terça-feira, 24 de março de 2009

Notas sobre a leitura no mundo




Por Germano Xavier



A expansão avassaladora do Império Romano foi, entre outros fatores, um dos principais motivos para o desenvolvimento de uma cultura de leitura entre os indivíduos do mundo antigo e, posteriormente, em todas as épocas históricas vindouras. O Latim, língua que abarcou e agregou todas as “ferramentas” comunicativas e toda a produção de conhecimento da época, também representou uma forte arma para o progresso da prática da leitura naquela época. Todos queriam “beber” dessa fonte, pois era a partir dela que os indivíduos poderiam figurar em melhores condições sociais dentro do próprio contexto social em que viviam. Foi, também, com o advento da Reforma Protestante, formulada e praticada por nomes como Lutero e Calvino, que textos, antes considerados sagrados e extremamente sigilosos, vieram à tona, fato que acabou incentivando muitos leitores a desempenharem suas respectivas funções. Após este momento, a discussão sobre os relatos e passagens bíblicas começou a fazer parte do cotidiano das pessoas. Outro fato que ajudou a proliferação do hábito da leitura foi justamente a invenção da imprensa, em meados do século XV, pelo alemão Gutemberg, um dos maiores responsáveis pela popularização do objeto livro no mundo e, também, quem ajudou a lançar as premissas básicas e materiais para uma moderna e dinâmica economia baseada no conhecimento, assim como na disseminação da aprendizagem de proporção de massa. No Brasil, um pouco antes da promulgação do regime republicano, grande parte da população, principalmente a dos grandes centros urbanos, já tinham o conhecimento de publicações oficiais, como as vindas da Imprensa Régia e também por conta dos pasquins, folhetos de cunho revolucionário e crítico que circulavam livremente e/ou clandestinamente por diversos setores da sociedade. Pouco depois, a implantação de um sistema de ensino regular tornou-se no maior objeto para favorecimento da leitura em nosso país, fato bastante discutível nos dias de hoje. A partir de sua fundamentação, a escola passou a exercer função básica na construção de um país de leitores, o que, de fato, ainda é muito precário e de proporções diminutas se comparado a países do primeiro mundo. Claro, tudo isso antes da popularização da rede internacional de computadores: a internet. Daí para frente, é uma outra história.


quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Parada



Por Germano Xavier



para Maria Iraildes Pimenta


ressequidas venezianas de alma,
olhos pálidos como folhas de outono,
desmaiam os ciclopes reticentes
no escuro apenas.

ver o verdor pesaroso de não ver o verde
das relvas sem selvas, ter uma fronha
encobrindo o branco e o preto,
e por que agir insipidamente
a favor de uma vontade mórbida,
íris filtrada na dor, nesta humanidade doente?

se não enxerga os acimas,
teima a vista nos brilhos sem nome,
que são de lá os feitiços das medusas prementes.


* Imagem: Arquivo Próprio

sábado, 24 de janeiro de 2009

As Iraquaras


Por Germano Xavier



Em palavras, um olhar sobre um documentário da TVE

Iraquara não é só pedra, terra vermelha, grotões e falésias. É terra rica, de povo misturado com muitas histórias e causos para contar. Iraquara é a pamonheira que vende de casa em casa, no bocapil artesanal, seu produto de milho. É a cortina de rochas e a vegetação verde que recebeu seu primeiro habitante por volta de 12 mil anos atrás. É, literalmente, o coração da Chapada Diamantina.

É o incontável número de garimpos, que depois deram origem aos seus diversos povoados. É a famosa Estrada Real, caminho onde os boiadeiros, tropeiros e comerciantes cruzavam rotineiramente, que ia de Jacobina (norte) até a cidade de Rio de Contas (sul), passando por Iraquara. É o século XIX de tantos diamantes e ouro “interminável”.

Ah, quantas cidades maravilhosas em uma só! Quantas Iraquaras em uma Iraquara apenas! Lugar que é a Parnaíba, que em Tupi significa “local de muitas ilhas”, hoje Iraporanga (“Pote de mel”, em Tupi). Reza a lenda que a vila de Parnaíba, como era conhecida antigamente, ficava onde atualmente existe uma lagoa coberta por taboas, uma espécie de planta aquática. Descoberta por volta dos anos de 1755 ou 1760, quando os bandeirantes por lá estiveram – deixaram até um facão com a inscrição “Parnaíba” em sua lâmina – o principal povoado iraquarense também nasceu por acaso.

Certa feita, o povo saiu da vila antiga para a novena de Santo Antônio. Chegando lá, foram surpreendidos por uma chuva bastante forte que alagou todos os engenhos, casas, plantações de cana, chácaras. Tudo tinha virado lagoa. Assim, tiveram de ficar nas proximidades da igrejinha, que ficava mais afastada da parte afetada pela tempestade. Todos perderam tudo que tinham. Todavia, fizeram daquele episódio um recomeço em suas histórias e acabaram construindo tudo novamente.

Iraporanga que hoje é a morada do sanfoneiro Hugo Luna, que canta a magia do lugarejo nos versos:

“A vila de Parnaíba
Devolve a cada criatura
Um pouco de sua criança
Um mistério de alma pura

Sua tarde fria e quieta
Abriga mil borboletas...”

Iraquara é também a Iraporanga da senhora Vanderlina Vieira, ou simplesmente Dona Vanda. Mulher antiga que considera todo mundo parente, que quando vê uma pessoa de fora já chama para tomar um cafezinho e que diz: “O povo de São Paulo pergunta logo se eu sou da Bahia. E eu respondo que sim, com certeza. E da Parnaíba!”

Iraquara que é o Esconso, as lindas cachoeiras do Riacho do Mel – ah, inesquecível Cachoeira do Mel! -, terra propícia ao turismo de contemplação. Iraquara que é a Água de Rega (foi assim batizada por ter muitas terras irrigadas), duas vezes invadida pela Coluna Prestes, um agrupamento de cerca de 4 mil homens, liderados por Luís Carlos Prestes, que se deslocou por todo o Brasil manifestando-se contra o então presidente Arthur Bernardes – na Bahia, os integrantes da Coluna Prestes ficaram conhecidos como “Revoltosos”.

Terra minha que também é a terra de “seu” Lau (Claudiano de Souza), que até hoje mostra os buracos nas janelas, oriundos das balas atiradas pelos “revoltosos”. Terra de “Liozão” (Leopoldo Costa), contador de histórias e homem que diz já ter visto lobisomens e sombras estranhas dentro das grutas.

Iraquara de cozinha sui generis, do famoso godó de banana, do cortadinho de palma, da malamba. Iraquara da cachaça orgânica, do Pedro José de Araújo, mais conhecido como “Dr. Xarope”, que há 30 anos, e no mesmo local, vende suas folhas e raízes especiais para todo tipo de moléstia. Aí vai a lista: jatobá, catuaba, pau de resposta, nó de cachorro, jatobá roxo, Dom Bernardo, carumbinha, guabiraba, capina seca, canhanhinha, cipó-cabeludo, quebra-facão, pistola-de-quati, espinheira santa, jarrinha...

E quem por lá passa, recebe a advertência:

“O homem quando envelhece
O olho enverdece
A barriga cresce
O reumatismo aparece
A câimbra desce
A perna amolece
A barba embranquece
A vista escurece
A velha oferece
E o velho agradece”

Ah, Iraquara feita de magia! Que é o artesanato feito na pedra ardósia, na palha seca, na madeira. Iraquara do tradicional Pau-de-Fita, dos Ternos de Reis - manifestação popular que presta homenagem aos Reis Magos. Que adentram as casas em cantoria bonita:

“Oi de casa!
Oi de fora!
Oi de casa!
Oi de fora!
Maria, vai ver quem é!
Maria, vai ver quem é!
Somos cantadores de Reis.
Somos cantadores de Reis.
Quem mandou foi São José!
Quem mandou foi São José!”

Aí o dono da casa oferece muita bebida e comida e a festança não tem hora para terminar...

Iraquara que fez o compositor Carlos Pita escrever os seguintes versos:

“Ir pra Iraquara e querer ficar
Deixar o coração solto no vento
Montanhas, grutas, sentimentos
E o pensamento solto no ar

Flor de Água de Rega, Toca de Mel, terra vermelha
Lapa Doce, gruta de prazer
Viu, passarinho! Viu...
Viu, meu amor! Viu...

Passar na Parnaíba e escutar
As histórias que Liozão tem pra contar
De uma terra que um dia
Já foi mar.”

Sem mais palavras...


* Imagem: Arquivo pessoal.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Defectivo impessoal


Por Germano Xavier



Um idílico para um Tempo novo.



Eu, Ira, quaro.
Tu, Ira, quaras?
Ele, Ira, quara?
Nós, Ira, quaramo-nos?
Vós, Ira, até onde quarais?
Eles quararão, Ira?


* Imagem: Arquivo pessoal.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Da força de um canto



Por Germano Xavier



canta, canta, canta... e s'encanta
pois cantar, grande lugar
d'eloquência é sopro
da alma, efervescência
quando se tem esperança
tanta

quem não canta, alegria espanta
e vive eterno a conhecer o escuro
não sei se posso, meu canto impuro
é dança de copas: pobre planta

e é semente, que de mim germina
doença que me corrói, maltrata,
um sufoco escuso que não termina

que reluz como ouro, e não prata
o encanto é arte madura;
espelho de mágica visão
e cura


 Imagem retirada do Google.

Rafael e o mundo da cal



Por Germano Xavier



Baseado na história de Rafael Souza do Nascimento.


Rafael acordou feliz hoje, apesar da esteira nada confortável onde dorme todo dia. Do mesmo modo que está feliz, Rafael não suspeita do seu futuro nas próximas horas. Sempre foi assim, e para ele quase nada poderia soar como uma novidade. Só soube que não tinha pai nem mãe um dia desses, quando o dono da olaria o chamou num cantinho:

- Rafael, preciso lhe dizer uma coisa.
- Ué, então diz.
- É que ninguém nunca viu os seus pais.
- Como assim?
- Ninguém os conhece.
- Quer dizer que você não é o meu pai, que minha mãe não é a minha mãe?
- Não, Rafael, a Andira e eu não somos seus pais verdadeiros. Nós apenas criamos você...

Mas Rafael acordou feliz hoje, lembremos disso. E logo que amanheceu, ainda com pedaços de noite no céu, ele saiu de casa em direção à velha olaria. Rafael tem doze anos de idade e trabalha lá há mais de cinco. Já é bem experiente na arte de queimar pedra e fabricar a cal.

Mas como hoje é uma terça-feira, Rafael ficou com a tarefa de partir ao meio as grandes pedras que depois irão ser calcinadas no forno. É um trabalho muito perigoso, mas ele já está acostumado. Aprendeu tudo com seu pai, que não é o seu pai propriamente dito, e também com o Jorge, que um dia quase perdeu a visão porque uma lasca de pedra foi parar bem em seu olho direito. Até hoje sente dores e um inchaço crônico, mas ele sempre diz que está tudo bem.

Em Iraquara a fabricação de cal virgem e hidratada é uma tradição. Pela facilidade com que a rocha apropriada para este tipo de produção é encontrada no solo, tal labor é o ganha-pão de inúmeras famílias em todo o município. Mas é um ofício que, por diversos fatores, entre eles a falta de informação e de condições mínimas de segurança, rotineiramente deixa seqüelas eternas em quem mexe com o produto.

Andando pelas ruas da cidade, não é difícil se deparar com pessoas mutiladas de variadas formas, umas sem um dos braços, outras sem orelhas, com cicatrizes profundas... Isso quando não vêm a falecer no local. O risco é enorme porque há a manipulação da pólvora que, uma vez introduzida num orifício feito no centro da pedra, deve ser comprimida manualmente até conseguir ficar uma “massa” bem unida e uniforme. E é justamente nesse instante onde tudo pode acontecer.

Rafael está usando um short, um chinelo feito com a carcaça de um velho pneu e uma blusa branca bem surrada. Nunca usou um colete, um capacete de segurança, ou qualquer outro objeto para lhe proteger o corpo. Rafael simplesmente é o espelho dos outros que trabalham na olaria. Rafael está feliz, tem doze anos de idade e vai começar a estocar a pólvora na pedra.

Ele sabe que deve ser paciente e que deve bater o material bem lentamente, até tudo ficar bem juntinho. Só assim é que ele poderá fazer a ligação e, de longe, detonar todo o bloco rochoso.

Rafael começa a socar a pólvora.

O menino está curvado, com os joelhos genuflexionados tocando o barro da terra. Os outros operários estão nos seus afazeres, jogando as pedras no calor das lenhas. O cenário é rústico e silencioso. Ouve-se apenas o crepitar da madeira no fogo candente e alguns poucos balbucios.

Cerca de cinco minutos após começar a condensar a matéria inflamável, Rafael sente que está próximo de terminar. Restam poucas batidas. Da chaminé da olaria brota uma fumaça branca que colore o céu. Uma marmita já bem fria com carne moída e macarrão o espera em cima de um pequeno tamborete.

Rafael iça o martelo e a pinça para uma de suas derradeiras pancadas na pedra, agora já num misto de cuidado e temor quase totalmente agachado. É um arremesso suave, sutil, porém suficiente para provocar uma faísca dentro do orifício. Rafael sabe que não há o que fazer nessa hora, somente esperar.

Os outros acordam de suas quenturas ao ouvir o pipoco. O barulho chega a ser ensurdecedor quando escutado de perto.

Bummmm.

O céu se cobre de estilhaços. A enorme rocha está partida, fragmentada, remoída, como todos queriam. Rafael está caído no chão e muito sangue o rodeia. Percebe-se, mesmo ao longe, que falta alguma coisa no corpo de Rafael. E o tempo agora é tudo.

Rafael está sobre um colchão macio no leito do hospital da cidade. Rafael não vai dormir feliz.


* Imagem: Arquivo pessoal.

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

Meu pai, dono da fábrica de sorrisos



Por Germano Xavier



“De tudo, ficaram três coisas: a certeza de que ele estava sempre começando, a certeza de que era preciso continuar e a certeza de que seria interrompido antes de terminar. Fazer da interrupção um caminho novo. Fazer da queda um passo de dança, do medo uma escada, do sono uma ponte, da procura um encontro.”(Fernando Sabino)

“A interpretação somos nós que fazemos”, a boca rosada em febre dizendo. A pele branca coberta de pêlos coloridos em preto e branco. Foi dormir cedo. Ponderou o dia e o pôs na balança. O fiel devia estar compensado pelo peso das horas. Havia cadernetas espalhadas por toda a casa, principalmente sobre a mesa do consultório. Como havia a perene preocupação acerca dos fechamentos e dos ferrolhos. Gostava de tudo apertado, urdido, colhido, singrado, garrido. Não de deslizes. Um homem feito de descontinuidades e favores. Para ele, sempre existia o momento de reavaliar prioridades, mesmo que a vontade falasse mais alto algumas vezes, teimando. Era noite, ele tinha anos e estava de aniversário. O filho mais novo pensou a noite inteira em “qual presente?”. Procurou, procurou, procurou. No meio da procura, lembrou do tempo antigo, tempo antigo e eterno. Quis combinar algo com o tempo antigo, de quando pedia a benção para dormir lá pelas nove ou dez horas da noite. Era gostoso apertar a mão do pai. “Mão de quem ama”, lembrou. Na cabeça, aquele escarcéu. Queria dar tudo de presente, entregar o mundo inteiro, a alegria toda do mundo, a vida qualquer coisa assim de verdadeiro. “Filho precisa ser”, pensou. E lembrou de quando furava a parede da garagem para construir a rede da brincadeira de bola no ar. O irmão era maior e, por vezes, vivia em outro mundo. O mais novo fazia castelo modelando tijolinhos de barro molhado com caixinhas de fósforo por detrás da casa, quintal de mangueira que já não existe mais. Ele aprendendo a caminhar sozinho, amparado. O filho subia o pé e era como subir ao sonho. Nas costas, sempre a figura de proteção dele, dizendo “cuidado” sem privar da liberdade certa. Era amor e não era outra coisa. Emudeceu por um instante. Pensou “eu não seria nada se não fosse meu pai”. Ou quase nada, porque tinha a mãe também. Depois lembrou dele com aquela velha faquinha insubstituível modelando com mãos de deus a futura prótese, perto do jardim, raspando raspando raspando, construindo sorrisos de gente, colocando sorrisos na gentes, restaurando sorrisos perdidos, de gentes também perdidas, no meio das rosas e das plantinhas verdes da mãe. Era puro encanto. Aquelas sobrancelhas arqueadas, quase sem, diminutas, a calvície que sempre foi, o olho manso de quem tem o coração bom e a alma limpa, modelando com o foguinho de álcool, prudente, fingindo uma sisudez que era mais o liame de toda uma vida de sacrifícios para agora estar ali, todo de branco, direto do Pernambuco mais seco, mais sofrido e azedo, ostentando uma missão de honra e honestidade. “Meu pai é o maior homem do mundo”, o filho matutou. E olhava-o de longe, de perto, o tudo em nós que havia, o cheiro ocre dos produtos com nomes catastróficos misturado a alicates e brocas, um ar blasé atmosférico no fim da tarde, quase barroco, agudo, hora de fechar o engenho e tomar o banho merecido. Cirurgião Dentista de ofício, o velho era mesmo sábio em amar. Amava sempre quando ligava o chuveiro quente para o filho menor, dizendo mais uma vez “cuidado, use o chinelo”, para no outro dia se poder ir ao mercado fazer a feira e organizar produto por produto na hora da volta, rótulos bem visíveis, tudo muito organizado, tudo muito. Era mesmo um pai em excesso. Um pai que não conseguia ser pouco. Pai sem plágio. Amava no dia em que o escorpião picou a noite do pé branco sobre a Iraquara de lembranças. Ele dormindo e o filho mais novo pensando no presente do pai. Queria ser o autor do texto e resolveu e foi. Subverteu a ordem lógica das coisas e seguiu, pertinente, sabedor das hierarquias. Lugar de rei é lugar armado de uma beleza moral torcida em flor. O filho, crescendo e oblíquo, fingiu a discrição e quis a vulgaridade regrada a palavras. Pensou “não sei fazer outra coisa senão escrever”, e pensou mais um pouco. Não precisou de venenos, licores, cigarros. Foi o exemplo e espelho. “A gente aprende que, como o espinho, a pétala também fere”, com os seus botões, ensimesmado. O pai ensinou que a vida é vontade, que se precisa ir com garra, sem atropelar ninguém, e defendeu defendeu defendeu a cria. Não sabia ele que o filho já pedira muito aos céus a felicidade e a vida longa, que o filho já chorou muitas vezes com medo de qualquer coisa de mal, que o filho jurou ser coisa boa no mundo, orgulhar um coração que cabe um universo inteiro. E começou, vendo seu único jeito de presentear, “painho, não tenho dinheiro, não tenho como comprar um presente grande e volumoso, não tenho muita coisa e o pouco que tenho devo ao senhor. Agora, painho, tenho estas palavras que também não existiriam se não fosse tua dedicação e esforço. Hoje não quero literatura, quero apenas a verdade, palavra de filho, 23 anos de filho teu, painho. Hoje, teus 63 anos de idade são, para mim, motivo de orgulho e respeito. Sou grato por tudo que o senhor me proporcionou durante toda essa minha vida. Estou chorando e escrevendo porque eu preciso dizer o que sinto. Hoje, estudando e morando numa cidade que não é a que nasci, longe do convívio e do aprendizado diário há bem sete ou oito anos, sem saber dos dias que o senhor vive, sinto uma saudade e uma dor no peito que não tem tamanho. Nenhuma palavra seria tão poderosa a ponto de conseguir suprir a potência do teu nome em minha mente. Carlos é e sempre será o nome do meu melhor professor, do mestre que ensinou os caminhos primordiais, do homem que me deu uma escola, uma roupa para vestir, um prato de comida, nome do homem que me ensinou os valores mais importantes, nome do pai bondoso, do profissional sem igual, nome do homem da foto que carrego em minha carteira, nome do homem que passou enormes dificuldades para conquistar o que conquistou, do homem que dedicou uma vida inteira em prol da felicidade de uma família. Vou terminar por aqui, sabendo que nunca findará o que sinto, dizendo que teu filho Germano carregará o senhor no fundo do coração por todo o sempre”.


Imagem: Arquivo pessoal.

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Abelardo e Heloísa



Por Germano Xavier



(Ou o mito do amor imortal)

lenitivos não existem sob a imanência
das alturas irrespiráveis. bendições não haverão
diante das execuções públicas crudelíssimas.
Hosanas deseducarão com má fé os cristãos
concebidos sem pecado original,

porque a matina amante sabe-se chiaroescuro,
e Uebermensch olhado de cima
de uma catedral gótica é o coração sem excrescências.

Prometeu perseguido por conter a fonte do segredo,
Esfinge sem questionamentos, o deus sem correntes
vulgarmente criado do povo que não conjuga julgamentos.

amor é na treva a voz sem túnel, garfo no baço e osso
perfurado, titanomaquia dizimada por aves de brinquedo
sem corda dada. onde viverá o espírito mais nobre das coisas,

quem saberá dizer de onde vem a melíflua manhã das macieiras
na primavera febril?


* Imagem: Arquivo próprio.

terça-feira, 18 de novembro de 2008

O sangue


Por Germano Xavier


Suturar pétalas rasgadas
com cuidado,
mãos limpas, águas de cheiro,
dar um golpe único sem esquivo
no coração afetado

quando toda cor estiver afogada
em socorros. Se a água descer
rosa,
e se não estancar sem pressa,
rogue perdão,
que todo sangue é divino.


* Imagem: Arquivo próprio.

domingo, 5 de outubro de 2008

Desorientais



Por Germano Xavier


DESORIENTAIS, obra composta por hai-kais da escritora curitibana Alice Ruiz, é um livro que não orienta o leitor a um lugar possível, um livro que desorienta porque não oferece um caminho facilitado tanto para o início quanto para o fim de algo ou alguma coisa. Se tomarmos como ponto de partida o sentimento de alteridade, aquele onde o outro se transfere a outra esfera de sentido, que também pode ser o movimento de um outro de realidade viva para um outro ser de mesma estirpe, a presença deste outro em cada pessoa transforma-se numa necessidade bruta, numa necessidade de reconhecimento, de conhecimento, o que faz com que a palavra da poeta seja mais a lança que consegue perfurar um corpo que propriamente o sangue que porventura brota de uma ferida aberta. Destarte, desorientes são orientes outros que existem dentro de um oriente pessoal recheado por eus, por eles, por elas, por elos, impregnados de um Eros sadio e naturalmente concentrado de desejos, sentimentos, sensações, percepções, impressões, que subsistem a partir de uma praga de vida que também pode vir a ser sinônimo de solução. Alice Ruiz, mulher de poeta, poeta, dona de coisas simples, constrói o seu verso maduro de ser sensível, de ser mulher pura de revoluções insólitas numa das mais mínimas expressões poéticas: o hai-kai. Dentro deste universo mínimo repleto de significâncias, a imagem do vagalume clareia o branco das páginas. O vagalume é um símbolo que marca o desoriente de Alice, como a nos dizer de um tempo de contraste, que existe entre a claridade e o escuro, entre o aceso e o apagado, imprimindo nos olhos do leitor um sentimento de temporalidade feito de instantes, como em:

Primeiro vagalume
Assim começa
O fim do ano


Ou em:

Vagalumes isolados
Por um instante
Luz lado a lado


Ou em:

Apaga a luz
Antes do amanhecer
Um vagalume


O sentimento de passagem também perpassa o todo do corpo do livro, instaurando uma nebulosa ascendente que esconde por vezes as noções de espaço e tempo da obra, como em:

Nuvem de mosquitos
O ar se move
Vento nenhum


A resposta de pronto é dada pelo leitor de maneira que o mesmo conheça na voz que não existe a existência do pleno.

Fim de tarde
Depois do trovão
O silêncio é maior


Alice ainda faz um tratamento com as coisas do amor que ama e que sofre por amar ao final do livro, burla um pouco o estado natural das normalidades incontestes, faz vadiagem com o sentimento de ser, torcendo o pescoço para um estado de “Pensar letras/Sentir palavras/ A alma cheia de dedos”, como se todos os nossos desorientes fossem os potenciais maiores para possíveis reorientes.


Imagem retirada do Google.

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

A Jimi Hendrix



Por Germano Xavier


no dia em que comemos churros juntos
ou no dia da abobrinha requentada
ou na hora do adeus do tio chato
ou no riso sobre a voz do cantor brega
ou na fatia do bolo xadrez com cascas emboloradas
ou no alfarrábio raro do teu pai repleto de quetichupe
ou no viaduto sobre uma flor nauseada
que dia beijamos o céu?


* Imagem: Arquivo próprio.

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Coto



Por Germano Xavier



alguma coisa fica
no ar perambula
preâmbulo ângulo agulha
alguma coisa atulha
unha ou velcro
de escafandro
alguma coisa mergulha
no mar na preamar
na restinga
no que resta
da cesta da sesta da sexta
alguma fome come
a própria fome e mesmo assim
o homem
de sapato furado
de caminho marcado
de barcos naufrágios de braços
fragilizados de tanto remar
ainda assim o homem
ainda assim
alguma coisa entulha
na calçada e impede o trem de passar
com a pressa partida
da partida
com a pressa sentida
do chegar
ainda assim a vida agride


* Imagem: Arquivo próprio.

quinta-feira, 17 de julho de 2008

Corpo



Por Germano Xavier


meu corpo,
cota medievalesca imprestável,
em tardes de eu-sozinho
e em receitas exageradas
de se combinar braseiros,
apenas acende, no fundo,
a exata forma de uma existência
anulada, esgotada em dor.

o corpo, meu vestido
(multiplicante, pois sou vário)
de andar direito, direto,
reto?
é apenas ele,
o que se sabe dele.

não sou meu corpo,
como também não sou a palavra.
a palavra está.
o corpo está.
não são.
não me são.

tenho certeza, Affonso,
é sal meu corpo,
é sangue minha palavra.
e mesmo morrendo, pouco a pouco,
vivo onde e quando os dois,
o corpo e a palavra,
sem querer me ultrapassam.


* Imagem: Arquivo próprio.

quarta-feira, 16 de julho de 2008

O mito de Atená de Palas



Por Germano Xavier



Zeus, tentando prevenir que o controle do Olimpo lhe fosse retirado por um futuro neto, engole sua mulher Métis, que se encontrava grávida de Atená. Completado o período de gestação e acometido por uma insuportável dor de cabeça, Zeus termina, ingenuamente, contribuindo para o nascimento de sua filha, ao pedir que lhe abrissem o crânio. Dele irrompeu a vitoriosa deusa. O destino dela seria, a partir de então, glorioso e grandioso.

Desde logo possuidora de sabedoria e coragem, a Atená de Palas se sobressai no universo cosmogônico dos deuses. Seu nome remete ao título de grande mãe e lhe faz juz: Atená é guerreira, justa, pacífica, protetora e sua existência em atos traz aos que lhe cultuam a fertilidades dos solos, o espírito criativo e a inteligência. A proteção das pólis, onde sua imagem habitava, expandia-se aos artesãos, tecelãos, crianças, governantes, enfim, ao povo. E este lhe era enormemente grato pela direção e conselhos que a deusa proferia. Inúmeros cultos, com diversas comemorações, recebeu a deusa ao longo dos anos.

Com a observação aguçada do mundo ao seu redor, Atená era a de olhos garços, majestosa e bela, acompanhada de perto pela reflexão e calma de atitudes. Em Atenas, considerada como a deusa virgem, concebe de forma singular Erictônio, seu “filho da terra”. E é demais uma vitória contra a tentativa de dominá-la (nesse caso, perseguida por um admirador inflamado de desejos). Sem receber o apoio dos outros deuses, Atená educa seu filho, futuro rei da Ática.

As inúmeras e repetidas vitórias ante as dificuldades marcaram o destino dessa Atená, que fazia brotar sempre de seus discursos a paz, a liberdade, a justiça e a democracia. Da Acrópole, ela transmitiu estes ensinamentos ao seu povo e fez prevalecer a ordem sobre o caos, antes reinante. Suas conquistas são também as da luz sobre as trevas.


quarta-feira, 9 de julho de 2008

O signo como representação de algo




Por Germano Xavier



A partir da leitura do texto Semiótica e Semiologia, de Carlos Vogt, e também das explanações em sala de aula feitas pelo professor Cosme Gomes, pude perceber que a semiótica está inserida num jogo abstrato-perceptivo ou, ainda, imaginário-sensitivo. Tomando como base o conceito de Charles Sanders Pierce, renomado lógico e filósofo americano, o signo é algo que possui a faculdade de representar alguma coisa para alguém. O objeto da semiótica, o signo, existe a partir do momento em que um dado significado é concebido como sendo aspecto universal ou universalizante. Em outras palavras, o signo, trabalhando conjuntamente com a parcela mental do indivíduo, adquire potencial necessário para incutir, nessa mesma mentalidade, um modelo de representação parcialmente ou completamente equivalente, com similaridade menos ou mais apurada. Com o pressuposto de que tudo necessita ser nomeado, assim como receber uma carga de significação no desígnio de construir um corpo unitário completo, a semiótica, vista aqui no tocante à teoria de Pierce, destina-se a estudar o signo em parcelas subdivididas, fato que auxilia no melhor aproveitamento de sua complexidade e, posteriormente, de toda a sua lógica física, psíquica e social.


domingo, 18 de maio de 2008

A Linha



Por Germano Xavier



A LINHA, livro de Mario Vale, é, indubitavelmente, um livro diferente. Diferente não no sentido de anormal, insólito ou inovador, muito menos encerra uma experiência extremamente original, haja vista que muitos escritores de literatura infantil, infanto-juvenil, juvenil, e até adulta já testaram coisas por demais parecidas, mas diferente no sentido de desigual mesmo, de dessemelhante, de fora do comum – pelo menos para aqueles que, como eu, não têm tanta intimidade com composições artísticas desta natureza. O próprio título sugere qual seja o enredo da obra do cartunista mineiro. Utilizando como ponto de apoio a figura de uma linha, Vale brinca com o imaginário coletivo de um modo bastante cativador, através de diferentes recortes temáticos nos cartuns que compõem o todo do livro. Não há palavras nas páginas, somente uma linha que perpassa todo o conjunto, unida como tal a desenhos variados que figuram como suporte para produção de conceitos os mais diversos possíveis, ajudando assim na compreensão das mensagens que se pretendem transmitir ao leitor. Por tratar de temas universais de um modo divertido e ao mesmo tempo instigante, sem pecar por adentrar num espaço de lugares-comuns bastante típicos à caricatura, o que Mario Vale faz é um trabalho quase que inconcebível em termos de classificação enquanto artefato literário. Dizer que A LINHA é para crianças, ou que é para jovens, ou algo nesse entremeio, é a mesma coisa que desqualificar a produção artística do autor. O mais adulto e experiente leitor pára minutos muitos e deliciosamente investidos de seu tempo na justa tentativa de entender o que é que se passam nas 88 páginas do livro. Não obstante a qualidade do material impresso, a simplicidade mágica dos traços do autor, a potência metafórica significativa dos cartuns, outra detalhe também chama a atenção: o espaço em branco do livro não parece ser algo sem propósitos. Sem o vazio, sem o vago, talvez a amplitude dos desenhos não fosse tão vasta e flexível. Exemplo mais do que típico de livro que faz do seu leitor personagem de fundamental importância, sem o qual certamente não haveria modos mais eficientes para constatar a magnitude de tal literatura, ou seja, a linguagem que falta à sua matéria é encontrada na voz invisível do leitor produtor de significados. Uma boa pedida, para quem se dispor a “ler” A LINHA, é procurar também os livros de autores como Eva Furnari, exímia artesã de livros “mudos” e fantasticamente repletos de “vozes”. Para mães com filhos pequenos, pais com filhos grandes, adultos sem barba, adolescentes barbudos, velhos jovens, idosos de todas as idades ou qualquer coisa do gênero ser humano, bom apostar nestas linhas tão edificantes.


 Imagem retirada do Google.

segunda-feira, 24 de março de 2008

Conceito?


– Amiguinho meu, tu me ensinas a voar um vôo nunca existido?

– Não, eu não posso. Um dia tudo já existiu.

Indo ao dicionário Aurelião, encontraremos o seguinte significado para o termo grego “Mímesis (Mimese)”: imitação ou representação do real na arte literária, ou seja, a recriação da realidade”. Roger Samuel trabalha dentro dessa perspectiva de exemplificação quando malina nas gavetas de suas teorias e de suas pestes. Por ser um conceito filosófico, portanto demasiado amplo, esta “imitação” a qual indica tal autor alcança um horizonte de discussão quase que ilimitado. Para Platão, mímesis é uma espécie de imitação da realidade (Idéia) em terceiro grau, um pouco distante do plano do pensamento original. Se no platonismo a mímesis ocupa um espaço recatado, sem grandes importâncias nem faculdades, em Aristóteles o termo vai ocupar um lugar de destaque, revelando-se como o processo pelo qual o fazer poético encerra variados símbolos e significados. A mímesis não é um exercício metalinguístico – como é óbvio que não deixa de ser, jamais -, porém ela mais se aproxima da metáfora, como energia vital e força propulsora integrante do núcleo poético. Sem tanto me alongar querer, mímesis está mais para um exercício de revelação externa ou interna de algo, tendo como ponto de apoio uma determinada realidade já existente, sofrendo influência do nosso inconsciente e, também, das circunstâncias diversas as quais estamos diariamente e temporalmente entrando em contato.

Edutecnocupação


O mundo vivencia a era da informação, e essa informação chega de maneira tão rápida, instantânea, que devemos inclusive questionar sua qualidade, visto que a rapidez e sucessividade informativa ocasiona uma incapacidade humana de filtrar as parcelas significativas presentes num dado contexto informacional e criar um pensamento crítico diante das mesmas. Este quadro de interconectividade da sociedade mundial é possibilitado pelo surgimento e consolidação de tecnologias inovadoras, que desafiam a sociedade mundial como um todo, principalmente no âmbito da educação. Tal setor, portanto, é desafiado a acompanhar essas mudanças porque está para o mundo apontando inovações igualmente revolucionárias, de modo que permitam ao sujeito global tornar-se um indivíduo adaptado às mudanças rápidas pelas quais o mundo atravessa, além de apto a propor inovações técnicas, mercadológicas e sociais das quais necessita a sociedade mundial, da qual somos sujeitos históricos. A educação, hoje, não apenas mantém seus objetivos tradicionais de aprimorar o conhecimento e facilitar o convívio social, mas também incorpora novos desafios como permitir que o indivíduo realize tarefas cada dia mais complexas, tornando-o assim mais produtivo, diminuindo então a sua probabilidade de ficar desempregado. A relação entre formação, profissão e emprego está cada vez menos interligada. Hoje, diferentes formações podem levar as mesmas ocupações. Um mundo de trabalho se delineia e as novas competências impostas pelo mercado de trabalho são no nível da percepção da capacidade, da resolução de problemas e do relacionamento interpessoal. Entrementes, importante faz-se elaborar uma síntese acerca do tema “Inovação tecnológica X educação”, tratando de penetrar em seus significados e funções adquiridas ao longo dos anos. Os pesquisadores deixam claro que a participação e aferição de uma prática tecnológica inovadora dentro do aspecto da educação é algo muito interativo e que se presta ao modelamento da sociedade em geral. Para que haja uma efetiva aparelhagem tecnológica na esfera educativa, os gestores e alunos devem agir de maneira que compactuem com os mesmos ideais e, além disso, entender que sem esta união de valores e objetivos a educação não tende ao progresso. Decerto que, se não considerarmos o caráter agregador não linear, integrativo, capaz de unir diversos componentes sociais, complexos, nós não dominaremos os avanços produtivos dos quais estão intrinsecamente ligados todos os sujeitos e o fenômeno educativo. Portanto, há uma necessidade urgente de buscarmos sempre uma interação com o novo. Precisamos estudar cada vez mais e inserir em nossa vida uma aprendizagem contínua, pois o mundo está em constante mudança e as qualificações tradicionais tornam-se instrumentos por demais obsoletos.

O tempo da gíria


Em maior ou menor grau, toda gíria é – ou pretende ser – a expressão máxima de um determinado grupo que se utiliza da linguagem verbal para efetuar fenômenos comunicativos. Expressão máxima porque é ela que assegura os limites de uma privacidade de compreensão em quesitos tidos como passíveis de sigilo ou segredação tribal. É natural à gíria o seu poder de guardar ou proteger um desejo por diferença. As expressões giriáticas, dentro do contexto maior da linguagem, buscam a todo instante a sedimentação tanto de uma marca lingüística pormenorizada – e ao mesmo tempo evoluída – quanto de um sentido que, sendo ele lógico ou ilógico, possua o poder de dar significado a algo ou a alguma ação humana, verbalizada ou verbalizável. Esta incessante procura em definir o que é particular a uma tribo social, como num processo de demarcação de uma dada territorialidade expressa através da palavra e suas ramificações, ocorre em sua quase total generalidade na esfera do coloquial. Por sua vez, a coloquialidade inerente à gíria traça para si mesma um perfil estritamente popular. Debutante que é ao que se apresenta como sendo de ordem cotidiana, e desprovida de uma armadura lingüística mais forte capaz de lhe oferecer a necessária proteção ao desgaste natural que o fator tempo impõe a tudo e a todos, a gíria tem entre suas maiores e mais visíveis características a efemeridade. Por nascer e morrer assim, tão aligeiradamente, no falar do povo, a gíria alcança o ápice de sua condição muito rapidamente. É quando o seu sentido extrapola o seu domínio inicial, vaza pelas brenhas de sua própria espacialidade, adentra outros universos, agride outros, prolifera-se na multidão, e termina por perder muito de suas particularidades e possibilidades. De todo modo, mesmo após sua morte, a gíria sobrevive – as mais contundentes, diga-se de passagem -, tal qual uma alma penada, agora funcionando como um registro de um tempo passante, passageiro, passado. Nelly Carvalho, professora da UFPE, em artigo publicado em periódico pernambucano, diz que: “A efemeridade da gíria toca nossa sensibilidade porque demonstra concretamente a passagem do tempo, dos fatos, dos homens, enfim, põe em relevo a fugacidade e a vida”. Não basta que usemos a expressão giriática a torto e a direito, é preciso conhecer o seu funcionamento, a sua situação dentro do contexto linguístico, a sua operacionalidade, a sua serventia. Deste modo, além de nos transformarmos em seres atuantes e participativos dentro de nossa língua, propendemos a melhor nos entendermos como seres em progressiva atualização, ao mesmo tempo individuais e coletivos, descartáveis como uma gíria de verão, eternos como uma gíria dicionarizada.

Uma nova ordem?


O capitalismo não teme crises, guerras ou instabilidades (?). O capitalismo é um sistema severo, e talvez por ser tão rígido assim é que ele conseguiu instalar-se de maneira tão abrupta, marcante e essencialmente injusta. É dentro desse sistema econômico/social, baseado na propriedade privada dos meios de produção, na organização da produção visando o lucro, que emprega o trabalho assalariado e o taxamento de preços, que emerge uma nova ordem sociocultural: a Sociedade Tecnológica, que também recebe a designação de Sociedade da Informação, ou Sociedade Pós-Moderna, ou Sociedade Digital ou, também, Sociedade de Consumo.

A sua notável capacidade em se renovar constantemente, e por extensão, solidificar-se e fortalecer-se, mesmo sob as mais duras crises, é um dos fatores ou características que servem para diferenciar a Sociedade Tecnológica dos períodos anteriores. E é justamente nessa imensa capacidade de renovação, de reprodução, que reside o perigo. A Sociedade Tecnológica, utilizando-se do capitalismo e demandando cada vez mais de um aprimoramento e de uma redução dos gastos condizentes ao tempo de produção, acabou provocando uma verdadeira revolução no comportamento dos indivíduos. E nesse âmbito, cabe ressaltar o envolvimento de todos os setores sociais.

É quase que impossível enxergar um espaço que ainda não tenha sofrido a influência dessa Sociedade Tecnológica e desse capitalismo selvagem. Percebe-se, claramente, que, com a vigente necessidade de precisão e velocidade na produção de bens materiais e imateriais, como é o caso da informação, houve uma nova organização de valores, principalmente no que se refere às funcionalidades e capacidades humanas. O homem é constantemente trocado pela máquina, que realiza as tarefas em muito menos tempo.

Enquanto as “constituições capitalistas e tecnológicas” continuam renascendo indefinidamente, o homem moderno vê-se igualmente obrigado a se reestruturar, aprender, desenvolver-se, desapegar e evoluir. Porém, esse desapego e essa evolução não é tão facilmente conseguida, assim, sem custos. A tatuagem da Sociedade Tecnológica já se encontra em nossa pele, que maculada e ferida não sabe como cobrir toda essa mancha. Essa nova ordem fez do homem uma criatura de grandes limitações, escravizado e quase sem nenhuma possibilidade de conhecer o significado da palavra liberdade.

Perde-se, espontaneamente, os potenciais humanos para as parafernálias que sequencialmente surgem em nossas vidas; uma inquietação metabólica que apequena o cidadão, operando em conjunto, no intuito de dominar nossos antigos domínios.

Mais um pitaco saussuriano


Uma relação entre compadres é como se assemelha os elementos fundamentais do estudo da Semiótica e da Semiologia. Interessante perceber como se dá o processo de ligação entre termos essenciais para o funcionamento da sistemática estudada por Saussure.

Tomando como exemplo os termos “Linguagem”, “Língua” e “Signo”, pode-se ver, claramente, esse tipo de intercâmbio. No caso da “Linguagem”, a sua formação/existência ocorre a partir da junção entre “Langue” e “Parole”, ou seja, Língua e fala. No quesito “Língua”, estamos sempre tratando de uma relação binária entre signos. Já no caso do “Signo” propriamente dito, há sempre a dualidade entre um conceito e uma imagem acústica ou, ainda, por outro prisma, entre significado e significante. Todos, numa ótica de obrigatoriedade, corroboram a idealidade de Saussure.

E, para fortificar esse pensamento, em Pierce essas manifestações continuam existindo, mudando apenas a quantidade de envolvidos; ao invés de binária, a relação em Pierce é triádica. Agora os elementos fundamentais fazem parte de um complexo jogo estrutural composto pela Sintaxe (Estrutura propriamente dita), Semântica (ligado ao significado) e, por último, pela Pragmática (Referente ao uso e prática nos diversos ambientes sociais).

O lead jornalístico e o cotexto


caminhos para uma simbiose obrigatória

As marcas textuais que caracterizam e qualificam um texto como sendo, ele, um produto jornalístico são diversas, assim como se dá com outras tipologias ou gêneros de texto. Além de requerer sua respectiva presença em um dado suporte midiático, seja ele em formato impresso, radiofônico, televisivo ou eletrônico, o produto textual de ordem jornalística também pressupõe, entre tantos outros mecanismos, a velocidade, a informatividade, o desprendimento e alguns elementos técnicos que auxiliam no processo ao qual se destina. E é justamente dentro deste panorama que se faz demasiado visível a forte dependência que o lead tem para com o cotexto discursivo.

O lead de um jornal impresso, para tomar como exemplo, tem por finalidade fazer com que o leitor, ao ler o primeiro parágrafo de toda a matéria/notícia publicada – local onde geralmente o lead aparece -, seja informado dos acontecimentos basais – em geral, o lead tenciona responder às perguntas “o quê?, como?, quando?, onde? e por quê”. Todavia, para que a transmissão da mensagem seja efetuada com clareza, as relações entre os termos utilizados e o sentido agregado à mensagem precisam estar em perfeita harmonia. E, para que isso ocorra, é necessário que haja uma rigorosa observação do contexto, que, para Maingueneau (2001, p.26), “não é necessariamente o ambiente físico, o momento e o lugar da enunciação.”

O cotexto encaixa-se dentro do contexto, e forma, juntamente com o “contexto situacional” e com os “saberes anteriores à enunciação”, um complexo de instrumentos que auxiliam na compreensão do texto. O lead, como parte fundamental de uma notícia jornalística, deixa-se encaminhar pela íntima relação que tem com os elementos dêiticos/conectivos pertencentes ao cotexto linguístico. Segundo Maingueneau, são estas “sequências verbais encontradas antes ou depois da unidade a interpretar” (2001, p.27) que vão assegurar a qualidade ou o teor de incompreensibilidade/clareza possivelmente presentes no lead.

Sendo assim, percebe-se uma simbiose linguística de fundamentos quase que obrigatórios. É verossímil, e nada constrangedor, dizer que um não existe sem o outro, ou que um é indispensável ao outro. Todo esse processo faz com que, quase que imperceptivelmente, o sujeito-leitor se utilize, ao ler o lead dentro do corpo de um texto jornalístico, de recursos indispensáveis à interpretação do conteúdo, fazendo com que o propósito informacional seja plenamente averiguado no ato da leitura.



MAINGUENEAU, Dominique. Análise de Textos de Comunicação. São Paulo: Ed. Cortez, 2001.

As perguntas sem resposta de Matrix


A trilogia cinematográfica Matrix, dirigida pelos irmãos Wachowski, é um produto midiático de ficção científica que mistura tecnologia, efeitos especiais com mitos, crenças, religiões e, evidentemente, filosofia antiga e atual. Os paralelos que podem ser estabelecidos entre temas abordados nos três filmes da série (mormente o primeiro) e as idéias de Sócrates e Platão, principalmente aquelas ligadas ao seu famoso e tão discutido Mito da Caverna, são inumeráveis. A caverna de Platão é o mundo das sombras, o mundo onde reina o desconhecido mais geral e também onde vive a ânsia pelo saber, e o filme nos questiona o que é, para nós que vivemos numa época em que ciência e tecnologia predominam, a nossa real e atual caverna? Matrix é, assim como o antigo mito platônico e antes de qualquer outra coisa, uma alegoria, uma pantomina dos pensamentos de Sócrates e seu discípulo-mor. Há nos filmes a preocupação com os encadeamentos do “descobrir” e com o do “descobrir-se”, este otimizado como num processo de autoconhecimento que busca a retratação de uma outra atmosfera e de uma outra realidade, tanto mais próxima quando mais distante da realidade pensada enquanto real. Tanto em Matrix como nas idéias desses dois filósofos, existe uma ênfase para com a construção de diversos valores distritais humanos e sociais, como o enraizamento da curiosidade, a fortificação do desejo, a eterna fome por conhecimento e até a “apalpação” do que é real e/ou matéria-caminho para fuga do que fosse apenas virtualidade ou imatéria. O reflexo das pessoas na parede, o mistério, a dúvida pelo que é novo, os choques entre personas e rostos de fidedignidade, assim como os contrastes produzidos pela realidade são matérias importantíssimas e, por conseguinte, fundamentais para o entendimento do enredo dos respectivos filmes. A nossa caverna é o próprio ser humano, que ainda não conseguiu alcançar a sua mais íntima substância, o seu âmago, a sua mais rica profundeza, o seu lado verdadeiramente distinto dos outros animais, que não sabem que estão pensando ou que sabem que são capazes de pensar – o ser humano, criatura de sentimentalidades e manifestações, em sua maioria, superficiais e dicotomias. Pode-se, a partir de tais pressupostos ligados ao filme e à filosofia, dissertar também sobre o conhecimento filosófico abarcado em Matrix, destacando as diferenças no tocante às outras formas de conhecimento e relatando como se deu a passagem do pensamento mítico-religioso para o pensamento filosófico. A filosofia é uma ciência e não é, tudo ao mesmo tempo. A filosofia cientifica o que é contemplação e reprodução, emite concepções diversificadas do mundo e das relações interpessoais, transcende o que é matéria e alcança uma forma de plenitude de olhar, de enxergar, o que a faz diferente das outras formas de conhecimento, que funcionam atreladas ao pragmatismo e ao tecnicismo. Estes, por sua vez, malbaratam e desvalorizam a subjetividade e o distanciamento do visível. O mito foi usado no início como uma forma de retratar a formação do mundo e das relações humanas, através de narrativas alegóricas e imaginativas, deixando que a ficção e a oralidade corroborassem tais tentativas de explicações. Somente quando a filosofia conseguiu se adaptar melhor às necessidades do homem é que ela tomou as suas devidas proporções. Matrix nos lega uma questão: por que a pergunta é mais importante do que a resposta no processo de filosofar? A pergunta, manifestação de busca e saciedade, é muito mais essencial que o “responder”, até porque não há apenas uma verdade, uma resposta. A resposta é um produto da subjetividade, da incerteza – a pergunta não, a pergunta é a própria certeza, talvez a única forma de certeza, mas também uma certeza falida, diagnosticada infame e cancerosa, posto incompleta -, e este não é o princípio básico que faz movimentar a filosofia. Filosofar é, antes de tudo, ater-se ao Belo, à negação das ordens naturais das coisas e um elogio ao que é de ordem imprevisível e, para conseguir um melhor entendimento condizente a este fato, nada mais inteligente que perguntar, questionar. Será que é mesmo assim?

Esse texto foi publicado na Revista Entrementes Edição de Outono de 2015

A estruturação da realidade


A construção conceitual da expressão “Estruturação da realidade” fundamenta-se na ideia de que é ela o arcabouço instrumental-metodológico usado pelo indivíduo no desígnio de criar um “ambiente” propício ao desempenhar de tarefas-ações, sempre em busca de cumprimentos e realizações. “Estruturar a realidade” é relacionar-se com o outro, com o que é o objeto ou com o que não é concreto. É estudar a mecânica física e simbólica da dinâmica comportamental em um viés que permeie a elaboração de uma situação real, cognitiva e operacional. O indivíduo “estrutura a realidade” no intuito de “desproblematizar”, de ir adiante, alcançar objetivos, superar obstáculos. Portanto, ao construir tal esfera de significação, ele, o indivíduo, dialoga com forças e necessidades, ora simples ora complexas, para depois agir sobre o meio e produzir a ordem desejada. Para isso acontecer sem maiores dificuldades e empecilhos, a “estruturação da realidade” atua no desbloqueio de tensões, ameaças bastante significativas para as possibilidades de fracasso. Em outras palavras, “estruturação da realidade” é o conjunto sistemático e estrutural de manifestações que, motivado ou não, prepara o indivíduo para inúmeras interações e jogos relacionais, funcionando como ferramenta de apreciação e efetivação de ações sobre determinados meios, prenunciando algo, sempre.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

Marcelo conversa com Germano Xavier



Marcelo de Novaes Soares, do blogue Bloco de Notas, conversou um pouco comigo. Leia a entrevista na íntegra no blogue dele ou aqui mesmo n'O Equador das Coisas. A foto acima é mais um desafio. Meados dos anos 90, eu no finado Clube Social de Iraquara-BA, numa apresentação artística de Kung Fu e dança. Quem descobrir quem sou eu na foto ganha um doce. Continuemos, bucaneiros...


MN - Germano, se você se dispõe a escrever sobre "Grande Sertão: Veredas", já nos dá uma pista interessante sobre o tipo de leitor que é. Compartilhe conosco, o pouco que seja, o que você viu no mundo-apinhado-de-linguagem de Guimarães Rosa.

G - Vi o que a maioria vê quando entra no mundo do monstro de Cordisburgo. Uma nova e outra língua portuguesa, uma reforma "inventada" e geral nas normas do nosso idioma, uma ousadia sem tamanho, um dicionário de potência imaginativa, um livro indispensável para qualquer um que queira enveredar-se por estes caminhos, uma "Estória" fascinante, entre tantos outros aspectos que aqui poderiam ser citados. E em especial, me fiz enxergar o fator "Errância" nos dois personagens principais do romance. E sobre isto ainda pretendo me ater em matéria de pesquisa e produção científica.


MN - Você crê em sua cidade natal como crê em Cortázar? No Jogo da Amarelinha, saltando casas e mudando de posição-no-jogo [do primeiro blog "Parolas de um Sujeito Quedo", até este transadíssimo "O Equador das Coisas", passando por "A Auto-Estrada do Sul"] você já empacado, sem conseguir avançar? Já se experimentou como sendo tautológico [aquele triste "déjà vu de si mesmo", porém esvaziado de surpresa?]. Ou repetir-se também é uma maneira de surpreender(-se)?

G - Eu não creio mais em Iraquara. Perdi minha cidade há bastante tempo. Recentemente escrevi um livro-reportagem sobre ela, Iraquara - Em Memória de Nós, que pretendo ampliar e publicar em breve, e mesmo assim me senti muito distante de sua essência. Porém, penso que ficar querendo equiparar passado e presente também seja um erro. Memorar também é esquecer, como diria o uruguaio Mario Benedetti. A Iraquara que quero que seja preservada em mim está incólume, impassível de ser atingida pelos mísseis dos tempos vindouros. O que está vivíssimo dentro de minha alma é a vontade de levar a região da Chapada Diamantina para os livros. E isto, se não me faltar forças, será feito. Ninguém quer ser matéria estanque no espírito do Tempo. Quero crer que progrido a cada novo texto que exponho aqui. E se por um acaso eu me repetir, vou pensar que repetição pode ser sinal de reordenamento, de amadurecimento. Quem escreve quer participar da vida de uma forma ou de outra, malinar com ela, transgredi-la, invadi-la. Escrever é, sem dúvida, uma forma de estar vivo. O que tenho feito é alinhar rotas que mais me comprazem do que me desmentem. Mentidor é o escritor que diz que escreve para não ser encontrado em sua plenitude por um possível leitor. O blogue "O Equador das Coisas" é hoje o mais fiel retrato do que sou e do que penso do mundo que me cerca, e também dos mundos que quero que existam, inclusive os literários. Todavia, ele (o blogue) não está livre de ser demolido de uma vez por todas - se é que me entendem. Afinal, como diz o outro, "tudo que é sólido se desmancha no ar".


MN - Teu élan criativo construiu este painel de textos, de 2007 para cá. Eu te pergunto: o poema não registrado/ exposto/ grafado/ vocalizado mofa (n)a alma?

G - Mofa, apodrece, morre, não vive. Para que serve um poema senão para existir dentro de uma outra alma?


MN - Como a literatura é uma Vereda Imensa e maior do que o texto extraordinário de Guimarães que citei acima, não podemos, nem de longe, percorrê-la e destrinchá-la numa vida [nem em trinta]. Que bússola você usa, e como se orienta na porção-de-chão que escolhe/ousa pisar? E quando o chão se inverte ["chão invertido"é, também para mim, uma velha imagem...], como recupera o centro de gravidade? [Afinal, o labirinto-da- literatura pode ocasionar labirintite... ou, pior: vertigem existencial].

G - Eu sempre usei a estratégia do ler um após ler um outro, caminhar um passo de cada vez. Por exemplo, citando algo recente, A fúria do Corpo, do João Gilberto Noll, levou-me a conhecer um pouco do David Foster Wallace. Pergunte-me como isso se deu e eu não saberei te responder. É mais um mistério deste rio infindável chamado Literatura. E como universo labiríntico, perco-me inumeráveis vezes e me deixo estar perdido. No fundo sei que não há estratagemas para lidar com a galáxia das letras. Atualmente ando meio perdido. Mas escontrei um bom caminho para seguir andando neste arrebol de continuidades e rupturas: comecei a ler 2666, do Roberto Bolaño.


MN - "Vai morrer o poeta aos vinte e três anos, e ele sabe que vai". Este é o teu recado a um poeta Gular. Em outros termos: o poeta morrerá à míngua, e ninguém se dará conta disso [não em vida]. Esse clamor tem o "halo" de Álvares de Azevedo, que viveu até um pouco menos do que isso. O que eu poderia depreender deste arquétipo do criador combalido quando jovem: "Ó, como a poesia nos esfalfa!?" [a nós, que a fazemos]. Ou, correlatamente: "poetas não sabem cuidar de sua saúde?"

G - É doloroso escrever. Tanto quanto prazeroso. Poetas, escritores, como humanos que são, são fásicos. Houve um tempo em que os temas da "Morte" e suas adjacências estiveram mais perto de mim. Hoje me interesso mais pela "Vida". Talvez por isso ainda não tenha desistido de tudo isso. Ainda não escrevi o que quero escrever e ainda não vivi o que quero viver para poder morrer em paz comigo mesmo. Não posso dormir agora.


MN - Fale dos acertos de tua errância nestes poucos anos de vida [um quarto de século, praticamente]. A errância, hoje, é um movimento-para, ou também um tema? Você crê, como ensinam certos escritores a neófitos, "que todo autor tem de achar seu tema"? Você achou o teu? Achou também o tom? Há coisas que só se descobrem quando se é mais velho, em termos de "dicção narrativa"? Rimbauds à parte, você se inspira em [ ou se instrui com] escritores de tua faixa etária?

G - Saí de casa aos 14 anos e comecei a dar passos sozinhos. Aprendi o que é solidão e silêncio sentido tudo na pele. Aprendi tanto que já não suporto mais estes sentimentos. Eu sempre rumei tentando ser melhor, tentando conhecer mais a mim mesmo. Eu jamais perdi meu tempo procurando "um tema que fosse meu". Talvez ele me surja com o atravessar dos dias e das noites. Leio e absorvo daquilo que me parece ter a densidade suficiente para não considerar banal. Escritores são seres errantes por natureza. Sensíveis a tudo e a todos, só lhes restam saber efetuar as transações corretas. Somos filhos do Tempo. O Tempo, invariavelmente, muda, mudando-nos também. Eu não sei até que ponto estou certo do que o que escrevo é aquilo que gostaria de escrever. Mas tenho absoluta certeza de que ajudo a produzir com meu esforço diante da palavra aquilo que o Elias Canetti chama de "Poesia-Una" do mundo. E eu ainda sou daqueles que preferem os clássicos, mas também libo dos contemporâneos. É preciso.


MN - Eu te vejo experimentando algumas dicções, por breves momentos. Temos a "dicção lusitana" em "Há um ponto cego de afectos no que afeta a linguagem do reflexo". Isso para falar o quanto o outro nos é incognoscível até a hora da morte ["Vossas Biografias"]. Qual seu nível de interatividade com autores lusitanos? Há muitos blogues em Portugal...

G - Quanto ao termo "afectos" utilizado no verso meu supracitado, é apenas recordos meus de terminologias bastante utilizadas nas obras filosóficas de Deleuze e Guattari, cujos estudos me invadiram plenamente quando ainda cursava Jornalismo. Penso que meus poemas mais recentes estão beirando uma ininteligibilidade sadia, um hermetismo desfigurado, mas que consegue enviar uma mensagem clara na medida do possível. Sobre o complemento da pergunta, digo que estou relendo "Os Lusíadas", que sempre releio Fernando Pessoa, que não tenho muita afeição com o que escreveu Saramago, que tenho curiosidade com relação ao que escreve o Antonio Lobo Antunes. E sinceramente, não sei dizer se há muitos blogues em Portugal nem se estou interessado nessa estatística.


MN - Falando em sotaques, há sotaques do sertão, também. Quando você se lembra deste tipo de sotaque, homenagenado-o [em "Polaróides Pessoanas", por exemplo], eu tenho de considerar o método a partir do qual Pessoa demarcou temas e sotaques. Você ama Pessoa. Já sabe se ele te ama?

G - "Pessoanas" aqui diz respeito à "Jampa", João Pessoa, capital do Estado da Paraíba, por onde estive por dois meses. Amei a cidade. Não sei se ela me amou, creio que sim. Fui muito bem recebido, o povo é extraordinariamente receptivo. A cidade é muito organizada e paira nela uma sensação de segurança. Ótima morada. Para quem se interessar possa, está aí a dica.


MN - Talvez você seja um prosador poético que flerta com a poesia. Escreve até "missivas", o que é um gênero quase-abandonado, senão por um ou outro bom cronista. Sei que você aprendeu coisas com o punhado de gente que leu: Roberto Piva [falecido recentemente], Pessoa, repentistas, certamente. Você leu Piva no segundo grau, em Irecê, interior da Bahia. Quem eram teus interlocutores nesta época de perscrutações poéticas? Um ou outro professor, talvez? E hoje, aos vinte e seis anos, já sabe mais sobre "a paranóia de viver"?

G - Um ou dois colegas de classe me escutavam. Lembro do "Cenoura" e do Tales, amigos de mais sensibilidade para estas coisas da alma e do Ser-Palavra. O restante preferia as resenhas das festas do fins de semana. No mais, era eu e eu mesmo. Um professor só iria me ouvir um pouco mais tarde, mas ainda em Irecê, o Erik Machado. Já na faculdade o espaço foi maior. Colava poemas e textos meus nos murais. Publiquei coisas em jornais e livros, participei de fanzines. Alguns me intitularam "Poeta". A alcunha ficou, feito vírus. Só me restou aceitar a condição. O professor citado hoje nem deve saber que ainda existo. Tudo bem, está tudo tranquilo. A vida tem me dado uns tapas "necessários". Isso é bom. Estou mais centrado na vida real hoje, certamente. Tenho sonhos palpáveis. Preciso realizá-los. Senão a vida passa por cima da gente, não é?


MN - Minha segunda pergunta foi se você acreditava em sua terra natal, como acredita em Cortázar. Minha última será: "você acredita em escrita coletiva"? Como? E sob quais condições? Quais foram os teus critérios para juntar a corja infecta e eloquente que atende pela alcunha de "Homens Hediondos" [sendo que há algumas mulheres hediondas infiltradas no antro...].

G - Sou meio preconceituoso com essa coisa de coletividade na escrita. Mas tudo muda, não? No blogue Homens Hediondos todo mundo escreve por si e acaba que ensina e aprende alguma coisa junto ao seu semelhante. A receita, se houver, é bastante simples. Quem ganha mais, na verdade, é o leitor. Gosto de pensar assim. Daquela brincadeirinha de escrever e publicar pode sair um tijolinho de construção literária de bela densidade. É uma tentativa. Por que não arriscar?


Imagem: Acervo Pessoal