Hoje começo uma nova coluna aqui no blog O Equador das Coisas, com entrevistas curtas com leitores do blog. E a primeira entrevistada é Ana Lúcia Sorrentino.
O Equador das Coisas - Quem é você?
Ana Lúcia Sorrentino - Eu sou a Analú.
OEC - Como surgiu esta vontade de ser ou agir como escritora (dentro de situações tão adversas em que viveu e vive) ou como você se percebeu iniciada no campo minado das palavras?
ALS - Minha primeira experiência fascinante com a literatura foi quando, ao começar a ler as primeiras palavras, meu pai, de repente, apareceu com a coleção completa do Monteiro Lobato. Aquela garota solitária, que vivia entre adultos, tinha uma única amiga e morava num casarão em uma larga avenida, sem liberdade para se aventurar pela rua, percebeu que era possível estar em outros lugares, com outras crianças, vivendo histórias incríveis, através dos livros. O Sítio do Picapau Amarelo me produz sensações agradáveis até hoje, tão viva ainda é a lembrança que tenho das minhas aventuras com Emília, Narizinho, Pedrinho, e aquele povo todo das histórias de Lobato. Mais tarde, já adolescente, percebi o quanto as pessoas não falam sobre o que é realmente importante. E o quanto se sofre com isso. E vi que o escritor minimiza o sofrimento alheio, à medida que expõe suas feridas, tão parecidas com as de todos nós. Quantas vezes, lendo um livro, percebemos que aquele escritor sentiu algo extremamente parecido com coisas que sentimos, e sobre as quais não falamos, por um ou outro motivo? Acho que a literatura nos mostra o quanto somos iguais, e nos ajuda a nos assumirmos, nas nossas fraquezas, nas nossas diferenças e mazelas. Diminui nossa solidão. Isso me fez querer escrever. Por fim, não há como não escrever, uma vez que todo o meu processo e entendimento do mundo e de mim mesma se dá através das palavras, e, quando há algo a se resolver, ou alguma catarse a se fazer, elas ficavam me perturbando, pedindo para que as organize no papel e, enquanto eu não faço isso, não tenho sossego.
OEC - Qual a distância entre o Brasil real e o Brasil oficial? O que há entre estas distintas definições?
ALS - Se considerarmos como Brasil oficial um Brasil esquematizado, visto de fora, matematizado, e como Brasil real aquele que vivemos no dia-a-dia, me parece que essa distância é descomunal. Quando entramos em contato com gente de fora do Brasil, que nos vê numa perspectiva mais distante, e cuja ideia de Brasil talvez seja formatada por dados oficiais, percebemos que somos até invejados por aí afora. E quando conversamos entre nós, brasileiros, o que prevalece são sempre as enormes dificuldades que enfrentamos diariamente, em todos os sentidos. Vivemos diferenças tão grandes e absurdas dentro desse mesmo Brasil, que fica até complicado tentar pintar um quadro sequer parecido com a realidade. Nasci e me criei em São Paulo, uma das maiores cidades do mundo, e, no entanto, sei que na maior parte do Brasil não há sequer saneamento básico. Aqui mesmo, ao lado, é assim. Convivemos com extremos de riqueza e pobreza todos os dias, e todos os dias nos perguntamos se algum dia esse sofrimento vai ser menor. Sabemos, oficialmente, do tamanho do Brasil, das riquezas do Brasil, das infinitas possibilidades do Brasil. E vivemos, diariamente, os abusos dos impostos, a incompetência administrativa, a corrupção nos metendo a mão no bolso descaradamente, fazendo com que não nos sobre tempo para viver de verdade. Quando olho em volta, o que mais vejo é gente se matando de trabalhar para ter um mínimo de dignidade. No entanto, o Brasil “oficial” parece sempre ser muito promissor. Para quem, afinal?
OEC - Para você, por que é importante estudar filosofia nos dias atuais?
ALS - Acho que é importante estudar filosofia, seja lá em que época for. Não para se conhecer a história da filosofia, mas para aprender a pensar por conta própria. Para aprender que é possível se pensar de forma diferente daquela que nos ensinaram, e para criar coragem de falar sobre o que pensamos, sem ter medo de estar contradizendo a ordem estabelecida, sem ter medo de não ser aceito. Certa vez li uma frase sua, Germano, que dizia que os melhores professores são os que nos ensinam a desaprender, e concordo plenamente com ela. Uma das lições que a filosofia tem me dado é essa, da desaprendizagem. E outra é a de não temer expor o que penso, e como sinto as coisas. Às vezes nossa vivência pessoal é tão absurdamente diferente daquilo que apregoam por aí que “deveria ser”, que sempre acho que a auto-exposição acaba beneficiando em muito os outros. Se quem me lê se sente consolado pelo fato de não ser o único patinho feio do mundo, acho que vale a pena escrever, e a filosofia nos ajuda a pensar melhor, e, consequentemente, a escrever melhor. Para mim, isso é muito importante.
OEC - Você lê poesia? Por quê? Para quê?
ALS - Leio pouca poesia, e sempre me pergunto o porquê disso, porque gosto. Nunca vou em busca de poesia. Ela me aparece, de vez em quando, e não me nego. Leio, gosto, me identifico, me emociono. Algumas vezes chorei desbragadamente lendo poesia, como quando li “Perdas e Ganhos”, de Lya Luft, quase inteiro, na espera de um consultório dentário. Ela simplesmente me desmontou. Mas poesias sempre chegam até mim por essa via do acaso. E, o engraçado é que, vez ou outra, escrevo poesias, se é que se pode chamar de poesia as brincadeiras que faço. Isso é totalmente intuitivo.
OEC - Política, para quê?
ALS - Infelizmente, para tudo... rsrs... porque somos seres políticos, não tem jeito. Por mais que às vezes nos enojemos da política praticada por políticos profissionais, e por mais distantes que desejemos estar disso, no nosso dia-a-dia, em nosso trabalho, com nossa família, entre nossos amigos, é preciso se ter alguma habilidade política para sobreviver. E, às vezes, é preciso mesmo se engajar em causas políticas. Se estamos desiludidos em relação aos políticos, ainda é pela política que temos chance de mudar algo.
OEC - O que pensas sobre o governo Dilma até aqui?
ALS - Penso que fico estarrecida com a quantidade de escândalos e confusa com as opiniões desencontradas sobre eles. Cruzo com gente indignada com o Governo, por ser inadmissível tantas “escolhas” erradas. E com gente que jura de pé junto que os escândalos são fabricados e que há uma elite cuja aversão ao PT beira a paranóia. Suspendo o juízo. Compadeço-me de mim mesma quando me lembro do quanto tive esperança em que, sob o olhar de uma mulher, alguma coisa pudesse melhorar. Concluo que não adianta, nos iludimos deliberadamente para poder prosseguir. Fico indignada o tempo todo quando percebo o quanto estamos abandonados. Precisar de um tratamento médico e depender do serviço público é uma aventura dolorida e perigosíssima. Colocar um filho em escola pública também é complicadíssimo. O que aconteceu com o Enem nesses últimos anos é de envergonhar qualquer cidadão brasileiro. Por outro lado, a elite que tem o privilégio de conseguir chegar a uma USP dá demonstrações vergonhosas de alienação, como nesse caso recente dos mimadinhos que queriam liberdade para fumar seu baseadinho. Por que não usam toda essa energia para se engajarem em causas realmente importantes? Precisar de transporte público é uma verdadeira penitência. Quem precisa viajar para trabalhar se vê refém de pedágios absurdos, que contradizem nosso direito ao ir e vir. E penso também que, seja lá quem quer que estivesse no Governo, infelizmente, o sistema todo é tão absurdamente contaminado pela corrupção, que as coisas não seriam muito diferentes não. Tive contato com gente que se relaciona intimamente com políticos de peso, e o que percebi foi que o corrupto mente para si mesmo, perde a noção do que é razoável, vive de desvios do nosso dinheiro e ainda nos trata com arrogância. Ele incorpora de tal forma a corrupção à vida dele que seria capaz de escrever uma espécie de “Elogio à Helena”, justificando de todas as formas possíveis e imagináveis o fato de ser corrupto. Seria o “Elogio à corrupção”.
OEC - O que andas lendo atualmente e do que se trata?
ALS - Ando lendo filosofia, Germano. Não dá para escapar... Acabei de resenhar “Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extra-Moral, de Nietzsche”, e me surpreendi ao perceber quanta similaridade há naquilo que Nietzsche diz nesse texto e naquilo que trabalho em meu blog, quando falo sobre a “negação da realidade”. Nesse momento leio as Meditações de Descartes, “O Cético”, de Hume, e um texto muito bacana de Gonçalo Armijos Palácios – “De como fazer filosofia sem ser grego, estar morto ou ser gênio”. Nesse livro Palácios enaltece os gregos, por terem tido coragem de filosofar de fato, e critica a filosofia acadêmica, por formar mais “comentariólogos” do que filósofos de verdade, denominando isso de “peste do comentador”. E... para não dizer que só tenho lido aquilo que sou obrigada, por estar cursando filosofia, estou lendo... filosofia! Rsrs... “O Amor”, de André Comte-Sponville. Muito legal. No início do livro Sponville já defende a ideia de que o amor é o tema preferido de todos, porque, mesmo quando dizemos que nosso tema preferido é outro, na verdade, o tema é o amor que sentimos por esse outro tema. E, como meu tema preferido é mesmo o amor, estou curtindo.
OEC - A tua cidade já esmagou você alguma vez? Como?
ALS - Sim, toda hora. E tem a ver com o que já falei antes. Aqui se sofre muito com excesso de trânsito, de poluição, o clima é difícil, o custo de vida é muuuuuito alto, e se trabalha muito. Além da concorrência, que é violenta em qualquer setor. E, quando saímos para nos divertir, enfrentamos filas, esperamos muito, é difícil. Porque, embora São Paulo seja imensa e tenha uma vida cultural muito rica, e uma gastronomia fantástica, também há aqui muita gente com muita grana para consumir.
OEC - Fale-nos algo sobre o blog O Equador das Coisas...
ALS - O Equador das Coisas é o blog que visito todos os dias, sabendo de antemão que encontrarei novas postagens, sempre de alta qualidade literária. É o blog onde leio sobre tudo, nos mais variados formatos, e sempre muito bem dominados pelo escritor. É o blog que me coloca em contato com vários autores, de maneira prazerosa, através do olhar inteligente do blogueiro. Que me leva a ler a poesia que não procuro, curtindo muito. E que, aliás, me encanta por ir de extremos de sofisticação à enorme simplicidade. Que me faz desejar que seu dono ganhe cada vez mais espaço, pelo enorme talento que tem, e que me faz vibrar sempre que percebo que isso será inevitável. E que me coloca um sorriso no rosto quando leio coisinhas doces como
“teus olhinhos
assim fechadinhos
me abrem constelações.”
Bom demais.
Ana Lúcia Sorrentino escreve em Reencontrando sua Alma.
4 comentários:
Obrigada pela oportunidade, Germano. Me sinto honrada por ter sido a primeira entrevistada. :)
Beeijos!!! :)
Bela entrevista !
Muito boa essa proposta. Parabéns a ambos pelo desenvolvimento da entrevista.
Parabéns pelo blog, Germano.
Parzabéns pela entrevista, Ana Lucia.
Um abraço cordial a ambos.
Mauricio A Costa
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