sexta-feira, 27 de julho de 2012

Culpa da "dois tempos"


Uma homenagem ao 27 de Julho - Dia do Motociclista.

Por Germano Xavier 

pela memória de Steve Mcqueen,
ator que dispensava os dublês quando a cena era numa moto...
e também pela memória de Hermano Fernandes, 
amigo-irmão falecido em cima duma Shadow VT 600.

Na fogueira das vaidades mundo-humanas, desconheço aquele que ainda não se queimou. As marcas das queimaduras que permanecem abrem espaço para o nascimento de inúmeros sentimentos – ou pecados, diriam alguns. Se virtude ou vaidade, pouco importa, o homem quer sentir o que há para ser. E comigo não foi diferente. O assunto “carro” lá em casa sempre esteve na pauta do dia. Se me perguntam, hoje, sobre minhas primeiras influências no quesito leitura, digo logo que foram as revistas que versavam sobre automóveis e motos, presentes em toda a minha infância e principalmente adolescência, que desempenharam este papel, e bem. Era um evento quando eu ficava sabendo que a revista tinha chegado à agência dos Correios, na minha cidade natal Iraquara. Eu chegava de onde fosse e tomava um banho exclusivamente para saborear aquelas folhas cheirando a tinta fresca. Eu fazia uma leitura possessiva, sendo que ninguém lá em casa poderia ler a revista antes de mim. Quando a ordem por mim desejada era quebrada, eu ficava muito irritado – meu irmão mais velho que o diga. Mas aí se foi a infância, a voz foi logo engrossando, pêlos nasceram pelo rosto, e o que antes era apenas teoria foi aos poucos se tornando uma das mais deliciosas práticas. Meu pai tinha uma espingarda antiga, e também alguns cartuchos vermelhos presos a uma cinta de napa meio acinzentada, que nunca acreditei que seria usada por ele, homem pacífico que é. Certo dia meu pai resolveu trocar a carabina por um velho Fiat 147, o famoso “saboneteira”, primeiro carro da marca italiana produzido em série em território brasileiro – se não me engano, as primeiras unidades saíram da fábrica mineira de Betim ainda no ano de 1976. O carro pertencia a um mecânico da cidade e esteticamente até que não estava tão mal assim. Com os dias passando, o carro, que era de cor bege, foi apresentando seus primeiros problemas. Um dia não quis ligar, e meu pai mandou fazer uma ligação direta. O carrinho não precisava mais de chave para ser ligado. Era só apertar um botãozinho embaixo do volante e pronto, o motorzinho dava o ar da graça. Outro dia, chovendo muito, fomos eu e meu pai comprar pão na rua e no meio do caminho sentimos que o carro não era à prova d’água. O líquido do céu entrava pelas brechas das portas, devido às borrachas de vedação ressecadas e já muito boas de serem trocadas. Foi com o Fiatinho que meu pai ensinou a gente a dirigir – eu e meu irmão mais velho. Quase todo dia, depois que ele terminava o expediente, chamava a gente para ir ao engenho do velho Sinésio. Aquela hora estava se tornando o melhor momento do dia. Meu pai tirava o jaleco, vestia uma roupa leve e lá íamos nós, todos juntos no possante. Meu pai, na época, tinha um carro mais novo, e como que já suspeitando das possíveis barbeiragens e manobras perigosas, não quis deixar que o dirigíssemos. Ele tinha razão. Nos primeiros dias, foram muitos os pulos e estancamentos, marchas engatadas sem sincronia, finos tirados em buracos e cercas, até o dia que já conseguíamos sair direitinho e até colocar uma terceira na estrada de barro. Tirando as inúmeras oxidações da bateria, que impediam a partida, e a quebra do trambulador da caixa de câmbio já com o dia totalmente escuro e com a gente pra lá do engenho de cana-de-açúcar do velho Sinésio - problema crônico dos primeiros modelos da Fiat -, o carrinho serviu foi muito e acabou deixando saudade quando meu pai achou que era melhor passar ele pra frente. Depois de aprender a andar sobre quatro rodas, em cima de duas seria moleza, pensava. Iraquara sempre foi propícia para esses tipos de liberdade. Pouca vigilância, quase nenhuma preocupação das autoridades, e quase todo mundo que não fazia mais xixi na cama andando com seus dirigíveis pelas ruas da cidade. Um dia minha mãe incutiu que queria uma moto pra passear e ir à escola onde trabalhava, e foi aí que a primeira motocicleta aportou na garagem lá de casa. Na verdade, uma motoneta. Uma simpática Honda C100 Biz na cor preta que veio deitada no interior da Veraneio de João da Kombi - João ficou conhecido por transportar o povo de Iraquara na Kombi marrom dele, que vez ou outra pegava fogo na estrada, por isso a alcunha, apesar de agora estar com o Chevrolet símbolo da Ditadura (só lembrar do "Veraneio vascaína, vem dobrando a esquina", do grupo musical Aborto Elétrico) - oriunda da cidade de Irecê, onde depois viria a fazer todo o meu segundo grau escolar. Fui o primeiro a dar a partida nela e a ouvir o ronquinho fino e silencioso. Uma delícia aquele dia. De noite vieram meus primos e ficamos indo e voltando ao fim da rua, mil vezes sem nunca enjoar da atividade. Foi uma diversão. Minha mãe, a suposta proprietária da moto, deu alguns volteios pela rua, mas depois de alguns sustos e de algumas lombadas traiçoeiras, acabou percebendo que não era a sua praia. Meu pai bem que tentou também, mas nada. Foi com ela que aprendi aos poucos noções essenciais de mecânica. Fim de semana eu a desmontava por completo, mexia nos cabos, bulia nos caninhos, tirava praticamente tudo e colocava novamente, limpava e remontava. Minha mãe ficava sem saber como era que eu fazia aquilo, e eu brincando de quebra-cabeça. Foi também montado na “Halleybiz”, apelido que dei a ela, remetendo-me às famosas e potentes Halley-Davidson norte-americanas – oh, que ousadia! -, que tentei meus primeiros passos na arte de andar sobre uma roda apenas. Eu estava conseguindo ficar até um bom tempo empinado, mas um dia a moto quando desceu bateu seca no chão e quase tombei pro lado. Era o fim de minhas tentativas. Depois daquele dia, nunca mais fui tentado a empinar uma moto. Esse tipo de apresentação eu deixava pro pessoal dos “Motoqueiros a Pilha”, grupo lá de Iraquara que fazia estripulias maravilhosas em cima das magrelas – Gu, lembra daquele dia que o delegado novato de Iraquara correu atrás da gente feito perseguição de filme até a praça do São João, apontou até arma pra gente, sem saber que era o dia dos festejos juninos, cuja apresentação dos “Motoqueiros a pilha” era liberada, assim como qualquer modificação que fizéssemos na moto? Estava muito barulhenta mesmo, ele até que tinha razão. Nesta época, já tínhamos trocado a Bizinha por uma verdadeira "máquina": uma Honda CBX 200 Strada. Eu já morava na Capital do Feijão e um colega meu disse que estava querendo vender uma moto que tinha acabado de comprar na mão de um médico, que ia se mudar. O doutor comprou e deixou ela encostada num galpão. Tinha 16.000 quilômetros quando fizemos a troca na Biz, muito nova e linda. Roxa e com um escapamento Roncar Coyote RS1 que depois colocamos, ficou parecendo uma nave, como se diz por aí. Muita história pra contar em cima dessa “duzentas”. Viagens pra cidade de Presidente Dutra, passar o fim de semana na casa do meu colega Leandro “Manchinha” – o apelido vinha de um sinal enorme que tinha na bochecha. Lembro que o pai dele era apaixonado por motos, tinha na garagem uma Honda Sahara 350 e uma Yamaha XT 600 lindona, azul, cor clássica da marca nipônica. Ainda em Irecê, lembro do dia que fomos fazer a gravação do filme O Cabeleira na chácara do avô de “LB” – vulgo Leonardo da lanchonete, colega de classe. Era um trabalho que o professor de literatura Erik Machado tinha passado e o filme era baseado na obra de Franklin Távora, e eu fui o roteirista e o diretor-cinegrafista – até hoje tenho a fita. LB era Teodósio, Rafael – meu grande e melhor amigo Rafael fazia o papel do Joaquim, e "Manchinha" ficou sendo o próprio Cabeleira. Fomos todos em cima de motos, numa aventura boa a base de muito vento e sensação de liberdade. Como era fim de ano, tinha deixado a Strada em Iraquara. Pra lá fui pilotando a Kasinski GF125 F pretona de LB. Acostumado com a CBX, achei a moto do gordo muito amarrada, talvez uma metáfora para a nossa querida indústria nacional. Também nos fins de semana, às vezes, íamos ao aeroporto, em “comboio”, ver ou fazer manobras radicais. Eu, com as chuteiras penduradas precocemente, só fazia observar os artistas. Tinha um carinha que só faltava fazer chover em cima da XR 200 azul dele, nunca esqueço. Como era bom! Aí pra acabar de completar, um dia chego à casa da minha tia em Canarana-Ba, em dia de festa popular, e encontro parada na garagem uma verdadeira máquina: uma deslumbrante Suzuki GS500 E, azul, do marido dela, verdadeiro cavalo de aço. Endoideci, vidrado fiquei olhando, e daí veio Adaílson e me perguntou se não queria dar uma volta nela. Nem acreditei! Eu a bordo de uma “quinhentas”. Muito emocionante. Você, que chegou até aqui na leitura desse texto, deve estar me achando um idiota, eu sei, mas não me leve a mal. É uma vaidade sadia, um gosto bom, confesse. A gente chega fica fofo em cima de uma moto desse quilate. Gastei minhas economias todas colocando gasolina no tanque dela, mas valeu a pena. Nunca me esquecerei. E por falar nesse tom bastante nostálgico – alguns poucos teimarão em acreditar -, digo orgulhoso a vocês que já andei numa legítima “Viúva Negra” – apelido da histórica Yamaha RD 350, que por ter muitos de seus amantes mortos em acidentes quando pilotavam ela, recebera tal insígnia. Veja o que Júnior Faria, expert em história de motocicletas, escreveu sobre a “Viúva”: “Apesar de todos os nossos conflitos sociais e políticos, ganhávamos ainda, talvez com a influência da juventude transviada de James Dean, um grande prazer extra. Um vínculo entre a atitude e a morte. A Viúva Negra. Era assim chamada uma motocicleta que chegou aqui importada do Japão: a Yamaha RD 350. O mito. O absurdo. Seu peso/potência acima dos 5.000 giros tinham uma relação fora dos propósitos de segurança da época. A tecnologia usada em seu motor bi-cilíndrico superava qualquer sonho de piloto de corridas daqueles saudosos anos “dourados”. Eram exatamente 347cc, com 140 quilos de peso, câmbio de seis marchas e uma tremenda arrancada. Seus freios a tambor eram ineficientes para tanta força e velocidade. Um assombro. Seu ronco estridente ficou conhecido por muita gente, mesmo por aqueles que não tinham adoração por motocicletas, que o escutavam nas madrugadas, cortando o silêncio. Ela foi a responsável por inúmeros acidentes, muitos fatais, resultado de exageros daqueles que tentavam tirar o máximo de sua esportividade. Além daquele guidão Tomazelli (parte das customizações que eram feitas na época), que a deixavam com uma aparência agressiva, tinha também o charme de se dar a partida no pedal (elétrica nem pensar), esses e outros inúmeros detalhes faziam parte marcantes da cobiçada “Viúva Negra”. Verdadeiro “status” de coragem era pilotar esse mito, que até hoje causa saudades nos mais apaixonados por motocicletas e velocidade, quando se lembram daquele cheiro de óleo 2 tempos queimando e daquela fumaceira que saía do escapamento. As atitudes fazem os mitos”. A moto, branca com faixas vermelhas, era do meu colega Guto, cujo pai era mecânico e adorador das duas rodas. Lembro que ele tinha fechado um dos carburadores, pra não consumir muito, e a fumacinha estava saindo apenas por um lado. Maravilha da arte ciclística. Nada ainda que se compare em minha convivência com esses objetos alígeros. Depois disso andei em CG’s, Sahara, ML’s, DT's 180, Twister, Bros, Suzuki Boulevard M800, a moto de vender pão de Milton, etc e etc, cada qual com uma lembrancinha guardada na memória. Hoje minha companheira é uma Honda CBX 250 Twister (era no tempo em que escrevi este texto, hoje ando em sua sucessora, uma CB 300R na cor branca) - fruto de um 2004 de muito trabalho na cidade natal -, com quem cruzei várias vezes a Chapada Diamantina e o norte do estado da Bahia em viagens fantásticas. Vou terminando essas minhas reminiscências, sem antes deixar de recordar uma moto especial em minha vida, talvez a culpada de tudo: uma Yamaha TT azul-marinho. Eu ajudava meu pai, quando pequeno, nos afazeres cotidianos a um cirurgião dentista. Arrumava os alicates, preparava o cimento-resina que seria aplicado nos pacientes, isso e aquilo. Entre um paciente e outro, saía e olhava o corredor do posto de saúde. E lá estava ela, com aquele ar triste, como que implorando um punho avesso à monotonia de uma cidadezinha do interior, fazendo-me ficar apaixonado por tal coisinha de metal, tão tímida e faceira, apaixonado por um amor que a qualquer momento, sei eu, pode me passar uma dolorida ou até definitiva rasteira. 

Um comentário:

Iara disse...

Hermas leu comigo e achamos mesmo que a shadow te espera. 600cc, 750cc, não importa muito, mas tu tens que cumprir esse trato... Bjs de vento!