terça-feira, 12 de março de 2013

Colecionando infâncias


Por Germano Xavier

Na minha infância, o sábado era sempre um dia especial. Eu acordava cedinho para ajudar minha mãe no leva-e-traz corriqueiro da feira livre, tradição de Iraquara. Era mais ou menos assim: depois de me levantar, nunca depois das oito horas – minha mãe dizia que depois de certa hora o consumidor só encontrava as sobras das mercadorias -, eu tomava o café da manhã reforçado e aprontava o bocapil artesanal que iria ser meu companheiro durante o restante da matina. Minha mãe, sempre bonita e bem arrumada, colocava as cédulas e as moedas que seriam gastas nas compras numa pequena bolsa de mão – mais tarde numa polchete de cor preta– e depois, entrando no carro, esperava sempre que eu abrisse a porta da garagem. Abria e fechava, mas nem sempre. Iraquara, naqueles idos, ainda era uma cidade onde os moradores podiam sem medo escancarar as entranhas de seus aposentos à luz dos olhares alheios.

Dentro do carro, rumávamos em direção à praça onde a feira acontecia – ainda hoje a feira acontece no mesmo local, com poucas mudanças -, ora seguindo pela Avenida Sílvio Almeida, ora descendo pela rua do antigo clube da cidade, passando pela pracinha do Banco. De longe já se podia ver o burburinho típico desse evento semanal. Pessoas com suas sacolas nas mãos, animais amarrados em árvores, fastiados e resmungões, quase sempre jumentos e cavalos em sua maioria, descansando sob a sombra, bagaços e toda a espécie de lixo esparramado pelo chão, antigos comerciantes cortando o fumo-de-rolo, os vendedores de especiarias, os gostosos e inigualáveis pães caseiros de Zú, os sacos repletos de farinha em diversas cores e gostos, as conversas amigáveis, as comadres em reencontros saudáveis ao espírito, as mocinhas aloiradas dos distritos e municípios vizinhos com seus encantadores olhinhos azuis ou verdes, as barracas diversas, o cheiro de carne e sangue impregnado na madeira e nas facas dos agrestes açougueiros, os cachorros na espreita por um naco de toucinho, os negociadores de qualquer coisa, ávidos como aranhas diante das presas, tudo, absolutamente tudo era já sentido mesmo estando a metros de distância do local.

Minha mãe procurava um local para estacionar o carro, quase sempre o mesmo, bem centralizado, para que ficasse mais fácil e rápido o trabalho que a mim era designado. Quase sempre começávamos pelas frutas, verduras, legumes, e só depois as carnes. Assim que o bocapil ia ficando cheio, lá ia eu, com a chave do carro em uma das mãos, despejar tudo no porta-malas e voltar para onde minha mãe estava. No começo, quando iniciei essa tarefa, encontrar minha mãe na volta era sempre um martírio. Ela nunca estava na barraca ou em suas proximidades. Porém, quando fui me acostumando, aprendi com a experiência qual o destino possível no qual minha mãe poderia estar. Apesar do movimento frenético das pessoas e da enorme variedade de feirantes vindos de diversas cidades vizinhas e das zonas rurais pertencentes à Iraquara, os barraqueiros tinham uma enorme facilidade em conquistar sua clientela e, desse modo, ficava mais fácil fazer tal dedução. Era quase sempre tiro-e-queda. Eu olhava na direção imaginada e lá estava ela, selecionando mais alguns alimentos.

A sensação de aventura incrustada nesse simples afazer era o que me movia a estar ali, sempre de prontidão quando o sábado raiava por entre os morros da Chapada Diamantina. Para mim, era uma espécie de divertimento. Fazia tudo com enorme prazer, e quão bom foi receber de minha mãe, já após muitos sábados levando e trazendo e carregando as coisas dentro do bocapil, uma quantia em dinheiro, algo entre um ou dois reais, como mérito ao meu esforço. Deveras um incentivo a mais para continuar o meu digno auxílio. Tudo não demorava mais que três horas. Depois da última “carrada”, eu ficava dentro do carro esperando minha mãe voltar. Era a hora de ela ir à parte das roupas dar uma olhada nas novidades. Às vezes passava um ou outro conhecido, amigo de futebol de rua ou colega de classe, e matava assim numa curta conversa o pouco tempo que me sobrava.

Daí pegávamos o rumo de casa. Abria e fechava o portão, depois ajudava a retirar as coisas do fundo do carro e colocar em cima da mesa os biscoitos, as laranjas, a “quebradinha” de que eu tanto gostava, os pimentões, a melancia – quase sempre devorada ali mesmo naquele instante -, onde depois minha mãe arrumaria tudo. Lembro que, com o dinheiro que ganhava em mãos, saía de casa a pé ou com a bicicleta em retorno à feira para comprar carrinhos de metal. Com aquele dinheiro eu comecei a construir minha primeira coleção de alguma coisa – antes eu já tinha experimentado colecionar embalagens de shampoo, bolas de gude ou etiquetas de roupas, mas nada que fosse para sempre. Custavam a bagatela de cinqüenta centavos cada e os mais bonitos eram vendidos na lojinha do pai de uma professora minha, bem perto da igreja matriz. Voltava para casa com quatro novos carrinhos, minha coleção aumentada e mais colorida.

Terminado o serviço, era a hora de construir estradinhas no quintal de casa e brincar sentindo o cheiro do tempero fresquinho que evolava por toda a casa. Andu com costela de porco era o sabor dos sábados da minha infância. Meu pai, depois que terminava de atender seus pacientes, ainda preparava outro tipo de carne na churrasqueira no fundo da casa. Um suco de maracujá ou de caju acompanhava o banquete. Eu tinha ainda toda uma tarde e uma noite de sábado para viver, assim como toda uma semana para sonhar com os novos modelos e as novas cores dos meus próximos carrinhos. Arrastava os joelhos até ficarem roxos por entre as três mangueiras do quintal, empurrando os carrinhos com a força de uma pureza ingênua e fazendo com a fricção dos lábios o barulho do motor como quem acelera e dobra as curvas da vida. Da cozinha vinha a voz da minha mãe dizendo que o almoço estava pronto. Eu estacionava os carrinhos na garagem da minha casa na estradinha e corria para lavar os pés. Era quando a tarde resvalava nas nuvens iraquarenses. Ah, as tardes!, tão tardias...

2 comentários:

Yvana disse...

Muito bom amigo Germano, era bem assim, infância boa, brinquei muito no quintal da minha casa,tinha casa de bonecas feita por meu pai, ali aprendi a cozinhar no pequeno fogão a lenha, a casa era perfeita uma miniatura da casa "Grande" hoje faço questão de um enorme quintal porem meus filhos já não curtiram essa boa fase da nossa época, uma adolescência sadia e bem vivida, coisa que hoje é raríssimo. Só que eu ao contrario de vc, não gostava de ir a feira, kkk, mais gostava das novidades que a minha mãe trazia, aquela zoada me perturbava e até hoje, perturba, parece que sou bicho do mato, não gosto muito de multidão, prefiro o silêncio.

Urbano Gonçalo de Oliveira disse...

Olá Germano!
Gostei desta "viagem" ao passado.
Fez-me lembrar também as minhas idas à feira, mas com a minha irmã e a feira era à segunda. Eu detestava claro, mas agora olhando para trás esse tempo deixa uma certa nostalgia.
Obrigado, fica aquele abraço.