Por Germano Xavier
Era sempre um dia alegre e de muita expectativa quando o ano novo despontava às nossas vistas. Aliás, a espera vesperal por aquela tradicional viagem chegava ao seio de nossa família como uma caixa de foguetes a estourar traques de alegria. Nunca fora tão bom deixar a cidade que suportava, o ano inteiro, os pesos do corpo e da alma. Era um tempo de visitas e revisitações a um passado-presente não muito distante. E era, também, a chance que o meu pai tinha de rever os seus parentes e irmãos, que viviam entre a seca nordestina e a criação de galináceos para o abate esporádico e tradicional.
O destino era o de sempre, um lugar chamado São Bento do Una, cidade de médio porte do Agreste pernambucano, surgida lá pelos meados de 1825 e elevada à categoria de cidade em 08 de junho de 1900. Um lugar que me remonta peças de um quebra-cabeça feito de estripulias infantes, lagartixas mortas a balas de chumbinho oriundas da espingarda de pressão dos primos Anderson e Cleiton, este o maior atirador dos quatro - o D’Artagnan e, nós, os Três Mosqueteiros, parafraseando o clássico de Alexandre Dumas(Pai). Isso a considerar, também, que meu irmão Gustavo fazia parte do quarteto assassino de pequenos répteis naquelas tardes ensolaradas de prazer e risos felizes.
Lembro como hoje a combustão interna que me atacava sempre que ouvia alguém lá em casa fazer, assim sem muito alarde e a qualquer hora do dia, uma espécie de contagem regressiva para a nossa partida.
- Faltam dois dias - alguém sempre lembrava.
- É amanhã, sairemos ainda de madrugada - a voz do pai direcionando vontades e esperanças.
Na época, meu pai contava com o Ford Del Rey de Luisinho, mecânico da cidade vizinha de Canarana-BA, carro grande e espaçoso, sempre emprestado para uma viagem que, por vezes, chegava a durar um mês.
O dia que tardava a vir, o dia que vinha...
Tudo escuro ainda na Iraquara de madrugadas frias, acostumada com a gelidez do ar que namora o alto das serranias, e uma família de malas justapostas no porta-malas de um carro acinzentado. As portas da casa trancadas, algumas luzes acesas para mentir presenças, o coração saltitando e a oração clássica ensinada por minha mãe:
“Desta casa vou saindo
nesta estrada vou entrando
com Jesus no meu caminho
e Nossa Senhora me acompanhando”.
Éramos quatro signos de um só desejo: viajar.
Um último aceno para a nossa casa na rua Tito Luna Freire, para o velho posto de gasolina na entrada da pacata Iraquara, um estalido sentimental de “Até breve, se Deus quiser!”, uma rota longa de aproximadamente 1.200 quilômetros pela frente, roteiro quase sempre variado pelo motorista-mor, meu pai. Era quase sempre assim, íamos por uma estrada, voltávamos por outra. E grande porção da Chapada Diamantina lentamente ia ficando para trás se olhássemos pelos retrovisores. E assim, num misto de apego ao que ficava e querença por velhas novidades, tocávamos a ir em frente.
Primeiras cidades ultrapassadas num rojão de 90 quilômetros por hora, ainda com o sol bocejando seus primeiros raios. Souto Soares, Cafarnaum, a frienta Morro do Chapéu, local de parar para apreciar os macaquinhos do saudoso restaurante. Pé na estrada novamente, e logo a “Terra do Ouro” Jacobina, porção piemonte da ilustre Chapada. Mais um pouco à frente, despontava Senhor do Bonfim - de um bom fim inicial, deveras. O pé calmo de meu pai ainda friccionando o acelerador do sempre ajustadinho automóvel e, já sem demora, 120 mil metros depois, surgia o símbolo maior de uma viagem divertida e indelével.
Era a cidade de Juazeiro, namorado de Petrolina, mulher mais moça.
Pronto! A maior das expectativas: atravessar a ponte Presidente Dutra, aquela coisa linda que nos fazia flutuar por sobre um rio São Francisco tão maravilhosamente colorido de um verdazul cintilante, cor de êxtase e frenesi - só lembrando que quem fazia o papel de guia turístico era o meu pai, sempre revelando nomes e histórias curtas dos lugares por onde passávamos. Eis a primeira impressão deste lugar que tenho salvaguardado em minha memória.
Duas cidades enamoradas, separadas por um vale de águas caudalosas e perenes, manancial de identidades e certezas de um povo que, no mínimo, devia viver sorrindo, tamanha a sorte de povoar uma localidade tão singular.
Aqui estaciono a viagem e, também, o itinerário deste texto, como de praxe fazia meu pai no posto de gasolina, já na saída de Petrolina. Parada para o almoço. Cheguei ao ponto onde queria.
Não suspeitava eu que, alguns anos mais tarde, de Iraquara viria a morar nesta cidade baiana, agora um estudante de Jornalismo recém-chegado à terra das instigantes carrancas, protetoras dos pescadores e dos homens fluviais. Confesso que Juazeiro era mais bonita e apaixonante na minha infância-adolescência, quando rapidamente perscrutava seus contornos e seus flancos coloridos. Do mesmo modo, acerco-me da mesma idéia e confirmo as fantasias diminuídas dos meus olhos quando nestes tempos vindouros retorno à cidade que me viu nascer.
Hoje, anos após desembarcar de um ônibus da viação Guanabara, que rumava à capital cearense como parada final, Juazeiro não passa de uma atriz coadjuvante, desbotada pela sua violenta e paradoxal paisagem social (fato ainda mais evidente do outro lado do rio), enegrecida por suas idiossincrasias bestiais de fins de semana, calejada por um povo “coberto de lama”, amarrado a partidos políticos e homens demagogos, doente de dor identitária ferida pela evolução das coisas.
Juazeiro, e também Petrolina, onde outrora fiz residência, são hoje apenas suportes para uma vida pacata de mais “um rapaz latino-americano, sem dinheiro no banco, sem parentes importantes e vindo do interior” - só para lembrar o cantor cearense Belchior, do interior do estado da Bahia, centro da Chapada.
Não há mais aquele cheiro impregnado de mistério nem o sabor de uma desconhecida essência corporal, o que, querendo ou não, minha Iraquara aprendeu a preservar, ainda que perdida em intensidades. Esvaiu-se a grandeza e a imponência dos arranha-céus presentes em ambos os rebordos, hoje meramente prédios cor de tisne, carceragens humanas.
Perdeu-se, tudo, ou quase tudo, a magia das sereias do rio, o imaginário mítico que eu mesmo construía ante o abisso das águas, a candente chama da emoção do atravessar a ponte - hoje rotina, a esfera radiosa de um local que, para mim, era povoado por deuses, titãs, ninfas, musas, entidades ultramarinas, heróis mil de um mundo que era só meu. E que, infelizmente, não o é mais. O que ainda restou, e o que ainda restará, eu sei, é somente este ver bravio de um povo atarrafador de sorrisos, de uma gente pescadora de sonhos, iguais àquela que emerge dos solos iraquarenses. Apenas...