Por Germano Xavier
O seu Cavalvanti jurou, certa vez, que jamais mentiria para alguém. Melhor explicar direito. Este "alguém" pode, sem que ocorra um desajuste contextual, ser substituído pelo termo "leitor". Então, vejamos. Colocando os devidos "pingos nos is", a frase mais coerente seria essa: "O seu Cavalcanti jurou, certa vez, que jamais mentiria para um leitor, ou melhor, para um de seus leitores". É preciso enfatizar, aqui, o número maior que uma unidade. O seu Cavalcanti estava mais para um diletante, apaixonado que era pelo fazer literário, que para um jornalista, ofício que cultivava desde que conseguira uma vaga na redação do maior periódico de sua cidade, o jornal "A verdade". Tirando os naturais descompassos que todo ser humano sofre durante sua existência, esse era o maior e mais dorido dilema na vida do seu Cavalcanti, o de "ser ou não ser um jornalista?!" ou "ser ou não ser um literato?!". Para ele, a coexistência dos dois modelos, o jornalístico e o literário, era impossível, ou, na melhor das hipóteses, pouco provável. Foi tanto que, durante todo esse período de dedicação ao fazer jornalístico, o seu Cavalcanti jamais ousou misturar "alhos com bugalhos". Sempre gostou de ver as coisas em seus devidos lugares, ocupando os seus devidos espaços. Introduzir o seu vasto sentimento de humanidade, adquirido somente com o advento da leitura de centenas de livros, no corpo de um artigo, reportagem ou qualquer que fosse o estilo da matéria, implicava numa prática de ordem amoral, infundada e, por vez, até pecaminosa. Isso porque, para seu Cavalcanti, as margens ficcionais, assim como as arestas da imaginação humanizada e verossímil fomentada nos campos verdes da literatura não poderiam e não deveriam conviver na sordidez do ambiente das "palavras inconsideradas", como diria o Florence Dravet, no sufocante universo da ordem lógica e sucinta, ou seja, na mecanicidade dos parágrafos germinados nas redações dos jornais. Seu Cavalcanti tinha pelos livros um amor bizantino e pela leitura uma verdadeira devoção. Hoje, nesse mundo veloz, em que a paciência é mais que uma dádiva - por sinal raríssima -, é muito difícil encontrar uma criatura tão "grande" como foi o seu Cavalcanti. Ele era de um tipo inesquecível, daqueles de boa retórica. Daqueles que, mesmo falando pouco, diziam muito. Mas o seu Cavalcanti não era muito de falar, gostava mesmo era de escrever. Quer saber quem era o seu Cavalcanti? Então leia seus escritos! Seu cavalcanti era uma espécie rara na classe dos jornalistas. Estava mais para uma peça de museu - não por causa de sua idade ou coisa parecida, mas sim pelo seu alto valor agregado. Uma relíquia. Pontual como um relógio suíço, saía de casa após ter lido as principais manchetes do dia nos principais impressos da cidade onde morava, e se dirigia à redação do "A Verdade" num gesto já quase automático. Não seria exagero dizer que se colocássemos um pano preto na altura dos seus olhos, ele, de tão acostumado ao percurso, facilmente chegaria ao seu destino de trabalho. Seu Cavalcanti fazia esse ritual sagrado sempre a pé. Era sempre o primeiro a chegar... muitas das vezes antecipava-se ao próprio porteiro, e também era dele os sons dos últimos passos do corredor daquele prédio. Para o seu Cavalcanti, a notícia assemelhava-se a uma pedra preciosa ainda não lapidada e que, assim sendo, precisava ser trabalhada com muito cuidado e esmero. O maior medo do seu Cavalcanti era de um dia ser preso. Este talvez fosse o seu fantasma mais azucrinante e perturbador. Durante todos esses anos de experiência, já tivera o infortúnio de presenciar o linchamento e a prisão de inúmeros colegas de profissão, sempre acusados de desrespeitarem os regimes políticos vigentes ou de estimularem no âmago do povo um sentimento de revolta contra a ordem governamental em exercício. Foi assim no período da Ditadura Militar, época em que perdera um de seus melhores amigos, o Juarez, que também era jornalista. O fato é que o seu Cavalcanti nunca havia sofrido sequer uma ameaça ou ordem de aprisionamento. E disso ele se vangloriava. Dizia que era porque nunca havia cometido uma inverdade ante o povo, que nunca escondera cartas no jogo da informação, que jamais difamara alguém sem merecimento, que jamais tivera a intenção de incomodar a dinâmica do mundo. O seu Cavalcanti era mesmo um jornalista especial. Tratava todos com muito carinho, sempre de sorriso no rosto e disposto a fazer tudo o que seu chefe mandava. Era complacente, e pensava que, utilizando-se daqueles modos, estaria dando um exemplo aos iniciados na carreira. Seu Cavalcanti não era nem tão velho assim, mas era o mais velho da casa. Certamente, sem divagar ou duvidar do assunto, seria ele a voz da experiência em todo aquele recinto de labor... Mas os outros preferiam não incomodar o seu Cavalcanti, aquela "pedra preciosa" totalmente intocável. A sala onde preparava seus textos (tinha preferência por escrever à mão, pois dizia ser mais natural e, para ele, os jornalistas deveriam ser e agir com a maior naturalidade possível) era personalizada, com paredes cor de mostarda e luz fosforescente. Ficava situada no fundo da repartição da editoria da qual fazia parte. E aquilo, para ele, era mais um fator de orgulho e satisfação interior. Achava que era ali, num canto mais reservado e distante, o local mais digno para que um jornalista-modelo como ele fosse livre o bastante para desempenhar o seu papel. O seu Cavalcanti era mesmo um jornalista de "bons olhos"... e põe bondade nisso. Das oito horas da matina até as seis da tarde, a literatura ficava em segundo plano na vida do seu Cavalcanti. Esse tempo era dedicado exclusivamente ao fazer jornalístico, ao retirar dos excessos, ao cortar das sobras, ao ceifar das imagens e sentimentos sobressalentes. Afinal de contas, esse era o trabalho do seu Cavalcanti e , mais do que isso, era o seu ganha-pão. E a ele devia todo o seu patrimônio, toda a sua situação razoável de vida até o prezado momento. Seu Cavalcanti era, antes de mais nada, um jornalista feliz. Não possuía motivos para ser macambúzio, cabisbaixo ou relutante. Sempre tivera o que quis, carro, casa, família e, principalmente, um nome na praça. O seu Cavalcanti era gente fina, "um jornalista à altura de seu tempo", assim diziam os moços de cabelos grisalhos nas diversas pracinhas e logradouros da localidade, jogadores eternos de dominó e gamão, seu fiéis leitores. Talvez os únicos leitores... Mas, pensando bem, do jeito que as coisas estão, não era de se espantar se víssemos um jovem entretido e com o olhar paralizado no justo espaço de uma matéria diária escrita pelo seu Cavalcanti. Os leitores estão cada vez mais obsoletos, ultrapassados. Estão sempre retornando aos antigos, não sabem cultivar a novidade, os novos escritores, os novos temas, as novas formas, os novos gritos. É certo que devemos procurar o passado, mas viver somente de seus frutos, sem ao menos conjeturar com o que nos é contemporâneo (do conjugar pós-moderno), é realmente um pecado capital, fonte de uma "des-fonte" intelectual indivudual que acaba sucateando a mente humana. É fato também: vivemos, apesar de toda essa transformação social, de maneira atrasada. Nossa nação é atrasada. Nosso povo é atrasado. Nossos leitores são atrasados. Não há desejo pelo novo. Seu Cavalcanti sempre foi um inovador. Mesmo quando a "onda" do lead norte-americano e, também, do surto das pirâmides invertidas tocaram as areias de sua orla, ele não se deixava influenciar. Era um típico e legítimo brasileiro, sempre com cartas sob a manga... Para tudo dava um jeito, um jeito que só ele sabia dar. Chegava a ser incrível. Só mesmo um gênio para fazer o que seu Cavalcanti fazia, ou melhor, só mesmo um gênio para sobreviver tanto tempo numa profissão tão dependente do tempo presente e das novas metodologias de trabalho, fazendo e e usando as mesmas palavras, redigindo as mesmas orações, justificando as mesmas idéias, as mesmas formas arcaicas dos tempos de outrora. Talvez o seu Cavalcanti fosse mesmo um jornalista a se considerar. Um marco em toda a história do periodismo. Os críticos e estudiosos ficavam estupefatos e aturdidos diante do caso... Não tinham respostas concernentes ao singular acontecimento, ou ao singular acometimento. A bem da verdade é que, entre o fazer jornalístico e o fazer literário, o seu Cavalcanti preferia ficar com o fazer irônico. O seu Cavalcanti era um jornalista feliz, estava sempre com um sorriso no rosto. Ria de tudo e de todos, sem distinção. O mesmo não se pode falar do seu Cavalcanti literato, porque isto, meu caro, é uma outra história...
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