terça-feira, 16 de agosto de 2011

O Auto da Barca do Inferno (uma impressão)


Por Germano Xavier

A linguagem, como para qualquer indivíduo que se preste à arte da literatura ou, ainda, às artes que dependem do poder e da representatividade da palavra, é o veículo que Gil Vicente melhor explora para extrair efeitos que vão do cômico até o poético.

Escrita em verso, assim como todas as suas demais obras - exceto os poemas que fez para o “Cancioneiro Geral”-, a peça “O Auto da Barca do Inferno” incorpora trocadilhos, ditos populares e expressões típicas de cada classe social. O arcabouço cênico vicentino, em especial nessa obra, apresenta enredo muito simples.

Um devido reflexo da diversidade dos tempos e do transporte da Idade Média para o período do Renascimento, “O Auto da Barca do Inferno” realiza um balanço de um estágio histórico onde as hierarquias e a organização social eram regidas por normas e leis inflexíveis, por ora invioláveis, para uma nova ordem onde se começa a subverter o instituído, a criticá-lo.

Primeiro texto da trilogia das “Barcas”, “O Auto da Barca do Inferno”, escrita em 1517, é uma alegoria que tem como pano de fundo o drama humano. Uma moralidade farsante; amostra de uma sociedade que lida com estereótipos e modelos. O comportamento humano é o alvo a ser atingido, pois é o homem o réu, a entidade que está sob julgamento.

Gil Vicente analisa o espectro lisboeta com os olhos de quem deseja investigar as manchas e a podridão dos segmentos sociais e dos estabelecimentos portugueses e retirar de todo o espaço corrupto e não corrupto a fenda para o progresso de um povo, ou expôr uma ferida aberta pelos anos de devassa e falta de apreço pelo que é ou se imagina humano.

Sentimentos e percepções antitéticas, características do homem e da sociedade medieval, perpassam todo o enredo do auto, levando o leitor ao êxtase no mesmo instante em que ele próprio se enxerga no espelho do júri criado pelo teatrólogo e também sente-se medido pelas forças antagônicas do Bem e do Mal.

Um clássico da literatura portuguesa, simplesmente, tão antigo quanto os desmandos e essa nossa complexa mania de construção de caráteres díspares perante as circunstâncias da vida. Em resumo, um elogio à maleabilidade do fantoche-Homem.

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