terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

O grande espelho

Por Germano Xavier

"Os espelhos são usados para ver o rosto;
A arte para ver a alma".
(George Bernard Shaw)


O homem entrou pela porta com uma toalha branca presa nas ancas, sem camisa, seminu. Jorrando um perfume de patchuli por onde passava, procurou o interruptor e deu a luz. A garagem estava plena de faltas. Tudo indicava que há anos alguém tinha posto os pés ali. Dois pequenos tapetes emborrachados, como capachos, impregnados de fungos davam-lhe as boas-vindas. Pelos quatro cantos da parede, o mofo do abafamento e do escuro atenuavam a verdadeira face das coisas. Viu que o carro, de um verde-claro, parecia ter sido encerado pouco antes de ser largado no centro de tudo aquilo. Percebeu porque passara a mão sobre o capô e um brilho bonito surgiu na parte metálica, ligeiramente ofuscando sua visão, ainda acostumada com os ares penumbrosos de pouco antes, enquanto que sua mão, empapada em pó, impregnava-se de impurezas. Caminhou um pouco na direção da estante mais larga, quase ao lado do motor do portão elétrico, sentiu o desuso das ferramentas, a graxa ressecada nos velhos potes enferrujados, que certamente deveria servir para dar vazão aos rolamentos, os fios desencapados do torno já sem seus acessórios, a máquina de solda apodrecida. Dali, sem poder jogar luz ao breu dos questionamentos que lhe brotavam à mente, o homem olhou sentenciosamente para a tristeza do abandono e viu, escorado na lanterna traseira do antigo veículo, uma grande moldura em madeira. Não se podia vê-la quando se adentrava no cômodo. De onde estava agora, o máximo que dava para se ver eram os contornos trabalhados numa madeira escura, semelhante a um trabalho artesanal, de muito capricho. Aproximou-se, tomou-a pelas mãos e pôs endireitada sobre a mesa ao lado. Havia uma grossa camada de poeira cobrindo toda a extensão do objeto. Passando os dedos sobre as dobras em alto-relevo nas curvas da moldura, o homem percebeu o quanto aquilo deveria ser valioso. Virou-se, contorcendo o pescoço mais de uma vez para os dois lados, à procura de um pano ou mesmo um espanador. Era bom que limpasse a moldura, pois assim a veria em sua inteira beleza. Não encontrando nada com que pudesse limpá-la, saiu rápido pela porta de onde viera e, pouco tempo depois, lá se encontrava novamente. Começou a passar o pano úmido que trouxera da cozinha nas bordas e, só depois, esfregou o centro. Parecia um grande espelho que, comparado à altura do homem, devia ter pouco mais do que a metade de seu tamanho. Olhando as formas que se sobressaiam cada vez mais de dentro da sujeira, mesmo sob o efeito da parca luz emanada da lâmpada daquela garagem, o homem ficou. Nada se via, apenas um cinza fosco como se a parede reflexiva tivesse perdido sua funcionalidade. O homem estava intrigado. Primeiro por comprovar a existência daquele estranho cômodo, depois por ter achado aquela coisa que não era um espelho propriamente dito. Ou era? O que impossibilitava a precisão dos olhos do homem? Fez com o pano nas mãos um último movimento circular, e deu por terminado o trabalho. Trouxe a moldura para mais perto da lâmpada, como se desconfiasse que a fraca incidência de luz na provável tela reflexiva fosse o motivo para a opacidade do espelho. Calmamente ajustando a posição percebeu, por fim, que uma cena se desenhava no interior do falso espelho. Correu a olhar o relógio pensando erroneamente que estaria ele devaneando, em sonho imbricado. Parou de súbito, e por um átimo pensou se estaria forçando muito seu limite no novo emprego. Mas o sonho seria mesmo uma espécie de vidraça? E tudo o que se realiza vive da necessidade de existir? Agora que o motor do instante se agita, vibra uma perfeição esquisita ou o homem estava deitado em seu quarto, confortavelmente encolhido em lençóis nada espartanos, na última fase REM? De que andar do sonho o sonho é uma espécie de vidro emoldurado? Sem margens de se saber algo, que mal nos usurpa, que força contrária arrasta nossa inocência, que superfície regozija-se vendo o jorro do gozo? E lá estava, o homem, mas também o seu assustamento, armazenado num objeto duas vezes menor que ele, ali, toda a imagem de sua humanidade. Dos fios de cabelo aos pés, ainda lhe sobrando vistas para uma boa parcela do chão. Via-se também parte da roda traseira esquerda do carro e a ponta de uma vassoura esquecida. Desde que alugara a casa, há poucos mais de três noites, não tivera tempo de desbravar aquele setor do imóvel. Por isso, tudo lhe soava como uma grande novidade, mesmo as mais repugnantes velharias. O homem era recém-empregado numa agência de advocacia e, dentre todas aquelas coisas, a grande moldura pareceu-lhe a de maior serventia. Podia colocá-la em seu quarto, junto ao guarda-roupa, ou mesmo na sala, presa à parede, para que no chegar e sair de casa fosse possível averiguar com praticidade suas feições e suas vestimentas. O corretor, no ato da locação, avisou que a garagem estava em condições muito ruins, mas como o homem ainda não possuía um automóvel, não iria fazer tanta diferença assim. Falou também do velho carro que lá estava aportado - realmente uma barca aquele velho Galaxie 500 -, revelando a ele que o ex-proprietário da casa tinha uma oficina mecânica na Avenida do Batalhão. Por isso o deslumbre inicial, tudo ali era justificável. Tudo, menos aquele quase-espelho. O que faria um espelho tão grande e bonito numa garagem como aquela? Era realmente um disparate, e facilmente evidente que seu lugar seria outro a partir de então. O homem abraçou a moldura, desligou o interruptor, fechou a porta da garagem, entrou pela casa. Seu rosto, apesar do cansaço de um dia bastante corrido, aparentava agora uma fina alegria. Lembrou que havia deixado uma caixa com pregos no armário da despensa. Foi até lá, pegou o prego maior, voltou. Se colocasse a moldura no quarto, pensou, de que adiantaria ter resgatado à vida tão imponente objeto... não precisou pensar muito mais para tomar a definitiva decisão. Mais justo pregá-la na parede da sala, concluiu. E vendo que era uma boa escolha, assim o fez. Tomou do martelo e com quatro ou cinco golpes na cabeça do prego, o suporte estava feito. Içou a pesada moldura, mirou a pinça, pronto. O mais novo objeto decorativo da casa. Mas o tempo passou. Urbe congestionada, motoristas estressados e agora no peito do homem milhões de pensamentos eclipsados pela dor. Um conjunto de alucinações o rodeava. Não obstante o enfrentamento diário das mazelas do mundo quando de casa saía cedo, ou a visão de outros homens dirigidos por veículos envenenados cujos mártires diretivos nada mais são do que o reflexo de suas mais íntimas atitudes, o homem entrava em tumulto consigo mesmo numa constante irrefreável. Deixou passar as ocasiões em que os amigos estiveram em sua casa, alegando que aquelas primeiras impressões conturbadas ao se olhar através da grande moldura estavam inteiramente e completamente relacionadas aos copos de vinho que havia tomado nas respectivas confraternizações. Criara tão grande receio em fitar-se naquele espelho – por falta de outro nome, assim o nomeava -, que por mais de dois anos não ousara prostrar-se diante dele para tentar ver alguma coisa. Não contava seu segredo para ninguém. Segredos não se falam, pensava. Mas segredos podem ser ouvidos. Segredos, qual armas secretas, necessitam de esconderijo. Esquecê-los, de quando em vez, ou fazer papel de tonto. Uma saída. Uma das. Ou ainda não se importar com as aparências, guardar tudo a sete chaves, daí desenhar apenas uma metade da face e cobrir com gaze a outra parte. Seria solução esconder o medo? Até quando o homem suportaria? Estava diante de outra escolha inevitável, impávida, ereta, obrigatória. Fazer vazá-la, impossível. Postergá-la ao nunca, impetuosidade. A dúvida nascia por todos os lados. Feito a escolha, vem sempre a dúvida. Feito a dúvida, vem sempre aquilo que não foi. Daí que surgem as incógnitas, estes pequenos monstros que vivem na mente. Não enxergar nada quando se tem olhos é uma dor alcalina. A falta da imagem nega asilo, consente um eco de fraquejos. A obra de arte, o humano no homem, larga o zelo e esquece-se de guardar os seus pertences. Vai às forras congelando dentes, sem vergonha abocanhando, sacudindo, esmorecendo, soltando. O homem tem jogado na taverna, ébrio em sua morada, o cíclico fenecimento. Eram tudo divagações? E após muitos anos sem entrar na garagem, o homem pela porta entrou vestido em seu terno logo ao amanhecer. Procurou pelo interruptor e deu a luz. A garagem estava como da última vez, plena de faltas. Quase cinco anos sem entrar ali. Os mesmos pequenos tapetes emborrachados, como capachos, impregnados de fungos. Pelos quatro cantos da parede, um mofo ainda maior, uma atmosfera sufocante e o escuro sobre a face das coisas. Viu o carro, caminhou um pouco na direção da estante mais larga. Ao lado do motor do portão elétrico, sentiu o desuso das ferramentas, os fios desencapados, o que restou da máquina de solda. Olhou sentenciosamente para a moldura que trazia em uma de suas mãos, sentiu uma cavernosa tristeza. Colocou-a escorada na lanterna traseira do antigo veículo, a grande moldura em madeira, completamente limpa. Um grande espelho sem nada.

Um comentário:

Lou Salomé disse...

Lindíssimo texto. Parabéns!
Não conheceia o seu blogue mas já sou seguidora. (E convido-o a reciprocar!)
Um beijinho