atravessa o corredor do decrépito aposento. Tão jovem e já tão vítima. Punhal que dilacera é o saber. Adaga que perfura o fundo, fundo, é o saber-se. Sabre sem governo, máquina de guerra. A bomba que extravasa. Até onde o homem sabe? Até quando o homem saberá que sabe?

A moça, distante e perdida, agora destece o tecido das estantes. Livros que voam, livros que planam, livros que tombam. Outros que dançam. Será mesmo o chão o limite? Quem garante que tudo não passa de ilusão? Onde a fronteira? A menina estende o braço iradamente, torna-o rijo e ataca as enciclopédias. Lombadas feridas, brochuras brocham, alfarrábios esfarelam-se, catataus viram folhas inermes, o ar é tomado pelo pó. Há um embate entre o real e o imaginário. A Babel inicia. A Biblioteca é um corpo sólido, matéria de convulsões.

Adiantará o corte na face? E o que vem de dentro, não trucida? Não esquarteja a pelanca do homem? Adiantará a dúvida? Borges responde: “Prefiro sonhar que as superfícies polidas representam e prometem o infinito...” A moça corre, não pára. Difícil demais o convívio com o saber-se. Difícil demais a dor de ser...



Exercício de diálogo textual. Agradeço a Elizabeth (http://mundodebeth.blog.terra.com/) por permitir a feitura dessa "conversa" a partir de seu texto, intitulado "Espelho, espelho meu!!!". Usei excertos do conto "A Biblioteca de Babel", do escritor argentino Jorge Luís Borges, que consta no livro "Ficções".

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