quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Quando sublimam as deidades


Por Germano Xavier

"Menos pela cicatriz deixada, uma feridantiga mede-se mais exatamente pela dor que provocou, e para sempre perdeu-se no momento em que cessou de doer, embora lateje louca nos dias de chuva."
(Caio Fernando Abreu)

Como eu, parece triste o céu azul, derramado numa tristeza partida. Parece que ele vai sem ir, dormido numa angústia que se nubla. Perdendo-se no trânsito de nossas idas até quando não. Imótuo, preso numa lentidão sem asas, sobre uma fronha de algodão, rumado no vagão do destino, fazendo-me do hoje um dia de ficar. O mundo permanecendo inteiro na gente, unido em planos de fuga, permanecendo com. Minha febre passando e meu coração que não se cansa de amar. Meu velho coração cansado de amar. Há sempre um dragão cuspindo fogo por dentro da gente. E mesmo que ele esteja adormecido sobre a cama dos pulmões, arremessando-nos, doado em colossos, ser de quem que somos, ainda vamos antes, durante e depois. O que há em meu quarto? O que há em nosso quarto agora? E você me diz de uma cortina a meio corte, permissiva, entregue ao resto de luz que teima entrando, fodendo o parco escuro já adentrado no recinto em mofo. Livros serpenteando, fila de dominós, objetos nada mais que objetos, penteando os cabelos das estantes, parecendo marchar para a mais verdadeira história sobre nadas. Uma máquina de escrever descansando pesada, preguiçosa de inutilidades. O coração dela batendo já sem força, máquina de amar a peste. Existem horas mortas para a escrita, como para o ódio, como para o amor. Adianta ser sinal e vida se do horizonte não enxergamos nada? Amor é morrer olhando. Sincero, escrevendo o homem como quem se castiga, elaborando um epitáfio verborrágico, plástico, cadenciado num acorde só, seco, ele segue. Porque qualquer um tem seu flagelo, carrega. Qualquer um simplesmente sofre. Não podemos mais. Somos a regra, o medo, a vontade com câimbra. Contra somos fracos, gigantes. Há sempre um homem triste, fumando a fumaça de um charuto azedo, debruçado numa bengala em madeira nobre trabalhado artesanalmente, pintado sem cor, doído na coluna vertebral da vida, linha por onde passa a alma. E tudo aquilo, tudo, aquilo de sonhar sonhos, aquilo que vinha do beijo da namorada, da palavra do pai, no conselho depois da briga, da derrota, fracassando em nós mesmos, porque aprendemos que não somos como. Esvaindo aquilo de correr atrás do prejuízo, de marcar o novo liame para o próximo golpe, porque o jogo anda terminando, indo sem pena, deixando quem fica para trás, naufragado nas reminiscências dos dias atrozes. Como uma força assassina, estando tudo em nós armado em divisórias, o homem que existe não consegue. O homem que existe não consegue burlar a alfândega dos amadores. O homem que existe busca a imitação dos que guerreiam e as espadas fingem não poder. O homem que existe é também muitos outros, cruzados e esquecidos braços que não conseguem o aperto. O homem, solitário no quarto de ar morto, é o mesmo dono de toda a matéria explosiva. O homem que existe, sugando o resto da vida, mirrada agitação de joaninhas, o pouco do muito que sobrou. Escorado no espaldar da cadeira soturna e claudicante, segurando arma qualquer de matar qualquer indício de qualquer amor qualquer. O homem que existe, a poucos passos do preciso alimento, sentido por pescoços sufocados, casa e a bomba que tomba. O homem que existe, amparado por um tempo de ferro retorcido, sem como nem. O homem que existe dentro de um quarto absorvido pelo mistério da fragilidade, pelo segredo da impossibilidade. Morrer olhando a própria morte, a própria desgraça, o próprio fim. Sofrer como sofre um Narciso, posto em observação do belo, da estética da perfeição, vislumbrado vendo a compleição do eterno, do imortal apego dos sentidos. O homem pisando o chão que escorrega, que rui, desabando, apático chão de se pisar caminhos, oceano que trai. A festa mais ordinária, a luta mais desleal, o império mais contraditório. Como eu, fincado sem dó no rabo da miséria, o homem parente do que mendiga pão, vinho, cigarro, puta, puta, puta. Comprar o veneno do prazer na avenida vazia, lua de impotenciar sentimentos, gesto de ilusão e ferida e sangue em caldos. Permanece o homem, e ele anda sem saber sua história de pregações. Como eu, vestido contra o frio, armadura vencida, o lustre não se move e a tarde tão noite insiste. E é como se não mais existissem em mim minhas mãos, meus dedos, meus arrepios. Ela dorme. Do meu lado a mulher dorme e espera a próxima vez. Olhando, morro de amar a falta que a gente sempre traz na volta, morro de amar o precário coração tão gasto e tão de novo amo sem fim. Logo mais as bolsas estarão fechadas, costuradas sob o espectro de uma sombra que vagará pelo quarto durante toda uma vida e durante toda uma rotina de mudanças. Logo mais a noite virá, noite claudicante, trôpega, manca, noite doente. Noite vírus, malária, cólera, noite nociva, sem. E o homem, com aquele eterno dragão cuspindo a labareda vermelha, por dentro, por fora, andando pelo corredor vazio, sem os pequeninos pés brancos, sem o rastejo da sandália de couro, absorvente, sugando para sempre o som do silêncio. Logo mais será só dor e choro. Logo mais o homem que existe deixando de existir, e o tempo, perdido no terminal, despencando, grávido de liberdade, atirado no tatuado futuro desconhecido.

Um comentário:

Daniela Delias disse...

Não sei descrever o que sinto quando te leio. É um jorro. Um jorro de ternura e inspiração.

Beijo, G.