sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Perguntas ao Pó (nº 1)



Hoje começo uma nova coluna aqui no blog O Equador das Coisas, com entrevistas curtas com leitores do blog. E a primeira entrevistada é Ana Lúcia Sorrentino.

O Equador das Coisas
- Quem é você?

Ana Lúcia Sorrentino - Eu sou a Analú.

OEC - Como surgiu esta vontade de ser ou agir como escritora (dentro de situações tão adversas em que viveu e vive) ou como você se percebeu iniciada no campo minado das palavras?

ALS - Minha primeira experiência fascinante com a literatura foi quando, ao começar a ler as primeiras palavras, meu pai, de repente, apareceu com a coleção completa do Monteiro Lobato. Aquela garota solitária, que vivia entre adultos, tinha uma única amiga e morava num casarão em uma larga avenida, sem liberdade para se aventurar pela rua, percebeu que era possível estar em outros lugares, com outras crianças, vivendo histórias incríveis, através dos livros. O Sítio do Picapau Amarelo me produz sensações agradáveis até hoje, tão viva ainda é a lembrança que tenho das minhas aventuras com Emília, Narizinho, Pedrinho, e aquele povo todo das histórias de Lobato. Mais tarde, já adolescente, percebi o quanto as pessoas não falam sobre o que é realmente importante. E o quanto se sofre com isso. E vi que o escritor minimiza o sofrimento alheio, à medida que expõe suas feridas, tão parecidas com as de todos nós. Quantas vezes, lendo um livro, percebemos que aquele escritor sentiu algo extremamente parecido com coisas que sentimos, e sobre as quais não falamos, por um ou outro motivo? Acho que a literatura nos mostra o quanto somos iguais, e nos ajuda a nos assumirmos, nas nossas fraquezas, nas nossas diferenças e mazelas. Diminui nossa solidão. Isso me fez querer escrever. Por fim, não há como não escrever, uma vez que todo o meu processo e entendimento do mundo e de mim mesma se dá através das palavras, e, quando há algo a se resolver, ou alguma catarse a se fazer, elas ficavam me perturbando, pedindo para que as organize no papel e, enquanto eu não faço isso, não tenho sossego.

OEC - Qual a distância entre o Brasil real e o Brasil oficial? O que há entre estas distintas definições?

ALS - Se considerarmos como Brasil oficial um Brasil esquematizado, visto de fora, matematizado, e como Brasil real aquele que vivemos no dia-a-dia, me parece que essa distância é descomunal. Quando entramos em contato com gente de fora do Brasil, que nos vê numa perspectiva mais distante, e cuja ideia de Brasil talvez seja formatada por dados oficiais, percebemos que somos até invejados por aí afora. E quando conversamos entre nós, brasileiros, o que prevalece são sempre as enormes dificuldades que enfrentamos diariamente, em todos os sentidos. Vivemos diferenças tão grandes e absurdas dentro desse mesmo Brasil, que fica até complicado tentar pintar um quadro sequer parecido com a realidade. Nasci e me criei em São Paulo, uma das maiores cidades do mundo, e, no entanto, sei que na maior parte do Brasil não há sequer saneamento básico. Aqui mesmo, ao lado, é assim. Convivemos com extremos de riqueza e pobreza todos os dias, e todos os dias nos perguntamos se algum dia esse sofrimento vai ser menor. Sabemos, oficialmente, do tamanho do Brasil, das riquezas do Brasil, das infinitas possibilidades do Brasil. E vivemos, diariamente, os abusos dos impostos, a incompetência administrativa, a corrupção nos metendo a mão no bolso descaradamente, fazendo com que não nos sobre tempo para viver de verdade. Quando olho em volta, o que mais vejo é gente se matando de trabalhar para ter um mínimo de dignidade. No entanto, o Brasil “oficial” parece sempre ser muito promissor. Para quem, afinal?

OEC - Para você, por que é importante estudar filosofia nos dias atuais?

ALS - Acho que é importante estudar filosofia, seja lá em que época for. Não para se conhecer a história da filosofia, mas para aprender a pensar por conta própria. Para aprender que é possível se pensar de forma diferente daquela que nos ensinaram, e para criar coragem de falar sobre o que pensamos, sem ter medo de estar contradizendo a ordem estabelecida, sem ter medo de não ser aceito. Certa vez li uma frase sua, Germano, que dizia que os melhores professores são os que nos ensinam a desaprender, e concordo plenamente com ela. Uma das lições que a filosofia tem me dado é essa, da desaprendizagem. E outra é a de não temer expor o que penso, e como sinto as coisas. Às vezes nossa vivência pessoal é tão absurdamente diferente daquilo que apregoam por aí que “deveria ser”, que sempre acho que a auto-exposição acaba beneficiando em muito os outros. Se quem me lê se sente consolado pelo fato de não ser o único patinho feio do mundo, acho que vale a pena escrever, e a filosofia nos ajuda a pensar melhor, e, consequentemente, a escrever melhor. Para mim, isso é muito importante.

OEC - Você lê poesia? Por quê? Para quê?

ALS - Leio pouca poesia, e sempre me pergunto o porquê disso, porque gosto. Nunca vou em busca de poesia. Ela me aparece, de vez em quando, e não me nego. Leio, gosto, me identifico, me emociono. Algumas vezes chorei desbragadamente lendo poesia, como quando li “Perdas e Ganhos”, de Lya Luft, quase inteiro, na espera de um consultório dentário. Ela simplesmente me desmontou. Mas poesias sempre chegam até mim por essa via do acaso. E, o engraçado é que, vez ou outra, escrevo poesias, se é que se pode chamar de poesia as brincadeiras que faço. Isso é totalmente intuitivo.

OEC - Política, para quê?

ALS - Infelizmente, para tudo... rsrs... porque somos seres políticos, não tem jeito. Por mais que às vezes nos enojemos da política praticada por políticos profissionais, e por mais distantes que desejemos estar disso, no nosso dia-a-dia, em nosso trabalho, com nossa família, entre nossos amigos, é preciso se ter alguma habilidade política para sobreviver. E, às vezes, é preciso mesmo se engajar em causas políticas. Se estamos desiludidos em relação aos políticos, ainda é pela política que temos chance de mudar algo.

OEC - O que pensas sobre o governo Dilma até aqui?

ALS - Penso que fico estarrecida com a quantidade de escândalos e confusa com as opiniões desencontradas sobre eles. Cruzo com gente indignada com o Governo, por ser inadmissível tantas “escolhas” erradas. E com gente que jura de pé junto que os escândalos são fabricados e que há uma elite cuja aversão ao PT beira a paranóia. Suspendo o juízo. Compadeço-me de mim mesma quando me lembro do quanto tive esperança em que, sob o olhar de uma mulher, alguma coisa pudesse melhorar. Concluo que não adianta, nos iludimos deliberadamente para poder prosseguir. Fico indignada o tempo todo quando percebo o quanto estamos abandonados. Precisar de um tratamento médico e depender do serviço público é uma aventura dolorida e perigosíssima. Colocar um filho em escola pública também é complicadíssimo. O que aconteceu com o Enem nesses últimos anos é de envergonhar qualquer cidadão brasileiro. Por outro lado, a elite que tem o privilégio de conseguir chegar a uma USP dá demonstrações vergonhosas de alienação, como nesse caso recente dos mimadinhos que queriam liberdade para fumar seu baseadinho. Por que não usam toda essa energia para se engajarem em causas realmente importantes? Precisar de transporte público é uma verdadeira penitência. Quem precisa viajar para trabalhar se vê refém de pedágios absurdos, que contradizem nosso direito ao ir e vir. E penso também que, seja lá quem quer que estivesse no Governo, infelizmente, o sistema todo é tão absurdamente contaminado pela corrupção, que as coisas não seriam muito diferentes não. Tive contato com gente que se relaciona intimamente com políticos de peso, e o que percebi foi que o corrupto mente para si mesmo, perde a noção do que é razoável, vive de desvios do nosso dinheiro e ainda nos trata com arrogância. Ele incorpora de tal forma a corrupção à vida dele que seria capaz de escrever uma espécie de “Elogio à Helena”, justificando de todas as formas possíveis e imagináveis o fato de ser corrupto. Seria o “Elogio à corrupção”.

OEC - O que andas lendo atualmente e do que se trata?

ALS - Ando lendo filosofia, Germano. Não dá para escapar... Acabei de resenhar “Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extra-Moral, de Nietzsche”, e me surpreendi ao perceber quanta similaridade há naquilo que Nietzsche diz nesse texto e naquilo que trabalho em meu blog, quando falo sobre a “negação da realidade”. Nesse momento leio as Meditações de Descartes, “O Cético”, de Hume, e um texto muito bacana de Gonçalo Armijos Palácios – “De como fazer filosofia sem ser grego, estar morto ou ser gênio”. Nesse livro Palácios enaltece os gregos, por terem tido coragem de filosofar de fato, e critica a filosofia acadêmica, por formar mais “comentariólogos” do que filósofos de verdade, denominando isso de “peste do comentador”. E... para não dizer que só tenho lido aquilo que sou obrigada, por estar cursando filosofia, estou lendo... filosofia! Rsrs... “O Amor”, de André Comte-Sponville. Muito legal. No início do livro Sponville já defende a ideia de que o amor é o tema preferido de todos, porque, mesmo quando dizemos que nosso tema preferido é outro, na verdade, o tema é o amor que sentimos por esse outro tema. E, como meu tema preferido é mesmo o amor, estou curtindo.

OEC - A tua cidade já esmagou você alguma vez? Como?

ALS - Sim, toda hora. E tem a ver com o que já falei antes. Aqui se sofre muito com excesso de trânsito, de poluição, o clima é difícil, o custo de vida é muuuuuito alto, e se trabalha muito. Além da concorrência, que é violenta em qualquer setor. E, quando saímos para nos divertir, enfrentamos filas, esperamos muito, é difícil. Porque, embora São Paulo seja imensa e tenha uma vida cultural muito rica, e uma gastronomia fantástica, também há aqui muita gente com muita grana para consumir.

OEC - Fale-nos algo sobre o blog O Equador das Coisas...

ALS - O Equador das Coisas é o blog que visito todos os dias, sabendo de antemão que encontrarei novas postagens, sempre de alta qualidade literária. É o blog onde leio sobre tudo, nos mais variados formatos, e sempre muito bem dominados pelo escritor. É o blog que me coloca em contato com vários autores, de maneira prazerosa, através do olhar inteligente do blogueiro. Que me leva a ler a poesia que não procuro, curtindo muito. E que, aliás, me encanta por ir de extremos de sofisticação à enorme simplicidade. Que me faz desejar que seu dono ganhe cada vez mais espaço, pelo enorme talento que tem, e que me faz vibrar sempre que percebo que isso será inevitável. E que me coloca um sorriso no rosto quando leio coisinhas doces como

“teus olhinhos
assim fechadinhos
me abrem constelações.”

Bom demais.

Ana Lúcia Sorrentino escreve em Reencontrando sua Alma.

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Poema de se ir


Por Germano Xavier

e saio do teu porto,
absorto,
aéreo pelos degraus

e desço distâncias,
medindo a cidade
durando

vou.
atingido nos pólos,
avolumando-me de indestinos

vou.
e não querendo ir
deixo-te

leve
em teu voo.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Minha vida, minha morte


Por Germano Xavier

Algumas coisas ficam conosco para o resto de nossas vidas, como aquele suvenir da infância que nos preencheu alguma falta depois que nos faltou durante todo dia alguma espécie de ornato para que o dia fosse também mais colorido, ou como algum instante de luz maior que a própria claridade natural quando resolve fugir e ser apenas penumbra. Hoje tive a sensação única da totalidade de mim, mesmo sabendo que ainda não sou só isso. Arrisquei o caminho da rua noturna, desafiei os fantasmas da rua e caminhei em direção ao meus fantástico paraíso. Meu porque só eu posso visitá-lo, meu porque só eu tenho as chaves dos portais que dão para a morada dos deuses. Sem grandes alegrias no quarto onde recobro minha consciência diariamente, encarei a rua da minha loucura. E, confesso, não me arrependi.

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Sumário colosso


Por Germano Xavier

lembre-me mais tarde,
que toda união dessas desgraças não pode
reatar o fogo das imprecisões. o passado está morto,
como o cálculo incerto da incorreta fundação.
a saudade é um vento frio que se perde
por detrás dos prédios nus da minha rua. toda saudade
é um apreço e um afeto saltando do bonde azul.
e esta saudade, esta de difícil corpo, esta que é aquela
saudade

irresoluta, o peito não suporta
porque é saudade que nunca foi
outra coisa,
senão vontade.

domingo, 26 de janeiro de 2014

Borrão que me ofusca um bem

Imagem: Deviantart
Por Germano Xavier

juntando cacos inquebráveis e ana c.


como se escreve saudade num papel
que no agora me serve
de barquinho n'água
ou mesmo vontade de um algo mais profundo
nos dentros de tamanha suavidade
ou mesmo carência
de estar sem ter estado
nem um tantinho sequer
num teu abraço
tão coisa fina

como não te sonhar, menina?, como não existir nada mesmo após o afastamento?, como
se se escrever saudade num papel
desmonta o agora que não serve
de ancoradouro
quero chegar quero buscar quero querer quero você
afora a ínfima saliência protuberante e escandalosa do amor
ou da paixão
em ser e ser além do vil estado
uma máxima forma
de me adorar em você
eis o espaço do controle inevitável
desde que me apareceras
toda uma poética mudou
(com sublimações irreversíveis, admito)

é fácil ancorar um navio no espaço
basta me por levitado
(e nisso és expert)

Acepções em delicadezas


Por Germano Xavier

a barreira transposta
e vencível
cobre, gentilmente,
em forma de carinhos,
a doçura do caminho
mascarado.

ó, susto, construa em mim
um curral nos olhos
meus acortinados,
que meus cavalos,
sempre alvos e ingênuos,
se esforcem...

a pouca planície
é montanha: altura
do homem.

não devo açoitá-los
em chamas;
os bons
sentidos
descendem
sempre
do calar
das maravilhas.

sábado, 25 de janeiro de 2014

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Cerimônias de flor


Por Germano Xavier

tal qual pétala
você se despetala
aos poucos para mim
você se empetala
arde até
e eu me cubro de rosas
vermelhas
ou brancas
ou ainda amarelas
e carinhoso
com elas forro o chão empestado
pelas pequenas lascas de pétalas secas
de outros outonos

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Apoetical


Por Germano Xavier

I cry for the pain
of a poem
not felt
not read
because all poems hurt
with their invisible weapons
because poems
when not drunk
when not swallowed
when not completely held
they are like open wounds
infectious
miserable
I cry for the pain
of a poem
each one that rises
each one that lies not born
deep in a man
that walks
through not touchable limits
I cry for the pain
of a poem
and mostly
I cry
plenty
for the pain of a man
with no poetry in the hands

Tradução do poema "Apoéticos", feita pela escritora Letícia Palmeira.

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Parecer sobre o maldito


Por Germano Xavier

curvaturas em desalinho
da mulher-pecado,
as sinuosas da seda
colada ao corpo quente
atenuam as feras criadas
nas jaulas do coração.

(ela chora, e sua lágrima
faz derreter as esferas
esquálidas e sequiosas
das mentes mais vãs)

curvar-se é brasão de fraqueza.
o amor jorra feito o fogo
das claridades mais absurdas.
o controle é perdido, e perdido
é o afã de se querer controle.
a queda de um abismo é livre,
fatal consequência e o seu golpe.

não há escape nem saída.
tuas melenas são correntes,
frias e alucinantes,
de um rio de querenças diárias
sobre você.

a noite não tardará, o que vejo é apenas
o começo de uma batalha onde o vencedor
roga sempre por perdão.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

O bulício das ruas


Por Germano Xavier

“Só depois refleti
Que aquela rua da tarde era alheia,
Que toda casa é um candelabro
Onde as vidas dos homens ardem
Como velas isoladas,
Que todo imediato passo nosso
Caminha sobre Gólgotas.”
(Jorge Luís Borges)


As ruas que passam nas tardes
das tempestades dos homens
que, dessonhados de corpo e alma,
e com articulações oxidadas pelo infortúnio
do Tempo, cujo espaço não cede
que seja um suspiro de alívio
pelas sangraduras atemporais
produzidas pelas próprias mãos de erguer esperanças,
transportam as casas ingenuamente
fincadas na turba da terra
e abrem os portais da infância
refletida na altura do farfalhar
das folhas nas árvores do vento,
este deus que não se esquece
de soprar a dimensão real
dos nossos horizontes,
tão cegos...

sábado, 18 de janeiro de 2014

A morte nunca é o fim

Imagem: Deviantart
Por Germano Xavier

o momento em que nado
peixe humano e vivo
em que braçadas dou numa água azul
não me devolve respostas e enfim vejo
que nada está bem
que nada é se nos parece

anexadas em algum lugar
deixaremos nossas coisas-testamento repartidas
diante da descoberta pelo que ainda falta
um caminho de espírito

sem paz
no início de uma morte
que pode ser minha ou de toda gente
ainda buscando
um passado que ultrapasse fronteiras
através do tempo um passado
reconhecido no desconhecido

a morte desce escadas
não faz barulhos nem teme a hora

somos uma prisão logo após o começo
esmagados por mãos que ainda farão de tudo para que o nado
não se complete
para que nos permitamos ir sem suspeitarmos do que vivemos

procuraremos o sol
quando a história for segredo
quando a proximidade for mentira
e sacrificaremos toda verdade
tendo como alvo um cisto que só nos importuna

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Com a alma aberta e o coração cantando

Imagem: Deviantart
Por Germano Xavier


A gente sempre deve sair à rua como quem foge de casa,
Como se estivessem abertos diante de nós todos os caminhos do mundo.
Não importa que os compromissos, as obrigações, estejam ali...
 Chegamos de muito longe, de alma aberta e o coração cantando!

Do poema A VERDADEIRA ARTE DE VIAJAR, de Mario Quintana.

Cheguei de muito longe, meu caro amigo (ou amiga). Muito longe de mim mesmo foi de onde cheguei. Cheguei de muito longe e com a alma aberta e o coração cantando. Cheguei de onde estive por todo este tempo antigo que vive atrás de mim, a me inserir ofensas e nojos. Cheguei de onde caí e de onde também me levantei, várias vezes. Cheguei até de onde gostei de estar, mesmo sendo hora imprópria para apegos. Cheguei aqui depois de ter atravessado o poente inteiro, dado mil voltas em volta dos trópicos, após sobreviver de poços com areias movediças e tudo que. Por isso o meu sorriso no rosto, o meu peito abrigador de coisas boas que revelo agora. 

Peço-te um trago d'água, pois sinto sede. 

Caminhei demais, amigo (ou amiga). Não quero parecer um "coitadinho", mas sofri rumando e tive frio. Frio de solidões profundas. Frio de se sentir pequeno. É dor de lembrança, tudo. Felizmente venci. Felizmente estou aqui, chegado de muito longe, até de mais longe que o longe que alguém possa imaginar. Eu mesmo não esperava de mim tanta travessia. Saio de onde estive para estar onde estou. Isso é grande demais, é importante. Liberta-me e me disponibiliza dizer "Adeus". Adeus, infância confusa, cidades pisadas, mulheres não-minhas-por-inteiro-e-ou-sem-amor, camas vadias, cigarros tristes, incertezas certas, humanidades desumanas... adeus, súbitos abraços, gentilezas vazias, golpes contra meu estado, felicidades sem suor. 

Com a alma aberta e o coração cantando, aporto de novo na vontade vaidosa de me ser como sou, instituto de angariar sabores de classificação extra. Estrada, estrada, estrada. Norte, sul, leste e oeste: centro. Trouxe amor na mochila, trouxe para você e principalmente para mim. Há de se amar o amor. É só ele que me movimenta. Não tenho nem quero nada. Só o amor, esta experiência inútil e única, como chegar a si mesmo.

O que tão logo posso


Por Germano Xavier

eu posso ser desumano quando bem entender.
o teor do meu texto, eu não o direciono.
não há amigos. amigos não existem.
não quero ter um milhão de amigos. seria trágico.
seria cômico ter um milhão de amigos.
ainda pior que saber do fim. que saber dos fins.
dos fins do entender. enseada.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Paralaxe para nenhuns


Por Germano Xavier

para Iza Freitas


Dinamene existirá como o poema oceânico
das baleias jubarte que se distanciam do próprio mar,
seres sozinhos.

Sedes solitárias, como o bastardo enjôo das águas
pelas guelras dos peixes peçonhentos,
monstros marinhos.

O poeta louco que troca a humana pele quente
pela fria carne das palavras, indiferentes,
indomináveis, um bicho camoniano.

O que há de tão estranho em se cometer crimes
de lei contra as esfinges de peitos flácidos,
que nem perguntam nem respondem?

Algum verso dirá, se te escrevo, que gaivotas
pousarão como dias esquecidos
na copa alta das marés de dentro, de nós.

Que buscaremos o ar, mesmo sujo, esticando
o pescoço como girafas frente ao verde,
na cela das naturezas já mortas.

Não regredirá o poema embora o mar de sangue
se banhe, no exalar do medo e das atrozes sombras,
o sonho perto do azul se assentará, se pouco pese o que não dura.

O regente


Por Germano Xavier

Christoph Eschenbach define-se:
sou música.
seus rebentos decolam,
são pássaros, tons e acordes.
o salão é um teatro que surge
de preto e couro
no calçado.
virtuoses dançarinos dançam
a dança mágica, hipnótica
para os bêbados de ilusão.

mas há espaços vazios, cadeiras
sem alma alguma.
cadeiras, apenas.
porém, do camarim vem nascendo uma sinfonia
de estorninhos,
alados e superiores ao homem,
que preenche pouco a pouco os ocos
num ritual natalício brotante de plumas.

eis o trópico.

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

O rei derrubado


Por Germano Xavier

do lado avesso, no tempo torto,
na hora morta, no fogo triste,
na glória avulsa, no sonho tisne
habita aflito o vago, o absorto...

no parecer e não, no não saber
e no pensar - e infelizmente não -,
reside o século escuro, o trovão
sem a luz, pálido, sem rosto nem ser

nem clarão. armadas da perfídia, peles
citrinas de algodão escondem o mal
humano. no jogo do fosco, vis satélites

nos legam o alimento já sem o sal.
do outro lado, condescendente, mente
o ginete mareado em seu trotar à frente...

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Os ventos, caídos, sem asas


Por Germano Xavier

ao ler Gabriel Garcia Marquez e Carme Solé Vendrell


O estranho caído
como um anjo
sobre olhares normais!
Eu sei que um velho de asas
de boca caído
na lama
desfaz o roxo da normalidade.
Que a decrepitude
da velha haste sobrenatural
de um anjo
é a renascença de velhos
ventos novos...

Mesmo o alívio do voo
pesado
dos dias
das angelicais memórias velhas
e essenciais
da vida
é brisa-vento.

domingo, 12 de janeiro de 2014

Recado a Gullar


Por Germano Xavier

vai morrer o poeta, Gullar,
aos 23 anos. ele sabe
que vai
e sabe até onde cairá, pesado,
num feriado,
véspera de alguma coisa.

vai morrer hoje,
que amanhã é longe.
descansou a teima, deu-se.

hoje, assistiremos à morte
de uma criança.

semanas depois, as vassouras de cerdas
naturais, as cortinas improvisadas,
o ventilador branco encostado à esquerda
da cama, as fechaduras, os copos, as toalhas
e os livros arrumados na estante, a máquina,
as borrachas e as lâmpadas soluçarão,
ocas de significados,
diante do susto e da certeza
de não mais ser.

sábado, 11 de janeiro de 2014

Confidências do Iraquarense


Por Germano Xavier

Alguns anos vivi em Iraquara.
Principalmente nasci em Iraquara.
Por isso sou triste, sentimental: de cal.
Noventa por cento de cal nas calçadas.
Oitenta por cento de cal nas almas.
E este alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.
A vontade de amar, que me paralisa o estudo,
Vem de Iraquara, de suas noites frias, sem pressa e sem tempo.
E o hábito de sofrer, que tanto me persegue,
É doce herança Iraquarense.
De Iraquara trouxe prendas diversas que hora te ofereço:
Esta humanidade de criar-se feito bicho;
Esta pedra de ferro, futuro cal do Brasil;
Esta ardósia riscada em desenhos, na parede da sala de visitas;
Este orgulho, esta cabeça baixa...
Tive amigos, glórias, tive instantes.
Hoje sou estudante.
Iraquara é apenas uma fotografia na lembrança.
Mas como dói.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

A fera

Imagem: Deviantart
Por Germano Xavier

(guardo fotos de um passado)
há um passeio público em você
nas dobraduras de tua carne
na grossa gordura de tuas delícias

manipulo imagens
adoro a sensação de te ver
é a mais pura simplicidade

(guardo fotos de um presente)
me contam sabores distintos tuas costas
nuas e molhadas
tua boa entreaberta
nação aproximada em minhas retinas

tua leveza já legitimada

(opero fotos de um futuro)
de lambidas amargas em tuas fontes
de entradas rústicas em tuas portas
da visão frontal de teus triângulos
construtores de mapas por tesouros
incentivadores de adormecidos leões

O sobrenome do deus


Por Germano Xavier

reviramentos galgo
onde o júbilo não grassa

a pele gretada
da terra
cunha o texto maior

como se desafinassem
as eternas querelas
entre a dor e o amor

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

O órgão da noite de ontem

Imagem: Deviantart
Por Germano Xavier

as pessoas estão dormindo
ou simplesmente fecharam as cortinas
os apartamentos estão escuros
e o amor está na ânsia adormecida
desatinado e sem emprego justo
perdido em sua própria técnica de existir

está mesmo na voz embargada
domada matéria arisca que pervaga
o tudo e o nada em nós

o fim da tarde faz um céu azul-barateia
malfadadas estão as nuvens que logo desaparecerão no breu
Il mio autore convalesce em meus braços
e se tudo fosse tão lógico como minhas vistas de quase trinta janeiros
o produto de minha semântica inteira se derramaria em meus pés
a me lembrar dos frios que outrora senti

do outro lado da rua (ou da solidão)
fecho as cortinas e finjo desaparecer na luz que me apaga
quando no agora já é hora de temperar fantasia

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Poema chuvestre (um pouco mais de visão)

Imagem: Google
Por Germano Xavier

olho a rua pela mesma janela
da tarde
a rua resta vazia no meio das construções molhadas
percebo que alguns homens ainda se escondem

o dono e a mulher da quitanda
se esquivaram das águas das calhas
e das bicas dos telhados
e agora sorriem risos secos
(eles esperam qualquer coisa para o dia que sobrou)

paro um pouco e pouso no além da praça
vejo uma criança
inaugurando pela milésima vez
a velha gangorra de voar

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Poema chuvestre

Imagem: Google
Por Germano Xavier

paro e pouso
os olhos
o corpo
diante da janela

vejo o dono da quitanda
protegendo seus abacaxis maduros
sua esposa escondendo o que lhe cabe
(no momento)
dentro do estabelecimento comercial

um homem com uma boina marrom
e com as mãos nos bolsos
aposenta seus passos embaixo da marquise

uma senhora observa seu relógio
o moço da venda ao lado recolhe cadeiras brancas
de plástico

as bicas e as calhas dos telhados choram água
por todos os lados
a mesma água que lava a calçada

domingo, 5 de janeiro de 2014

Meus quartos


Por Germano Xavier

“Afinal de tudo
não resta nada.”
Júlio Cortázar

meus quartos estão por detrás do poema,
onde tudo ainda está para ser dito –
o único lugar que ainda vivo está inabitado.
meus quartos foram os poemas que deixei
para os sonhos – e como foram tantos!
meus quartos de aluguel embebidos numa dança triste...

de solidão as paredes nuas,
ruminando o musgo de seus donos.

meus quartos não os tive, não os terei, e foram dos outros,
que se apoderaram da doença que lhes causei – ou curei.

com portas cortadas ao meio
para a vista do alto das cabeças humanas –
o que se vê nesta visão? -,
com fechaduras que se abriam
para o imóvel banco cerâmico das merdas,
com janelas brancas sem brandura
escancarando a face mentirosa de meus dias,
com camas sem sono, podres de suor, com molas já vencidas
de se deitar moribundo no lugar de tantos outros tantos.

comportas por onde me escondi dos olhos,
redutos abertos à minha insanidade,
excêntricas fábricas de poesia.

meus quartos debulhados na ânsia morna de morte,
na ânsia de acabar tudo
sem final feliz.
meus quartos que me moraram, meus fornos à lenha,
pelos quais estampidos estalavam
na brasa ardente das sublimes imaginações.

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Marco Zero


um presente de Daniela Delias para mim

não sei se Ella
ou aquele seu bilhete
em letra miúda
de amores antigos

tão você anunciar-se
em jornais e flores
entre o norte
e o sul das coisas
aqui, onde me divido
assim, quando nem existo
no fim, marco de mim
seu verso, meu começo

foi como se a vida
tivesse algum centro
o afago de um deus
entre tanto interdito

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Morador


Por Germano Xavier

toda casa guarda uma
casa perdida, toda casa
é uma casa esquecida, uma casa
sem casa, uma casa sem casca,
deixada,
um morador.

adormece dentro dela o grito
da criança velha, a idade antológica
da ciranda dos anjos, aborrece
no seio
a paz dos fantasmas,
o uivo das brechas,
a quintessência das brenhas.

a casa não esquece o silêncio,
não apaga a esbórnia
de que o tempo é capaz.
confessa calada, como um coração
pujante, o sangue escorrido
nas alcovas, o lixo despejado sob
o capacho
nem a mágica hora do amor.

toda casa abriga um abismo,
toda casa é uma alma pensa,
uma ferida
auto-curável,
toda casa é um caso
murado com mistérios,
morado pela dor.

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Galope


Por Germano Xavier

uma voz de mãe
na altura da lua
noturna
amansa meus cavalos

o pasto gris
de dúvida
acende os luzeiros
no céu da alma

a moça pequena
rompe das serras míticas
a alfazema doce
de minha relva gitana

uma voz de mãe
na altura da lua
noturna
amansa meus cavalos