Por Germano Xavier
INTERSEMIOSE: A TRANSPOSIÇÃO MIDIÁTICA DA OBRA LITERÁRIA LISBELA E O PRISIONEIRO, DE OSMAN LINS, SOB O PRISMA DA ESCOLA DE FRANKFURT, DA INDÚSTRIA CULTURAL E DA CULTURA DE MASSA.
O cinema, quando comparado à literatura - e enquanto suporte de difusão midiática, sempre representou um campo de atuação por demais eficaz e, por que não dizer, mais simplificado que o literário. Quando os quesitos analisados dizem respeito à rapidez na transmissão das mensagens desejadas, maiores espectros de audiência atingidos em menor tempo e outros tantos aspectos, o cinema pula na frente da literatura e consegue facilmente abarcar um maior panorama de interferência dentro das sociedades.
A adaptação ou transposição de uma obra artística, seja ela qual for e em que estado esteja inicialmente, configura-se tarefa de conhecimento inerente à intersemiose, ramo moderno da ciência dos signos que se detêm na averiguação das conjunções formais e no cruzamento de linguagens, códigos, meios e recursos de diferentes suportes de mídia. Exemplo clássico de intersemioticidade ocorre quando um diretor cinematográfico propõe-se a adaptar para a telona uma obra pertencente primariamente ao universo da literatura.
A interpenetração de um meio a outro, de uma linguagem a outra, de um tipo de código exclusivo num outro código produz uma nova interface de sentidos dentro da esfera de atuação do novo produto que se está a produzir, onde fica por demais perceptível a fomentação de uma cadeia flutuante de significados, ora desfigurando a estrutura da obra original – positiva ou negativamente – ora interessando-se apenas em pôr em novas roupagens uma idéia já estruturada.
A obra Lisbela e o Prisioneiro, originalmente um texto teatral escrito pelo escritor pernambucano Osman Lins, autor dos clássicos Avalovara e O fiel e a Pedra, recentemente adaptada para o cinema pelo diretor Guel Arraes, é um exemplo típico do quão polêmico é a questão da tradução midiática, haja vista que é evidente a interferência do diretor no enredo escrito por Osman Lins.
A fusão de tais códigos gera inúmeras variantes, fragmenta e pulveriza idéias, problematiza a questão do poder da liberdade criativa, instaura a multiplicação de visões, o que termina por alicerçar debates de ordem científica que podem buscar argumentos e referências no pensamento crítico desenvolvido pela Escola de Frankfurt, principalmente nas vozes dos filósofos Theodor W. Adorno e Walter Benjamin, até as correntes mais atuais das filosofias do pensamento.
No filme, lançado no ano de 2003, achar que tudo não passa de uma mera ilustração da obra de Osman Lins é cair na tentação do olhar insensível e infundado. Até porque lá estão os personagens, as cenas, a demarcação dos eventos, o traço marcante da literatura regional nordestina, entre tantos outros aspectos que poderiam ser aqui destacados. Porém, o caráter de experimentação do filme extrapola qualquer intenção de aproximação literal para com o livro.
A mudança de algumas passagens do livro no filme, a inversão de outras, a antecipação de eventos e a proposta do jogo metalingüístico no qual a principal personagem feminina – a própria Lisbela – “sonha” e conta uma história de amor ambientada no cinema é, talvez, o maior trunfo da obra fílmica. Sendo assim, é fácil aferir que fidelidade ao texto original não é um objetivo-caracterísitica essencial do filme.
Seguindo este raciocínio, pode-se dizer que Arraes fez o que a cineasta María Novaro preconizou durante toda sua vida, ou seja, um cinema de mostra, puro e simplesmente de exposição, que elaborasse sua própria linguagem, sem demonstrar absolutamente nada, no intuito de não procurar elaborar paralelos com os gêneros da literatura.
A nova ordem mundial de organização das relações humanas, o vigor do modo de produção capitalista, baseado estritamente no capital e na incidência de políticas neoliberais nos meandros das sociedades, fizeram com que as formas de expressão artísticas também se adaptassem a este novo e complexo mundo, agora mais automatizado e alígero. A origem do conceito de indústria cultural, muito discutido pelos filósofos frankfurtianos, ocorreu através da sedimentação dos moldes do capitalismo, fato que proporcionou com que a cultura passasse a ser vista como uma mercadoria ou um produto comercializável.
O cinema moderno está – e cada vez mais – atrelado a este panorama de base financeira, direcionado muitas vezes para a obtenção do lucro imediato e tendo como base os padrões de imagem cultural. Segundo Horkheimer e Adorno, o mundo moderno sedimentou a perspectiva de que todos os indivíduos são livres ou capazes de se libertar de qualquer tipo de amarra, e dentro deste prisma a arte pega carona. Walter Benjamim, por sua vez, foi um dos filósofos que mais investigou a questão da arte no tempo da era da técnica. Foi um dos que mais repudiaram a maneira com que as artes tradicionais agiam, tornando-se um exímio defensor das vanguardas.
O caricatural, o pitoresco, o idiota, o banal e o lugar-comum são alguns dos traços da arte que alcançaram a vida plena neste novo espaço de atuação. Antigos valores foram postos à prova e, muitas vezes, deixados ao mofo do abandono prático. A vivência destes novos modelos de organização, tanto sociais quanto artísticos, produziram, por fim, uma nova estética da arte, agora nutrindo-se de uma maleabilidade demasiado imiscuída à velocidade dos acontecimentos mundano-pessoais.
Para Walter Benjamin, as novas tecnologias de comunicação – e o cinema é uma delas - possuem por princípio básico o ideal de reprodutividade. Esta reprodução artístico-estética, por sua vez, enseja experiências e manifestações manipuláveis também quando o ambiente é o extra-estético. Bom ou ruim, só o espectador pode definir. Para os jogadores, pouco importa se o produto final é rico ou pobre em “boa” cultura. Importa vender, ser visto, ser descartado para ser novamente re-produzido.
O filme Lisbela e o Prisioneiro, visto sob tal viés, apenas simboliza um ponto no meio de toda esta avalanche moderno-artística de conseqüências ainda indefiníveis. O trabalho de síntese ao qual a obra de Osman Lins passou evidencia o projeto crítico-analítico desenvolvido pela Escola de Frankfurt, elevando o grau de participação de que os meios técnicos, como a literatura e o cinema, possuem enquanto aparelhos de potenciação democrática.
Todavia, não findam as incertezas diante dos benefícios ou malefícios da nova ordem vigente, mormente perante os rumores de que a pretendida extensão democrática cultural proposta pelos meios comunicativos não passem apenas de mais um recurso exploratório de finalidades capitalistas.
O processo de tradução midiática, como o ocorrido com o livro Lisbela e o Prisioneiro, também impulsiona a reflexão acerca de que tal procedimento invade o nível de subordinação da consciência humana em detrimento da racionalidade capitalista, o que pode ser muito prejudicial quando observados numa temporalidade mais extensa. Sofre a obra que deu origem a tudo? Sofre o leitor? Ganha o espectador? Quem sai lucrando? Quem perde? Quem ousa responder?
Um comentário:
Amigo Germano, há uma tendência geral de considerar a obra literária sempre superior ao filme e também de considerar que o filme deve obrigatoriamente ser fiel ao texto original.
Vale ressaltar que, em Literatura Comparada, a comparação não é feita somente entre textos literários; compara-se também o texto literário com outras artes, como o cinema, por exemplo. as relações entre literatura e cinema são múltiplas e complexas, caracterizadas por uma forte intertextualidade. Uma das problemáticas dessa relação está na visão preconceituosa que o cinema sofre ao trazer a transposição de uma obra literária.No entanto, esse é um falso problema na minha opinião.se o cinema tem dificuldade em fazer determinadas coisas que a literatura faz, a literatura também não consegue realizar o que um filme faz.Diante dessa afirmação e várias outras feitas , pode-se constatar que uma arte não é superior a outra. Portanto, a literatura não é superior ao cinema e este não tem obrigação de seguir o texto original.
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