domingo, 28 de agosto de 2011

Rua de passos


Por Germano Xavier

"Só os meus passos... Mas tão leves são
Que até parecem, pela madrugada,
Os da minha futura assombração."
(Mario Quintana, in A Rua dos Cataventos)


Eu saio por aí como quem não quer nada, e como quem quer tudo ao mesmo tempo. Percebo, tão logo desço as escadas do apartamento onde moro, que o mundo está repleto de coisas, umas mais desimportantes, outras sem as quais a vida seria apenas um estado ruim de sensações. Na minha rua, por exemplo, tem prédio de tamanhos equivalentes, uns semelhantes aos outros, encarrilhados a mentir uma aparente igualdade na condição humana. Tem também carros estacionados, muitos carros, pretos, cinzas, de cores diversas, de marcas variadas, cujos donos dormem ou fazem amor com suas mulheres ou, talvez, estejam pensando no dia de amanhã. Quando saio, assim sem nem mesmo avisar a mim mesmo, na verdade estou querendo vencer o tempo. Se ao menos eu conseguisse derrotá-lo uma vez, uma vezinha que fosse, miseravelmente uma vez, se ao menos eu sentisse dentro de mim o gostinho misterioso de tê-lo vencido por um segundo, um milésimo de segundo vendo-o desamparado aos meus pés pedindo socorro, implorando veementemente por clemência, tenho a impressão de que eu seria muito mais feliz. Felicidade é uma dessas coisas do mundo, uma coisa importante, sem a qual a vida seria apenas aquilo que disse antes: um estado ruim de sensações. Acabar com o tempo, no meu caso, seria estar mais perto da felicidade. Engana-se aquele que diz que existem mais de um tipo de felicidade, ignorando assim a natural gênese harmônica dos sorrisos. Vou dando passos para a frente e encontrando pessoas com as quais, talvez, nunca irei trocar uma palavra sequer durante toda a minha vida. Vejo meninos na pequena praça brincando de alguma coisa, até com coisas invisíveis e sinto, mesmo estando longe, que estão felizes. Moços e moças agrupados, sentados em bancos de concreto, cumprimentando-se com beijos e abraços entusiasmados. Outras mulheres limpam as entradas de suas casas, homens pregam em paredes algum tipo de aviso. Eles realizam suas tarefas e estão bem, enquanto eu passo com olhos firmes no azul celeste que aponta no fim do horizonte. Estou querendo apenas ser feliz, mas ser feliz sem fazer barulho é um jeito difícil de ser feliz. Às vezes o som da minha caminhada parece ser algo insuportável. É quando me desvio de mim, porque senão acabo surdo no fim da estrada. Quanto mais ando e perco para o tempo, mais a dor dos passos me invade a alma. É o nascedouro dos passos em falso. Todas as pessoas têm uma fonte de passos em falso dentro de si. É muito triste ter a sensação de andar em círculos, muito ruim vagar diante de um nada. E no meio do caminho, quando me bate a idéia de fracasso, mais um passo insisto a dar, agora não contra o tempo propriamente dito, mas contra minha fraqueza de pensar que estou na iminência de parar. Pois que ninguém é forte o bastante quando sente que perde sempre. Um dia tudo cai por sobre as costas e o peso implica na presença da morte, porque sair de casa é dar de cara com nossa mortalidade, tão indefectível. As crianças brincando nas pequenas praças são como espelhos estilhaçados, esparramados pelo chão de nossas casas, e mesmo se quiséssemos montar novamente o quebra-cabeça das coisas da vida, jamais conseguiríamos reformar a peça perfeita. E numa certa idade – idade da alma, que fique bem claro - o passado se transforma num emaranhado de poeira que não serve mais para absolutamente nada, senão para fazer volume. O presente? Ah, o presente é justamente o andar. O futuro, como diz o outro, só a deus pertence. Eu saio em busca do meu presente - e pensar que tanto tempo errei saindo em busca do meu passado, tanto tempo jogado fora à procura de um futuro mais agradável para mim. Um dia eu serei o futuro, disso tenho certeza, assim como certo é que aumentarei meu coeficiente de passados. Só o presente é que dispensa embornais. Por isso ele é assim, silencioso, quase não incomoda, não ocupa espaço. Por isso ele sabe tanto passar despercebido, até mesmo para ele próprio. Ele é tão fluido e escorregadio que, colocado diante dos nossos olhos, sublima-se com extrema rapidez. O tempo é o presente, o agora. O agora é o que olho quando caminho. O que perco de vista tanto pode fazer parte de meu passado como do meu futuro, isso só o ciclo da vida me dirá. Da mesma forma um dia posso precisar ouvir a voz daquela pessoa até então estranha que passou por mim logo quando comecei a descer as escadas do prédio. Porém, o mais importante de tudo é que em minha rua há uma rua completamente desconhecida, cujas esquinas me afligem o coração, cujos becos me desafiam o medo, cujos transeuntes me cobrem de interrogações, cujas calçadas me avisam sobre as pedras de se tropeçar, cujos obstáculos me fazem ir pensando nos melhores saltos, cujas luzes clareiam apenas o básico, cujos sentidos me são depositados na palma da mão, como feijões mágicos, restando-me somente escolher a direção do terreno onde plantarei os grãos de minha saída, ou seja, de minha definitiva entrada.

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Rapsódia sobre zodiacais


Por Germano Xavier

Há no texto uma personagem que ama. Texto, pois feito de palavras. Um arrumado de letras que precisavam sair, tomar um ar, formar um lugar que precisava existir e ser escrito agora, neste exato momento. A personagem que vai se declarar daqui a pouco, agora olha para o punho direito. Vê o ponteiro menor do relógio prata quase parado no número 1 da madrugada. Uma personagem porque está dentro do texto e, dentro dele, vive. Um personagem homem irá declarar-se. E é logo. Já quase tudo pronto, olha novamente para o relógio prata em seu punho direito. Quase duas, notou. Sucedeu-lhe um bocejo estranho. Não era hora de ficar fraco, ainda. Sono sem. E é agora, vai. Foi. Disse um "eu te amo". Pra começar, sussurou consigo. Ajeitou as fotos da Julia que se encontravam por sobre a mesa-máquina-de-costura dobrável que dormia uma solidão de ferrugens na mesma sala de estar em que a conhecera. "Tão distante, ela, aquela vez... inacreditável", lembrou. "Não posso ser diferente, amor. Sou assim...", disse baixinho, certa feita. Mesmo em pensamento Julia era linda e o personagem apaixonado. Amava sem fim... eu te amos porque amava. Via vindo dias sem igual, onde perder-se-ia no jardim mais lindo. Ficando entre flores, no baile do tempo sem pressa, dançando a rubra-cor-rosácea do amor. Mais lindo que o dele não existia. Julia se tornara a maior razão para se continuar vivo. Esperava chegadas e o amor em cores e mandava sempre um beijo do teu menino até quando ela não quisesse mais. Pois queria ser o que ela era. Julia foi mandar recado no dia de feira e ele não encontrou seu nome lá. "O que aconteceu?", era uma dúvida. "Você o apagou da lista?", era outra. Levava sustos e não entendia deveras nada. Ficava triste e não entendia o porquê. "Porque você sabe que é grande o meu amor. E fico sem norte e perco o sul". Dizia "li teu último rebento e acerco-me das minhas mesmas assertivas. Você é minha escritora de cabeceira, Julia". Em metalinguagem, dizia tudo e deixava tudo faltando, o que é sem mundo humano. Outra dimensão. "Venho lendo coisa boa de ti em ti". Lendo e mudando, de supetão. Mulher que ensinava e assustava. Que voltava! Voltava porque amava. Coisas que não poderiam ser ditas para vocês, eles, os dois, porque eram os vencedores. Aqueles que devastam. Os heróis perpetuados que se assombravam de espantos. O que causava medo mais que o simples temor de madrugada de silêncios. Venciam suas vontades e defloravam as portas de suas tímidas vegetações. Mar que engolia praias e o vento que invadia a lenda mais antiga dos folclores que já teci. Um amor desonesto e cuidadoso que veste e despe suas coragens de ser eterna obra de um escritor. "Se eu escrevesse poemas, escreveria um por você. Falando de flores e ventos e cavalos e planos. Falaria sobre telhado e chuva e sobre peixe que vive feliz, mesmo sozinho. Eu amo você. Sei que amo você e entendo sonetos quando penso em você. Poema só faz sentido quando temos memórias e lembranças. Eu tenho você. Te amo, Baby". Lutadores em guerra. Perdedores de si. Leões mansos e famintos. Número três na madrugada, o relógio prata no punho direito marcava. Marcava com ferro e brasa o tempo caído. Tinha algo no que ela escrevia que perturbava os sentidos dele. Lia seus textos e brotavam sensações que não sabia explicar. Era forte. Acabava de ler e ia tomar banho e fazia coisas e tinha orgasmos. Não o orgasmo pleno, mas a voz que falava através do que escrevia. "Você pode falar até de carros do futuro ou ventilador. Para mim, é sempre algo mais. A dor de ser e sinto sexo em cada palavra. Sinto amor em cada palavra. E odeio você como quem ama em desespero e silêncio". Dias aparecia com raiva e fome. Eram iguais em suas desgraças. "Tenho tanto para dividir com você, Julia. Meu amor não cabe em mim. Você tem o dom de me possuir e ser a dona. Eu escrevo carta, poema e livro inteiro para você, meu amor. Você vai ser muito feliz ao meu lado". Eu dormi. Estava enjoado e tonto. Sei lá o que me dá às vezes. E vim te ver. Essa hora da manhã e eu olhando fotos suas e estou me acabando de chorar ouvindo música e olhando você. A gente finge às vezes, mas isso está acabando comigo e com você. Sentimento que mata mais que acolhe, baby. Só queria chorar abraçando você. E você não é um menino. É um homem. Só queria ter sido sua antes. Antes de tudo. Antes até do começo do mundo. Porra, baby. Que você fez comigo? Era Julia amando. O amor que atravessava tudo, derrubando tudo, maltratando. Eu sei que você vem sempre aqui. Tenho a bela notícia... eu vou acabar com você de tanto amar você. De tanto querer. Você faz poesia. Eu crio combustão. Será que devo viver sozinha, baby? Sou sua musa. Quase medusa, quase blusa, quase lua. Quase embora, quase livro ruim, quase orgasmo, quase múltipla. Quase rio, quase mundo todo, quase Brasil. Quase mariposa, quase mesa pronta. Comida de todo dia. Quase novo gosto. Quase mala pronta. Quase desafino cores. Quase engulo monstros. Quase sou pior. Quase mãe completa, quase boca tua ditando regra semântica. Quase livro todo espalhado no chão. Quase planto corpo no corpo e tenho nome e quase espanto. Quase amo tanto. Quase odeio mais. Quase odeio tanto quanto amo. Amor é quando acordo desesperada querendo você. E você não está aqui. Vou acabar me devorando de tanto querer você. Essa é a verdade. Amor é até quando. Eu quero que você escreva para mim e descreva como é me comer, me ter, me amar do jeito que você me ama. Você não escreveu ainda. Eu quero palavras suas ... eu preciso. Você não me perde. E não terei outra face junto a minha. Trata de fazer algo... me buscar, me levar... ando doente de amor. Doente de amor por você. E viver sem você é a pior solidão que existe. Têm horas que fico na cama... deitada, lembrando. Das suas mãos em minha cintura, me puxando, seu corpo querendo o meu. Minha voz está na sua voz porque somos um só. Não sei fingir que você não é o amor de verdade que tortura, machuca e me faz querer sempre. Eu sou louca por você, você me tem. Em alma, amor e sexo.

Aquário - Oi, Julia. Ontem, depois do que você me disse, passou um filme longo na minha cabeça, sabe... fui dar uma volta na rua. Fiquei andando. Devagar. Queria passar a noite andando. Acho que andei por umas três horas. O filme na cabeça passando. Pensava em tudo o que você me disse durante todo esse tempo e comparava com você dizendo que eu sou igual, que olho para a superfície e não para o que há dentro. Você machuca meu coração dizendo isso, Julia. Tive a impressão de que você não pode me amar. Eu queria saber o que você quer comigo. Porque se for para ser assim, me diz. Eu te amo demais para ficar ouvindo essas coisas. Eu ainda estou aqui, li teus recados porque leio e sofro também. Vi mensagem daquela tua amiga no meu telefone e também me preocupo. Estou sem dormir, mas você não sai da minha cabeça. Te amo.

Peixes - A sua melhor amiga ligou para mim agora cedo. Retornei a ligação. Ela ligou de novo e falou sobre você e sobre o nosso amor. São essas coisas que me ensinam a ler este livro grosso que é você, Julia. Tenho parcela de culpa em tudo isso. Apareci em tua vida, e diante do que ouvi ontem, fico em dúvida se tenho mesmo o direito de tirar você do teu mundo e das pessoas que estão com você. A gente vive aprendendo e agora vou deixar por tua conta. Você sabe do tamanho do meu amor e não vou perguntar mais nada. Você não me deve satisfação. Agora tenho a convicção de que precisava ter. Que seja por apenas uma hora ou um dia o nosso amor, eu já serei o homem mais feliz do mundo. Porque conheci o Amor. Não vou pedir para morar com você, não vou pedir para você ficar comigo. As portas estarão sempre abertas caso você queira vir ficar. Sei que tua situação é mais difícil que a minha, Julia. As pessoas te cobram quando você só precisa de amor. Fui grosso com você ontem, mas é porque eu te amo...

Carneiro - Me perdoa por tudo, Julia. Não vou agir mais assim. Você não pode sofrer mais. Quero te proteger e te colocar no colo. Pôr você para dormir e te fazer carinho. Não tenho direito de machucar você. Agora, me ame do teu jeito, mas não fique me lembrando que eu não vou poder ter você para mim... por favor. É meu último pedido. Sou louco por você e compro cigarros para fumar também. Você é minha vida.

Touro - Je t'aime, je t'aime...

Gêmeos - Que nosso amor sempre consiga viver. Que ele seja forte o bastante para matar o tempo. Que não finja o próprio amor que tem. Que seja eterno enquanto. Que não tenha fim. Eu amo você, Julia. Aqui eu posso dizer que te amo quantas vezes eu quiser. Até o tempo ser nosso.

Caranguejo - Você bem sabe que não adianta retirar suas partes de mim, porque já é tão grande o ser que de ti guardo, tão grande a mulher que me amamenta com os seios mais deliciosos que sei, tão verdadeiro e puro e essencial que o amor não é abalado. Por ti vivo do jeito que quiseres, sem ou com, amo do mesmo amor. Para Julia do meu coração.

Leão - Julia, levantei e logo pensei em você. Saudade aperta e o dia aproxima e fico feliz. Você me faz feliz. Amo você sem fim nem começo. E nunca vou esquecer você porque simplesmente não quero. Simplesmente assim. Te amo pra sempre, minha vida. Mas é pra sempre mesmo!

Virgem - Meu simbolismo é a tua poesia, Julia. Campina do meu ulterior arder. Faço fogo por você. O céu de fogos estrelado. Fogo santo. Não foi você quem escreveu esse poema. Tira ele e coloca um seu. Te amo e te odeio. E ainda mato você. Ou você me mata. Um dos dois.

Balança - Não, Julia! Não foi coisa passageira, coisa de dias, coisa de uma semana o meu amor por você. Meu amor vai muito mais além. Não sei te usar e te querer só para o amor do corpo. Amo teus defeitos e tuas verdades.

Escorpião - Ontem estive pesado, cordas de piano velho e novo sendo esticadas pelo vento duro do mar que não existe. Veio um novo sol e com ele um dia mais leve e uma imagem presente. Você me pede para eu desabotoar o zíper do meu corpo e eu mostro minha arma de matar. Mas mato também com as mãos e os olhos e os pêlos da minha perna, de andar até você.

Sagitário - Todo dia é mais um dia de descobrir que a dor é uma coisa relativa, Julia. Você me ensina isso. Tenho certeza que com você por perto, não vejo dor em mim, nem agonia. Você me faz assim, ser sem dor. E quando não estás em mim, a dor é insuportável. Por isso preciso tanto de você. Amar e amar muito. Sempre e só seu.

Capricórnio - Faltaria dois dias para eu rever o grande amor da minha vida, a mulher que mais me fez e faz feliz. E um dia uso verbos no presente e não no passado. Amo você até o fim, Julia. Logo mais viajo para a casa dos meus pais. Eles foram importantes para mim, em todos os momentos da minha vida. Talvez não seria possível eu ter te conhecido se não fossem eles os ensinadores do caminho que acabei seguindo. Tenho saudade deles, como tenho saudade de você. Você que apareceu em minha vida e fez morada. Que me deu um novo ânimo para continuar vivendo. Hoje posso dizer a mim mesmo que tenho um amor e que esse amor tem nome. Estas palavras são para agradecer por tudo que você tem me proporcionado, Julia. Do fundo do meu coração, recebe um abraço meu agora e um beijo verdadeiro. Você é a minha luz e o que de mais importante tenho e acredito. Vou te amar para sempre, onde quer que eu esteja. Eu te amo. Sem fim...

... e vou tentar ligar de novo. Se você ainda me quiser, eu sou sua. Seremos. Se não me quiser, ainda serei sua. Você deixou marca forte em mim. E tenho orgulho e digo a todos que te amo. Pensa em nós, baby. Pensa que somos um. Pensa que somos o sim que a vida tanto precisa... sem você, sozinha e sem vida... vou ligar de novo. Te amo sim.

sábado, 20 de agosto de 2011

De tanto


Por Germano Xavier

é tudo tanto
deveras quando
me aproximei de ti

a palidez do amor
em verdade
de moça azul

é tudo tanto
despedaçado pedaço
que roubei

em meus braços
desaguando

e por assim distante
e de tanto fugir
e de tanto imaginar

um de mim
me iludindo

tanto o triste canto
quis abafar o que vazava
no ar é que morro
em meu crivo maciço
de todo mar de amar

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

O vale das borboletas


Por Germano Xavier

Uma borboleta azul pousou em seu ombro de mulher. Um pouso suave, como deveria ser toda aterragem de borboleta. Bela e cintilante, a pequena notável tivera pousado em terras femininas. Talvez tivera sido atraída pelo cheiro da alma feminil ou, talvez, ficado encantada com a beleza, também singular, daquela moça.

A rapariga descansava seu corpo na sombra de uma árvore centenária, diria milenar. Seus olhos fechados não foram capazes de perceber a chegada da borboleta. A sensação das suas perninhas tocando aquela tez branca também não fora percebida. A borboleta abria e fechava suas asinhas, mexia suas antenas pretas como se estivesse querendo dizer alguma coisa. Mas a moça continuava em seu profundo repouso. Emprestar um pouquinho de beleza a este mundo tão feio e miserável, talvez fosse mesmo um trabalho muito árduo.

A tarde vinha chegando...

Depois de percorrer todos os cantos da menina, da cabeça aos pés e dos pés à cabeça, a borboleta, após um leve vôo, foi parar na orelha daquela criatura que não aparentava nenhum desconforto com todo aquele zigue-zague que o pequenino inseto imprimia. O sossego era tamanho que, se porventura caísse um meteorito ao seu lado naquele instante, devo crer que seus olhos ficariam ali fechados, trancados com as chaves dos sonhos mais distantes.

A borboleta insistia, mas nada acontecia. Foi aí que ela içou um resoluto vôo até a altura superior das costas da menina. Chegando lá, abriu suas asas de um reluzente azul-marinho e, como num passe de mágica, a borboleta atravessou a barreira do espaço-matéria da pele, fazendo-se tatuagem. Agora a jovem tinha uma borboleta azul tatuada em suas costas.

Não demorou muito e a menina despertou. Mas não foi um despertar comum, de humano; fora um avivar de borboleta, como se tivesse acabado de sair de seu casulo. Os braços foram elevados, os cabelos foram penteados pelo vento, as pernas serviram de um impulso e, de repente, um vôo. Um infinito vôo.

Um vôo de menina-borboleta... E nada foi como antes.

Corporificação do alto nada


Por Germano Xavier

a quem não pesa
os vazios de dentro,
terminada a colheita
dos grãos
e ainda sob o seco
efeito do acontecido,
farei entendimento
perfeito
daquilo que é inconsciente e infinito...

separando do que deriva
a fonte de todo desejo,
e celebrando a existência
nas águas desmedidas,
objetarei na fria base do sentido
o meu excesso,
reconcebido
numa grávida
e indecente infância
e seiva nomeada
em sangue.

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

O tempo amarelo


Por Germano Xavier

A bolsa era amarela a da menina. Tinha uma rosa pintada à mão com tinta de tecido. O tempo era também amarelo. Falso, fraco, porém amarelo. O tempo havia adormecido. A coberta do tempo era do mesmo modo amarela. Assim como o papel do bombom deixado sobre o caderno rosa. A sala estava agora vazia. Virei a cabeça na direção da cadeira em que ela se encontrava antes de ter saído e vi, dentro do papel amarelo do bombom, uma mensagem...

“Nosso coração sabe imediatamente aquilo que nossa mente custa em descobrir”.

Eu não tinha noção do vazio daquela sala vazia. Nem suspeitava do amarelo do tempo. O ar totalmente condicionado a esfriar a pouca quentura que ainda existia em meu peito. Minha mão esquerda amarela sendo capturada pelo tempo amarelo no vazio da sala vazia. Na outra mão, um livro. Um livro aberto e a cor branca da folha branca do papel manchando o amarelo do tempo.

Afinal de contas, todo tempo é maculado, um dia ele sofre como sofre o humano quando não é cristal o pranto. Um dia todo tempo fica envolto por um merecimento de cor. A glória milenar do tempo é a memória carregada no dorso, tempo do tempo... Toda cor tem um tempo, tempo de nódoas ou tempo de tinturas coloridas em verdade. Todo tempo sabe a cor que possui. E o tempo da menina era o mesmo tempo da bolsa amarela pintada à mão com tinta de tecido em rosa charco dentro do vazio daquela sala vazia. Era um tempo de volta. Tempo de uma certeza quase certa de que ela viria em algum momento. Uma espera, também, de que o tempo mudasse aqui dentro, onde estive por todo o tempo em que ela não esteve, e mudasse para outra cor.

Olhei a porta, de dentro mesmo, e nada. Nenhum sinal. Nenhum barulho lá fora. Uma pequena chuva era anunciada pelos arautos nebulosos. O tempo ainda amarelo amarelecendo o meu tempo, tornando-o cinza de tão amarelo. Um tempo sozinho, página em branco, mensagem de erro, cadeira virada, a paixão segundo o sol que desaparecia no alto de minhas vistas.

E eu relendo a mensagem no papel espelhado e amarelo do bombom...

“Nosso coração sabe imediatamente aquilo que nossa mente custa em descobrir”.

Foi quando eu percebi a maçaneta sendo girada, de dentro, no vazio da sala vazia, a maçaneta rotunda girando vagarosamente. Tão lentamente que dava tempo de pintar meu tempo de uma outra cor mais forte e pesada, cor do receio. A maçaneta rodando rotunda e amarela e agora cor de receio e cor de suspeição e cor de assunção até o estalido no fim de seu curso giratório. A porta que se abre e o amarelo sufocado do tempo que foge pela abertura cada vez maior da porta. O vazio da sala vazia sendo preenchido por uma cor sem-cor, cor de mistério.

Depois do vazamento, a surpresa do meu coração. Não era ela. Não era... e o tempo se coloriu de um outro tempo, tempo de gerar outro tempo até o triunfo da chegada real. O tempo que mata, este tempo, tempo de assassinar o teu desenho interno de gente. O tempo que é começado no justo instante em que, de novo, a rotunda maçaneta, antes amarela, é lançada ao encontro do umbral negro e metálico do tempo das portas fechadas e do tempo que ainda há de vir a ser...

terça-feira, 16 de agosto de 2011

O problema


Por Germano Xavier

Continuação para o conto "A Solução",
de Clarice Lispector.


Almira numa certa noite inventou de fazer uma tereza com os únicos três lençóis de cama que possuía, depois de passar anos serrando surdinamente com uma faca o gradil da janelinha da cela, e num vulto sumiu no mundo novamente. Não deixara nada como recordação. Na prisão, virara mito. Podia ser novata ou veterana no xadrez, mas o fantasma da “elefanta de circo” rondava as bocas em papeação constante, em quaisquer que fossem os corredores e em todos os pavilhões. Mas o certo era que ninguém mais tinha ouvido falar em Almira. Algumas colegas de cela, mesmo passados dois anos ou mais da precipitada fuga, ainda empregavam lembranças da gorda em suas cabeças vazias. E diziam em pensamento que ela agora devia estar comendo, comendo chocolates, comendo como sempre comeu, empanturrando-se de qualquer que fosse a coisa, enchendo-se de qualquer matéria e preenchendo aquela pança insaciável, aquele estômago insociável. Almira ficou sendo procurada pela polícia por todos os cantos da cidade, até recompensas foram oferecidas a quem tivesse indícios do local onde ela pudesse estar. Mas nada acontecera. Almira jamais fora encontrada. Depois de mais alguns anos, o caso foi arquivado e posteriormente dado como encerrado pelos investigadores. O mais curioso de tudo aconteceu faz bem pouco tempo, quando um crime chocou a pacata cidade onde o que de mais cruel tinha acontecido em toda sua curta história de emancipação fora justamente o estouvado ataque a garfos de Almira em Alice no restaurante. Alice, que ficara afônica depois da garfada no pescoço que recebera de Almira em idos de antanho, havia saído de casa para comprar produtos alimentícios no armazém do bairro. Naquele dia Alice não voltou para casa. Ficou no meio do caminho atrapalhando o tráfego inexistente no justo momento em que estava fazendo o percurso de retorno. Os olhos esturricados dos passantes denunciavam a magnitude do caso. Falaram depois, quando o alvoroço se distendeu do imaginário da população, que a pobre moça morrera em plena rua com duas colheres enfiadas nos olhos. A polícia, na hora, chamou por alguma testemunha, porém ninguém se prontificou a dar algum tipo de depoimento. Exceto por um menino marronzinho de seus doze ou treze anos de idade, que dissera estar descansando o corpo do sol graúdo na calçada do bazar do velho Apolônio enquanto arrumava sua caixinha de engraxate. Falou que vira uma mulher magra entrar pela casa de número ímpar da esquina. Os policiais pediram mais informações, mas o menino não soube oferecê-las. O que podia dizer era já tudo e já gasto: uma mulher magra entrando na casa da esquina de número ímpar. Coincidência ou não, a casa em que Alice vivia era contígua à casa a que o menino se referia e que, por sua vez, era justamente a casa que fora de Almira no tempo em que andavam juntas e iam para o escritório labutar no mister da datilografia. A polícia levou o caso a estudo, agiu secretamente e fuçou a vida da possível assassina com a preocupação de não invadir a privacidade da mulher. Era consenso na corporação só agir em definitivo caso provas cabais pudessem ser levadas adiante e posteriormente servirem na incriminação da moça suspeita. Nada descobriram. A moradora da casa de número ímpar da esquina era realmente magra, tinha praticamente a mesma altura da desaparecida Almira e gostava de ficar olhando para o aquário quando a tarde ia caindo no horizonte. Fora isso, nenhuma pista segura. Muitos associaram o fato a uma provável vingança de Almira, mas Almira não existia mais. A gorda e psicopata Almira era apenas uma das lendas urbanas daquela cidadezinha incrustada onde o vento faz a curva. Nas noites escurosas, um ou outro sempre levantava o causo da mulher que apagava a voz das pessoas enfiando garfos em seus pescoços, mas nunca contavam o causo da mulher que cegava as pessoas enfiando colheres de sopa dentro dos globos oculares. Diziam ser maldição alvissareira, coisa ficciosa demais. E logicamente as crianças morriam de medo quando ouviam. Por isso, de noite, dormiam encolhidamente intranquilas e enroladas em seus cobertores de sonhos, e também de pesadelos.

O Auto da Barca do Inferno (uma impressão)


Por Germano Xavier

A linguagem, como para qualquer indivíduo que se preste à arte da literatura ou, ainda, às artes que dependem do poder e da representatividade da palavra, é o veículo que Gil Vicente melhor explora para extrair efeitos que vão do cômico até o poético.

Escrita em verso, assim como todas as suas demais obras - exceto os poemas que fez para o “Cancioneiro Geral”-, a peça “O Auto da Barca do Inferno” incorpora trocadilhos, ditos populares e expressões típicas de cada classe social. O arcabouço cênico vicentino, em especial nessa obra, apresenta enredo muito simples.

Um devido reflexo da diversidade dos tempos e do transporte da Idade Média para o período do Renascimento, “O Auto da Barca do Inferno” realiza um balanço de um estágio histórico onde as hierarquias e a organização social eram regidas por normas e leis inflexíveis, por ora invioláveis, para uma nova ordem onde se começa a subverter o instituído, a criticá-lo.

Primeiro texto da trilogia das “Barcas”, “O Auto da Barca do Inferno”, escrita em 1517, é uma alegoria que tem como pano de fundo o drama humano. Uma moralidade farsante; amostra de uma sociedade que lida com estereótipos e modelos. O comportamento humano é o alvo a ser atingido, pois é o homem o réu, a entidade que está sob julgamento.

Gil Vicente analisa o espectro lisboeta com os olhos de quem deseja investigar as manchas e a podridão dos segmentos sociais e dos estabelecimentos portugueses e retirar de todo o espaço corrupto e não corrupto a fenda para o progresso de um povo, ou expôr uma ferida aberta pelos anos de devassa e falta de apreço pelo que é ou se imagina humano.

Sentimentos e percepções antitéticas, características do homem e da sociedade medieval, perpassam todo o enredo do auto, levando o leitor ao êxtase no mesmo instante em que ele próprio se enxerga no espelho do júri criado pelo teatrólogo e também sente-se medido pelas forças antagônicas do Bem e do Mal.

Um clássico da literatura portuguesa, simplesmente, tão antigo quanto os desmandos e essa nossa complexa mania de construção de caráteres díspares perante as circunstâncias da vida. Em resumo, um elogio à maleabilidade do fantoche-Homem.

O poeta e o passarinho


Por Germano Xavier

Naquele dia o sol havia amanhecido mais radioso. Eram raras as vezes em que, logo ao alvorecer, os girassóis do mundo estivessem completamente virados para o centro luminoso do astro-rei. Até ali, os dias tinham sido bastante cinzas. Era uma terra muito fértil. Um lugar muito prodigioso. As árvores eram tão altas que, estando em certas posições, ficava completamente impossível enxergar o azul do céu. E o verde das árvores parecia único. A beleza daquele lugar era inquestionável. As águas despencavam, perto das nuvens, formando cachoeiras enormes. As pedras brilhavam, e eram como preciosidades diamantadas pela ação da natureza. Um lugar onde nada faltava, ou melhor, quase nada. Faltava, sim, uma coisa. Mas como, se aqui estão todas as plantas, todos os animais, todas as curas, todas as matérias e todas as formas? Não. Certamente, faltava alguma coisa. Uma coisa. Uma forma misteriosa, capaz de se esconder dos olhares mais desconfiados e ligeiros. Faltava algo, e era como se tudo fosse uma só ausência. Era como se se percebesse um mundo doente e cabisbaixo, repleto de feridas e manchas. Próximo a uma montanha havia um bosque rodeado por cintilantes roseiras e gigantescos ciprestes. As rosas eram de todas as cores, brancas, vermelhas, amarelas, verdes... Porém, ao cair da noite, todo aquele colorido original desfigurava-se em noite escura e, dali por diante, até o raiar do novo dia, nada se podia enxergar. Tudo, essencialmente tudo, ficava encoberto por um véu negro de sombra. Tudo era sombra e silêncio. Nada se ouvia, nenhum pássaro se disponibilizava a quebrar a quietude das horas. Mas faltava alguma coisa, e essa coisa parecia estar muito distante dos sentidos humanos. Naquele bosque havia um passarinho muito estranho, muito diferente dos outros. Quase não se ouvia. Enquanto os outros cantavam suas canções, este sussurrava. Jamais fora visto pelos homens que ali viviam. Chamavam-o de Pássaro-Rei e o bosque era o seu palácio. Diziam que o seu canto tinha o poder de enfeitiçar as pessoas. Havia, entre as pessoas, um certo receio, um certo medo. O que se pensa ou imagina, quase sempre se concretiza. O ceticismo diante dos acontecimentos talvez fosse o mais notável e inteligente dos sentimentos. O pensamento era superstição. Certa vez a terra tremeu. Os ventos desmontaram toda a normalidade das conjunções mundanas. De dentro da pequena floresta emergia um enorme pássaro de asas brancas, e feito a Fênix, fez-se aparecida. As águas se elevaram até conseguirem tocar o céu. As nuvens desceram e tocaram a superfície. O ar tomou a forma de um tufão e abriu um grande vale. Bem no meio daquela abertura ficou o grande pássaro. Depois de bater por uma vez suas asas, ele içou vôo. No lugar onde estava se encontrou uma folha de papel com as seguintes palavras escritas: "O poeta é um pássaro de estranho comportamento. Ele desce de seus altos domínios para pairar entre nós, cantando. Se não lhe rendermos homenagens, ele recolherá as asas e voará de volta aos píncaros". Depois um outro dia.


(24/10/2005)
Citação final de Kahiil Gibran.

O artista e a liberdade


Por Germano Xavier

O artista é, por natureza, um vaidoso. Envaidece-se. Unta os olhos de contemplação, orna os caminhos por onde passarão seus delírios e, por fim, desfila pelos mais ermos logradouros sua imagem de mundo. O artista não teoriza, cria. E se teoriza não sabe se. De sua mão, primeiro instrumento de consciência humana, germina o sentimento vital, aquele que fomenta a manifestação mais pura da liberdade: a Arte. Todavia, será mesmo a Arte um espaço sem muros?

Nem a Arte é livre - posso pensar assim? -, já que só é capaz de sugerir e incitar emoções através de imagens arranjadas seguindo uma certa ordem, a ordem da composição. Mas é o artista o ser que está mais perto da independência, ou seja, da liberdade. É ele que, criando e recriando o belo e suas todas ramificações, destiraniza o espírito da humanidade. É o artista que, em certa medida, gera um processo de autonomia de personalidade, visto que nossos sentidos estão sujeitos a todas as espécies de inibições e repressões.

O verdadeiro artista é aquele que sofre, e do sofrimento se alimenta. E sofrer não é apenas dor. A alegria também pode ser sofrimento. O verdadeiro artista é aquele que vomita em qualquer forma de opressão. O artista é, literalmente, um vômito sem cor, formato nem recheio pré-estabelecido. Ou deveria. Ao refletir nos espelhos da vida as imagens traduzidas em seu interior, o artista se submete a um processo de mutação, conseguindo mutar, por influência, todos que da ação artística se alimentam.

Salve o artista, o pássaro pousado no farol das imaginações.


Publicado na saudosa "Revista Visões - Materializando Idéias", em 2005.

Contrarrelevo


Por Germano Xavier

não importa
a rubreza sanguínea ou se
a ferida é maligna
a verdura
do pensamento
e o lacre

do que silencia

na falta
da dor na ferida
importa o objeto
estranho
fincado dentro de nós
como novidade
como partilha

O mestre


Por Germano Xavier

no meio do horizonte, lá para as bandas da civilização oriental, existia um ancião bastante conhecido por seu alto grau de sapiência. o velho era muito experiente e aqueles que aderiam a sua ideologia de vida o chamavam de mestre dos sonhos. os discípulos tinham na figura do mestre a fonte de maior inspiração, esperança e positividade. acreditavam que somente ele possuía o dom da revelação. em certa ocasião, o mestre chamou a atenção de um discípulo seu, que ainda encontrava-se em desconfiança com relação ao que o mestre tinha a ensiná-lo, visto que era novato no grupo de seguidores. o mestre, então, tomou-o pela mão e o levou ao alto de uma montanha, onde o discípulo nunca havia estado antes. lá do alto dava para se ver os bosques, os vales, os riachos e as cachoeiras. depois da surpresa, o discípulo veio ao mestre e disse: "nunca pensei que a beleza natural e cintilante ainda ocuparia grande parte desta terra escura e sem vida. o velho ditado que diz que as aparências às vezes enganam tornou-se viável em meu pensamento a partir desse instante". o mestre, vendo tal espanto e admiração por parte do aprendiz, exclamou: "isto que você está vendo agora é o sonho! lugar onde pensas ser impossível descobrir. a escola ensina aos seus alunos o caminho seguro, onde o chão é sempre firme e que você nunca cairá. estará certa? já eu quero ensinar você a chegar onde não imagina que possa. está vendo toda esta beleza? ela é real! porém, para você conseguir chegar até ela, você atravessará os maiores desafios da sua vida". o homem capaz de tocar o paraíso é aquele que aprende a vencer o medo, a insegurança e sabe respeitar os seus próprios limites, mas que acima de tudo tem um sonho. o caminho se torna gradativamente mais incerto e inseguro. as pedras são disformes e ao atravessar o rio, você não saberá em quais pedras pisar. a sua única alternativa será a escolha e, para isso, terá de arrancar o medo de dentro de si. fará do seu nariz a rota a ser seguida. a distância já não importará mais e todo sofrimento não doerá, pois a recompensa será maior do que todo o seu sacrifício. o básico que a escola te ensinou, quase não servirá mais para nada, você terá de ser completo. a floresta escura e traiçoeira tornar-se-á uma aliada, as armadilhas e dificuldades já não serão capazes de fazer com que você mude de direção. o sonhador tem o dom de transformar as dúvidas em grandes certezas e o poder de apagar as chamas da desilusão simplesmente com palavras, que se tornarão ensinamentos diante de seus seguidores. veja, meu caro discípulo, que tudo isso que acabo de falar é apenas o reflexo da face de um campeão, o verdadeiro guerreiro, aquele que vai à luta e busca ganhar. isto é que faz do sonho ser algo tão desejado. portanto, tente acertar novamente e não desista na primeira decepção, porque você pode e é o verdadeiro sonhador.

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

O lavrador do self


Por Germano Xavier

Sou um homem eterno. Faço de mim aquilo que espero. Por mais que eu não represente muita coisa para muita gente, quem me conheceu não me esquecerá jamais. Quando quero, não faço resenha. Sou meio personagem de Melville, o escriturário. E acredito que toda forma de poesia é uma nação. Ainda não li nada do Edward Hirsch, mas sou estojo e o conteúdo que modela. Soa premonitório por demais dizer que sou isso ou aquilo que serei, mas é que sou. Sofro de neurastenia, claudico, vivo de viver momentos agônicos e ando de Dodge Charger R/T só porque ele foi símbolo da contracultura. Aliás, sou do contra em quase tudo. O pessoal todo pensa que eu sou alienado porque não sou muito de falar. Mas por dentro eu falo tanto! Meu estropiado amigo, não se preocupe!... ainda não usei do “porviroscópio” do Monteiro Lobato. E a culpa da mania de brancura de Hitler é toda de Francis Galton. Gosto de leite e sou estapafúrdio. Minha literatura preferida nos últimos anos pode ser considerada aquela em que no enredo há sempre duas ou três personagens do meretrício. Leio e amo. Vezenquando – não se espante, é assim mesmo que quero, juntinhas-, gosto de tergiversar. Fujo de assuntos e de pessoas que não me fazem bem. Tête-à-tête é coisa rareada em minha vida. Vezenquando também penso que todo o resto do mundo é idiota, e não sei se sou mais feliz por pensar assim. A torpe humanidade não me fez pisar em formigas e dar risadas logo em seguida. Meu riso é comedido porque eu tenho medo dos “crepúsculos esbraseados”, como diria o C.F.A.. Não sou galinha ou galo, mas me empoleiro. Os arroubos precoces da noite me fazem cantar e é aí que a poesia me ocorre. Sempre acreditei que a poesia é o meu exílio, e também não sei dizer se sou mais feliz ou mais triste por causa disso. Outro Edward, agora o Said, já dizia que “poucas dores se comparam à do exílio”... e eu tomava como correta a frase e até a reproduzia nos frontispícios dos meus cadernos de escrever. Sou canastrão e meu teatro está falido. Eu falo isso de propósito, porque é quando tudo acaba que as pessoas te valorizam. Eu sei do meu valor e não entro em casa de sogra sem ser querido. Sou e sou niilista. Nada pra mim é o real. Para que perder tempo com pantufas? Prefiro minha natural natureza de ser duro e fechado. Atrás da polícia corro eu. Dou golpe de vista e ando feito o pipoqueiro. Um meteoro inteiro sumiu com meus chinelos e agora ando descalço mesmo, obrigado. E para quem não sabe o que significa a sigla C.F.A., que coloquei um pouco acima, digo que são as iniciais do Boqueirão. "Caio Fernando Abreu, morri de AIDS, prazer conhecê-lo!"... Simulacro de nós e nós somos a distância dos estrangeiros da gente. Sou daqueles que fabricam imagens só para te apunhalar no fim. Minha intransigência é o osso do meu ofício. Amo e odeio quando os outros me amam e me odeiam. Não queria que eles me enxergassem. Eu seria muito mais completo caso passasse despercebido. Mas, como te falei no início desse texto, eu sou inesquecível. Embora tenha estados de delicadeza, sou de uma linhagem humana que se afasta das pátrias e, porque não dizer, das mátrias. Incluo em minha biografia a reunião de beijos que dei na boca da vagabunda de porcelana. Igrejas já não me cativam e mato deus se for preciso. Originalmente me chamam pelo nome que me deram, mas não me agito com mocinhas que não leram Kakfa. Tenho idade de ser seu pai e tenho a idade que preciso. Sou santo lá em casa, sou imagem e até símbolo. E todo dia, eu e este meu comportamento iconoclasta, definho-me, sufocado por ser eterno, na fescenina intenção de ter uma nova cara e poder suportar o milagre deste imundo mundo.


Hoje, após o peso nas costas de todo um mitigar-se.

Consonância de medos


Por Germano Xavier

Pano negro de sombra
sob o castiçal em luas.

Garganta em pregos
dissipada.

Definho-me, espectral,
aceso em gritos.

O amor do Pequeno Príncipe


Por Germano Xavier

Quem de nós, bons leitores, não se viu um dia agarrado à clássica história do princepezinho que vivia num asteróide cuidando de alguns pequenos vulcões, e que conversava com uma rosa...? O Pequeno Príncipe é daquele tipo de livro que jamais apagamos de nossa memória. Ao menos, comigo é assim. De quando me entendo por gente, ele foi o segundo livro que li na vida - o primeiro foi Meu pé de laranja lima, do carioca José Mauro de Vasconcelos. E o li como quem sentia fome, devorando-o. Esse pupilo da literatura mundial, publicado pela primeira vez em 1943, nos Estados Unidos, e um dos livros mais traduzidos e lidos em todo o mundo, também tem - como posso dizer? - suas "continuações". Estou falando do livro O amor do Pequeno Príncipe - Cartas a uma desconhecida, escrito pelo mesmo Antoine de Saint-Exupéry, escritor e aviador francês. Do mesmo modo como aconteceu ao livro principal, o autor, também um exímio ilustrador, utiliza-se das palavras e dos desenhos para nos revelar uma história real e cheia de significados. Trata-se de um conjunto de nove cartas escritas para uma moça de 23 anos que certo dia ele encontra numa viagem de trem. Saint-Exupéry logo se apaixona e os dois vivem um relacionamento conturbado. A moça era casada e o autor, bem mais velho, vivia o que seria o último ano de sua vida. São cartas, algumas delas com apenas uma curta frase ao lado da imagem do Pequeno Príncipe, que revelam um Saint-Exupéry realmente desejoso de que o caso fosse levado adiante, porém profundamente decepcionado com a falta de correspondência da moça, a quem chama de "menininha". Um livro sobre uma tristeza real, e sobre como livrar-se dela, mesmo sentindo-a insuportavelmente no peito. Uma prova de que, às vezes, os contos de fadas, como diz o autor, "são as únicas verdades da vida".

SAINT-EXUPÉRY, Antoine. O amor do Pequeno Príncipe: tradução de Alcida Barbosa Caldeira Brant. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.

O jornalista e o Tempo


Por Germano Xavier

O seu Cavalvanti jurou, certa vez, que jamais mentiria para alguém. Melhor explicar direito. Este "alguém" pode, sem que ocorra um desajuste contextual, ser substituído pelo termo "leitor". Então, vejamos. Colocando os devidos "pingos nos is", a frase mais coerente seria essa: "O seu Cavalcanti jurou, certa vez, que jamais mentiria para um leitor, ou melhor, para um de seus leitores". É preciso enfatizar, aqui, o número maior que uma unidade. O seu Cavalcanti estava mais para um diletante, apaixonado que era pelo fazer literário, que para um jornalista, ofício que cultivava desde que conseguira uma vaga na redação do maior periódico de sua cidade, o jornal "A verdade". Tirando os naturais descompassos que todo ser humano sofre durante sua existência, esse era o maior e mais dorido dilema na vida do seu Cavalcanti, o de "ser ou não ser um jornalista?!" ou "ser ou não ser um literato?!". Para ele, a coexistência dos dois modelos, o jornalístico e o literário, era impossível, ou, na melhor das hipóteses, pouco provável. Foi tanto que, durante todo esse período de dedicação ao fazer jornalístico, o seu Cavalcanti jamais ousou misturar "alhos com bugalhos". Sempre gostou de ver as coisas em seus devidos lugares, ocupando os seus devidos espaços. Introduzir o seu vasto sentimento de humanidade, adquirido somente com o advento da leitura de centenas de livros, no corpo de um artigo, reportagem ou qualquer que fosse o estilo da matéria, implicava numa prática de ordem amoral, infundada e, por vez, até pecaminosa. Isso porque, para seu Cavalcanti, as margens ficcionais, assim como as arestas da imaginação humanizada e verossímil fomentada nos campos verdes da literatura não poderiam e não deveriam conviver na sordidez do ambiente das "palavras inconsideradas", como diria o Florence Dravet, no sufocante universo da ordem lógica e sucinta, ou seja, na mecanicidade dos parágrafos germinados nas redações dos jornais. Seu Cavalcanti tinha pelos livros um amor bizantino e pela leitura uma verdadeira devoção. Hoje, nesse mundo veloz, em que a paciência é mais que uma dádiva - por sinal raríssima -, é muito difícil encontrar uma criatura tão "grande" como foi o seu Cavalcanti. Ele era de um tipo inesquecível, daqueles de boa retórica. Daqueles que, mesmo falando pouco, diziam muito. Mas o seu Cavalcanti não era muito de falar, gostava mesmo era de escrever. Quer saber quem era o seu Cavalcanti? Então leia seus escritos! Seu cavalcanti era uma espécie rara na classe dos jornalistas. Estava mais para uma peça de museu - não por causa de sua idade ou coisa parecida, mas sim pelo seu alto valor agregado. Uma relíquia. Pontual como um relógio suíço, saía de casa após ter lido as principais manchetes do dia nos principais impressos da cidade onde morava, e se dirigia à redação do "A Verdade" num gesto já quase automático. Não seria exagero dizer que se colocássemos um pano preto na altura dos seus olhos, ele, de tão acostumado ao percurso, facilmente chegaria ao seu destino de trabalho. Seu Cavalcanti fazia esse ritual sagrado sempre a pé. Era sempre o primeiro a chegar... muitas das vezes antecipava-se ao próprio porteiro, e também era dele os sons dos últimos passos do corredor daquele prédio. Para o seu Cavalcanti, a notícia assemelhava-se a uma pedra preciosa ainda não lapidada e que, assim sendo, precisava ser trabalhada com muito cuidado e esmero. O maior medo do seu Cavalcanti era de um dia ser preso. Este talvez fosse o seu fantasma mais azucrinante e perturbador. Durante todos esses anos de experiência, já tivera o infortúnio de presenciar o linchamento e a prisão de inúmeros colegas de profissão, sempre acusados de desrespeitarem os regimes políticos vigentes ou de estimularem no âmago do povo um sentimento de revolta contra a ordem governamental em exercício. Foi assim no período da Ditadura Militar, época em que perdera um de seus melhores amigos, o Juarez, que também era jornalista. O fato é que o seu Cavalcanti nunca havia sofrido sequer uma ameaça ou ordem de aprisionamento. E disso ele se vangloriava. Dizia que era porque nunca havia cometido uma inverdade ante o povo, que nunca escondera cartas no jogo da informação, que jamais difamara alguém sem merecimento, que jamais tivera a intenção de incomodar a dinâmica do mundo. O seu Cavalcanti era mesmo um jornalista especial. Tratava todos com muito carinho, sempre de sorriso no rosto e disposto a fazer tudo o que seu chefe mandava. Era complacente, e pensava que, utilizando-se daqueles modos, estaria dando um exemplo aos iniciados na carreira. Seu Cavalcanti não era nem tão velho assim, mas era o mais velho da casa. Certamente, sem divagar ou duvidar do assunto, seria ele a voz da experiência em todo aquele recinto de labor... Mas os outros preferiam não incomodar o seu Cavalcanti, aquela "pedra preciosa" totalmente intocável. A sala onde preparava seus textos (tinha preferência por escrever à mão, pois dizia ser mais natural e, para ele, os jornalistas deveriam ser e agir com a maior naturalidade possível) era personalizada, com paredes cor de mostarda e luz fosforescente. Ficava situada no fundo da repartição da editoria da qual fazia parte. E aquilo, para ele, era mais um fator de orgulho e satisfação interior. Achava que era ali, num canto mais reservado e distante, o local mais digno para que um jornalista-modelo como ele fosse livre o bastante para desempenhar o seu papel. O seu Cavalcanti era mesmo um jornalista de "bons olhos"... e põe bondade nisso. Das oito horas da matina até as seis da tarde, a literatura ficava em segundo plano na vida do seu Cavalcanti. Esse tempo era dedicado exclusivamente ao fazer jornalístico, ao retirar dos excessos, ao cortar das sobras, ao ceifar das imagens e sentimentos sobressalentes. Afinal de contas, esse era o trabalho do seu Cavalcanti e , mais do que isso, era o seu ganha-pão. E a ele devia todo o seu patrimônio, toda a sua situação razoável de vida até o prezado momento. Seu Cavalcanti era, antes de mais nada, um jornalista feliz. Não possuía motivos para ser macambúzio, cabisbaixo ou relutante. Sempre tivera o que quis, carro, casa, família e, principalmente, um nome na praça. O seu Cavalcanti era gente fina, "um jornalista à altura de seu tempo", assim diziam os moços de cabelos grisalhos nas diversas pracinhas e logradouros da localidade, jogadores eternos de dominó e gamão, seu fiéis leitores. Talvez os únicos leitores... Mas, pensando bem, do jeito que as coisas estão, não era de se espantar se víssemos um jovem entretido e com o olhar paralizado no justo espaço de uma matéria diária escrita pelo seu Cavalcanti. Os leitores estão cada vez mais obsoletos, ultrapassados. Estão sempre retornando aos antigos, não sabem cultivar a novidade, os novos escritores, os novos temas, as novas formas, os novos gritos. É certo que devemos procurar o passado, mas viver somente de seus frutos, sem ao menos conjeturar com o que nos é contemporâneo (do conjugar pós-moderno), é realmente um pecado capital, fonte de uma "des-fonte" intelectual indivudual que acaba sucateando a mente humana. É fato também: vivemos, apesar de toda essa transformação social, de maneira atrasada. Nossa nação é atrasada. Nosso povo é atrasado. Nossos leitores são atrasados. Não há desejo pelo novo. Seu Cavalcanti sempre foi um inovador. Mesmo quando a "onda" do lead norte-americano e, também, do surto das pirâmides invertidas tocaram as areias de sua orla, ele não se deixava influenciar. Era um típico e legítimo brasileiro, sempre com cartas sob a manga... Para tudo dava um jeito, um jeito que só ele sabia dar. Chegava a ser incrível. Só mesmo um gênio para fazer o que seu Cavalcanti fazia, ou melhor, só mesmo um gênio para sobreviver tanto tempo numa profissão tão dependente do tempo presente e das novas metodologias de trabalho, fazendo e e usando as mesmas palavras, redigindo as mesmas orações, justificando as mesmas idéias, as mesmas formas arcaicas dos tempos de outrora. Talvez o seu Cavalcanti fosse mesmo um jornalista a se considerar. Um marco em toda a história do periodismo. Os críticos e estudiosos ficavam estupefatos e aturdidos diante do caso... Não tinham respostas concernentes ao singular acontecimento, ou ao singular acometimento. A bem da verdade é que, entre o fazer jornalístico e o fazer literário, o seu Cavalcanti preferia ficar com o fazer irônico. O seu Cavalcanti era um jornalista feliz, estava sempre com um sorriso no rosto. Ria de tudo e de todos, sem distinção. O mesmo não se pode falar do seu Cavalcanti literato, porque isto, meu caro, é uma outra história...

Modernidade


Por Germano Xavier

A modernidade se institui no século XVI. Entre a Idade Média e a Moderna surge o Renascimento, período em que há uma mudança no modo de pensar. O homem está mais próximo da natureza (universo) e se estabelece num diálogo entre o mesmo e seu universo. O pensamento moderno opera instalando uma nova forma de conhecimento do homem, baseada na ciência. A teologia racional cede lugar para uma nova ordem de reflexão antropológica, agora do homem-máquina e do homem-histórico. Para que isso acontecesse, foi necessário retirar Deus do centro do universo; o homem passa a ser o centro do Lógos (conhecimento). As coisas serão explicadas por elas próprias, e não exterior a elas, e para a suas constituições bastarão a observação empírica e a análise lógica. Nessa época, institui-se um novo padrão de racionalidade, pois a natureza como meio que explicava o que acontecia no mundo se reduz ao momento em que Copérnico e Galileu Galilei introduziram a Astronomia e a Física, respectivamente, no modo de pensar do homem. A razão é a fonte natural do conhecimento e possuidora de poderes para atingir a verdade, independentemente de qualquer força superior. O mundo agora é imperfeito, sem começo nem fim, assim como um espaço neutro, sem hierarquias nem valores. O homem adquire autonomia e é integrado a partir dele mesmo e das condições da subjetividade, em busca dos dispositivos mecânicos (mecanismo) posto no fundo do seu ser, os quais regulam suas relações de si consigo mesmo, com o outro e com o mundo, dando movimento à antropologia do homem-máquina. É a partir daí que brota a célebre expressão "penso, logo existo", que é a razão própria da existência. Ao duvidar de todas as certezas existentes, o homem se depara com a constatação de que estava duvidando, fato este do qual não se pode duvidar. "Na medida mesmo em que estou pensando, tenho a certeza que estou existindo". Esta é, para o homem, a certeza inquestionável, ela é evidente por si mesma, é intuitiva. Essas mudanças ocorrem justamente no momento de transformações fundamentais na sociedade européia; a Reforma Protestante, a Expansão Marítima, a Revolução Industrial e, consequentemente, a Revolução Francesa. Com todo esse processo que se dá, fica ainda mais perceptível de que antes da modernidade não existia o eu (absoluto, autosuficiente, moderno). É também neste momento que a igreja católica tem seu poder reduzido. Grandes pensadores da época vieram confirmar o poder da razão humana: Galileu Galilei insurge-se contra o logismo aristotélico (o homem atinge todo conhecimento possível); Espinosa estende a ciência ao mundo dos homens, afasta os mistérios e as restrições que impedia o domínio do saber, como os antigos; Descartes estende a "ciência" a todos os campos do conhecimento, da física à astronomia, da filosofia à metafísica; Freud descentra a consciência, que não é absoluta (dependente das funções, estâncias e efeitos); Marx descentra o indivíduo (a historicidade do homem não é individual, fala das relações de classes: burguesia e proletariado); Darwin explica que o homem deixa de ser o centro da natureza (a questão essencial da sua teoria é a adaptação: os mais adaptados sobrevivem). A alma, que já foi imortal, redonda, infinita, descobre-se mortal e finita. Os diferentes modos de racionalidade como vimos na antiguidade clássica, medieval, modernidade, pós-modernidade, acabam por se debaterem, uma vez que uma não se sobrepõe a outra numa linha evolutiva. Mesmo que um modo se torne hegemônico, não extingue os outros, os elementos são recompostos.

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Deixo a ti seus víveres


Por Germano Xavier

Para Marlene Fernandez, in memoriam.


Desolado um choro ruma por tudo
– toda uma paixão desmorona no leito,
ou corre de casa para se molhar na chuva.
A menina desamparada grita aflita.
(Otelo não quer atender se a dor for pouca.)
Que a vida é bastante demais quando acaba sem um fim.
Punhal na mão, o frio, a solidão, ela vai aparecer
naqueles olhos dormidos de um dia futuro.

- Filha, não deixa cair por terra a presença do belo,
corre e se esconde do que carrega a sombra.
Observa no outro o caminho da eternidade,
ruge contra o astro negro sua força improvável.

Luz mortuária, sois do fel do nascer na morte,
pois que vamos sem destino nem direção nem nada além
do nada... eu vou tentar fazer lisonjas e volver romarias
- precisei sair cedo porque a Dona é angelical.

Torna sacrário o estranho missal onde me assomo,
donde sumo, faz alegre o estridor de alaridos das trompas finais.
Enluta não a dor, mas protege o imponderável sepulto que somos.
Ensombra o que da vida não levamos, acerta a placidez que horroriza
e acende a chama no feral círculo onde pisamos sem estar vagando.

Eis o mistério, filha: os nossos votos mudos de amor.
Sonda-os.

Sobre cordas e pulseiras


Por Germano Xavier

O amor é plural, mas eu quero o amor singular. Aquele amor que é único e somente existe porque existe. Aquele amor que seja para sempre porque o sempre é apenas um segundo. O amor é plural, mas eu quero o sentido sincero da parte que nos cabe. Não é preciso muito para sentir a vida pulsando o pulso frenético da vida na hora de quando se quer. O amor dispensa o dispensável, formula o informulável, destrói o indestrutível, caminha sem caminhos, desbrava o bravo habitat inabitável, e é por isso que faço dele, esteja em que latitude estiver, a inútil-útil busca dos dias que são meus.

Todo texto


Por Germano Xavier

Todo texto é um hipertexto. É justamente sobre esse alicerce fundamental que Ingedore Koch vai tentar desvendar os segredos do texto plurilinear, ou seja, constituído de múltiplos sentidos, repleto de ramificações, conexões e possibilidades. Koch pretende o hipertexto como um complexo processual de construção de sentido. Resumindo, o hipertexto como um corpo plurilinear e multiramificado. Para ela, todo texto é um hipertexto, independentemente do suporte que utiliza, sendo que a diferença com relação ao hipertexto eletrônico reside apenas no suporte e na velocidade com que essas outras "direções" são acessadas. Como exemplo mais contundente, a autora cita o exemplo do gênero reportagem, que geralmente é circundado por boxes explicativos, sejam eles gráficos, tabelas ou mesmo fotografias. O hipertexto possibilita ao leitor ser ele uma espécie de construtor ou co-autor do texto, a partir do momento em que, na posse do objeto textual, o leitor desvela diversas fontes de informação, assim como diferentes aspectos e propriedades que só serão reveladas de forma aleatória e desfocada. Entre as características do hipertexto, estão a não-linearidade, a volatilidade, a territorialidade, a interatividade, o descentramento e a multisemiose. O principal componente do hipertexto, ainda segundo a autora, é o hiperlink, que é o dispositivo técnico-informático que permite efetivar ágeis deslocamentos, realizar remissões de outros textos, bem como possibilitar o acesso a outros campos informacionais. São três as funções do hiperlink: 1) Dêitica (indicar, sugerir caminhos, enunciar e focalizar); 2) Coesiva (entrelaçar discursos, amarrar informações); 3) Cognitiva ("encapsulador" de cargas de sentido, acionador de memória e de construção estratégica).

terça-feira, 2 de agosto de 2011

De como a sombra traça almas de medo


Por Germano Xavier

alguém atrás da porta,
de uma morte dura, persiste
onde impera os atlânticos

nossos,

imensos em saudar agitações.
alguém,

que se estende sombra
desde o colosso tempo menino
até os órgãos de gelos perpétuos...

caminha, espumoso, porque se alcanço
a escorrida determinança de me ser,
depressa assanha minha lágrima serpente.

alguém atrás da porta, bate.
e surge sempre em me trair a fome
de me sentir brilhar certa dúvida
de luz.

chama a atenção, alguém atrás da porta.

alguém atrás da porta, continua.
e existirá,
sempre.