domingo, 28 de agosto de 2011

Rua de passos


Por Germano Xavier

"Só os meus passos... Mas tão leves são
Que até parecem, pela madrugada,
Os da minha futura assombração."
(Mario Quintana, in A Rua dos Cataventos)


Eu saio por aí como quem não quer nada, e como quem quer tudo ao mesmo tempo. Percebo, tão logo desço as escadas do apartamento onde moro, que o mundo está repleto de coisas, umas mais desimportantes, outras sem as quais a vida seria apenas um estado ruim de sensações. Na minha rua, por exemplo, tem prédio de tamanhos equivalentes, uns semelhantes aos outros, encarrilhados a mentir uma aparente igualdade na condição humana. Tem também carros estacionados, muitos carros, pretos, cinzas, de cores diversas, de marcas variadas, cujos donos dormem ou fazem amor com suas mulheres ou, talvez, estejam pensando no dia de amanhã. Quando saio, assim sem nem mesmo avisar a mim mesmo, na verdade estou querendo vencer o tempo. Se ao menos eu conseguisse derrotá-lo uma vez, uma vezinha que fosse, miseravelmente uma vez, se ao menos eu sentisse dentro de mim o gostinho misterioso de tê-lo vencido por um segundo, um milésimo de segundo vendo-o desamparado aos meus pés pedindo socorro, implorando veementemente por clemência, tenho a impressão de que eu seria muito mais feliz. Felicidade é uma dessas coisas do mundo, uma coisa importante, sem a qual a vida seria apenas aquilo que disse antes: um estado ruim de sensações. Acabar com o tempo, no meu caso, seria estar mais perto da felicidade. Engana-se aquele que diz que existem mais de um tipo de felicidade, ignorando assim a natural gênese harmônica dos sorrisos. Vou dando passos para a frente e encontrando pessoas com as quais, talvez, nunca irei trocar uma palavra sequer durante toda a minha vida. Vejo meninos na pequena praça brincando de alguma coisa, até com coisas invisíveis e sinto, mesmo estando longe, que estão felizes. Moços e moças agrupados, sentados em bancos de concreto, cumprimentando-se com beijos e abraços entusiasmados. Outras mulheres limpam as entradas de suas casas, homens pregam em paredes algum tipo de aviso. Eles realizam suas tarefas e estão bem, enquanto eu passo com olhos firmes no azul celeste que aponta no fim do horizonte. Estou querendo apenas ser feliz, mas ser feliz sem fazer barulho é um jeito difícil de ser feliz. Às vezes o som da minha caminhada parece ser algo insuportável. É quando me desvio de mim, porque senão acabo surdo no fim da estrada. Quanto mais ando e perco para o tempo, mais a dor dos passos me invade a alma. É o nascedouro dos passos em falso. Todas as pessoas têm uma fonte de passos em falso dentro de si. É muito triste ter a sensação de andar em círculos, muito ruim vagar diante de um nada. E no meio do caminho, quando me bate a idéia de fracasso, mais um passo insisto a dar, agora não contra o tempo propriamente dito, mas contra minha fraqueza de pensar que estou na iminência de parar. Pois que ninguém é forte o bastante quando sente que perde sempre. Um dia tudo cai por sobre as costas e o peso implica na presença da morte, porque sair de casa é dar de cara com nossa mortalidade, tão indefectível. As crianças brincando nas pequenas praças são como espelhos estilhaçados, esparramados pelo chão de nossas casas, e mesmo se quiséssemos montar novamente o quebra-cabeça das coisas da vida, jamais conseguiríamos reformar a peça perfeita. E numa certa idade – idade da alma, que fique bem claro - o passado se transforma num emaranhado de poeira que não serve mais para absolutamente nada, senão para fazer volume. O presente? Ah, o presente é justamente o andar. O futuro, como diz o outro, só a deus pertence. Eu saio em busca do meu presente - e pensar que tanto tempo errei saindo em busca do meu passado, tanto tempo jogado fora à procura de um futuro mais agradável para mim. Um dia eu serei o futuro, disso tenho certeza, assim como certo é que aumentarei meu coeficiente de passados. Só o presente é que dispensa embornais. Por isso ele é assim, silencioso, quase não incomoda, não ocupa espaço. Por isso ele sabe tanto passar despercebido, até mesmo para ele próprio. Ele é tão fluido e escorregadio que, colocado diante dos nossos olhos, sublima-se com extrema rapidez. O tempo é o presente, o agora. O agora é o que olho quando caminho. O que perco de vista tanto pode fazer parte de meu passado como do meu futuro, isso só o ciclo da vida me dirá. Da mesma forma um dia posso precisar ouvir a voz daquela pessoa até então estranha que passou por mim logo quando comecei a descer as escadas do prédio. Porém, o mais importante de tudo é que em minha rua há uma rua completamente desconhecida, cujas esquinas me afligem o coração, cujos becos me desafiam o medo, cujos transeuntes me cobrem de interrogações, cujas calçadas me avisam sobre as pedras de se tropeçar, cujos obstáculos me fazem ir pensando nos melhores saltos, cujas luzes clareiam apenas o básico, cujos sentidos me são depositados na palma da mão, como feijões mágicos, restando-me somente escolher a direção do terreno onde plantarei os grãos de minha saída, ou seja, de minha definitiva entrada.

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