domingo, 12 de maio de 2013

Sua majestade, a identidade



Por Germano Xavier

Bernardo Carvalho, colunista do jornal Folha de São Paulo, certa vez escreveu: "Só se fala em identidade quando ela faz falta. E quando falta alguma outra coisa. A identidade, seja ela em que âmbito for, costuma ser um assunto deslocado, um substituto, a miragem de um porto seguro, um cano de escape, a promessa de um alívio para a falta de sentido e para o mal-estar dos indivíduos no mundo e em sociedade". Talvez seja por isso, ou seja, por se mostrar um objeto um tanto quanto abstrato e vulnerável, que o tema identidade cultural seja tão complexo e de difícil desdobramento.

Para se fomentar um discurso concernente à existência de uma identidade cultural e de uma cultura nacional, é preciso compreender a formação sócio-cultural, política e econômica do nosso povo. Faz-se necessário o entendimento ideológico de todas as suas significações e representações, tendo em vista que o conceito de cultura e de dinâmica social estão historicamente ligados; assim, pode-se elaborar uma análise mais objetiva e crítica de toda a nossa herança cultural.

A partir do momento em que se dá o processo de aculturação, de intercâmbio de valores e de culturas, fica mais difícil trabalhar a questão do que vem a ser uma cultura nacional, com seu conjunto de valores particulares e expressivos. Lendo Darcy Ribeiro, é possível perceber que ele coloca a cultura em um ângulo privilegiado, no qual qualquer sociedade é, ou pode ser, gerada (reconhecida) a partir do seu acervo patrimonial e representativo. A cultura, segundo o autor, é uma forma totalmente perceptível; todavia, ao mesmo tempo encaixa-se num aglomerado extremamente particular, de caracteres natos.

A identidade cultural, assim como a cultura em si, tem no homem o seu maior constituinte, pois é ele que se constrói e ao mesmo tempo constrói a cultura que posteriormente o constituirá. Considerando a linguagem, a religião, as crenças e os valores como sendo componentes fundamentais da cultura, e também como modos padronizados e instituições reguladoras da mesma, fica praticamente impossível a concepção de uma identidade sem reconhecermos a presença de uma padronização que se insere factuando o processo de assimilação do povo "oprimido", em decorrência do poderio do mais favorecido.

Pensar em "um Brasil" e em "um brasileiro" é enveredar-se num processo marcado por conflitos ideológicos e físicos. É preciso se ater ao quesito "nação" (conceito mais político), como também à produção de uma cultura brasileira por parte da comunicação nacional, já que o cinema - para servir de espelho -, entre outros meios, é um fator preponderante na construção de uma identidade cultural e uma identidade nacional.

Sabe-se que o território brasileiro permitiu uma penetração cultural de proporções colossais e de maneira bastante facilitada. Aqui se misturaram brancos, negros, amarelos, índios, entre tantos outros povos/raças que, por sua vez, fizeram coexistir inúmeras crenças, valores, significados, línguas e representações. Esses aspectos denotam que, por mais que haja uma personalização e uma individualidade, existirá sempre perspectivas semelhantes referentes à percepção de um território cultural.

Para poder dominar outros povos, as pessoas tiveram de aprender o verdadeiro significado da palavra "diferença", assim como os "dominados", necessariamente, tiveram, também, a obrigação de descobrir o significado da palavra "diversidade" e da palavra "identidade", pois somente nos tornamos seres sociais a partir do momento que nos adentramos na sociedade e a sociedade, por conseguinte, penetra em nós.

A nacionalidade é o que forma a nação, como também é algo intencionalmente produzido. A cultura vem para tornar concreto o Estado brasileiro. A cultura identifica as pessoas e é preciso constituir um fator preponderante para a descoberta de uma nacionalidade própria. Mesmo com toda a diferença existente, ainda compartilhamos de uma ordem comum, e esse compartilhamento é de razão obrigatória. A partir desse pensamento, é possível, e mais notável, imaginarmos uma identidade cultural e uma nacionalidade conquistada através de uma ação de cultivo, uma expressão que se produz cultivando.

A cultura no Brasil emerge com a consolidação de uma classe burguesa na primeira metade do século XX. O afloramento de uma nacionalidade confunde-se com a aceleração no desenvolvimento das relações capitalistas com o crescimento quantitativo e qualitativo da burguesia e do proletariado. Esse período é caracterizado por uma efervescência política e um forte embate ideológico que acaba refletindo nos distintos campos de expressão cultural. É nesse contexto que vai emergir, também, a posição do regionalismo como cultura, o que abarcou uma leva de aspectos político-culturais. E, novamente, enxerga-se a presença e participação dos meios de comunicação como instrumentos e veiculadores da cultura nacional/regional, influenciando o todo através da formação e expansão de uma cultura de massa.

Toda espécie de interação social é de fundamental importância para a "fabricação" de uma cultura de indentidade e de uma nacionalidade brasileira, já que se identificar é produzir um espaço social próprio. O nordeste, nesse cenário, surge para reclamar o reconhecimento de seu espaço, numa manifestação muito tardia. A edificação dessa identidade nordestina, muito atrelada a ação do cinema, foi e ainda é de uma complexidade única.

É sobre a ótica que acredita na existência dicotômica entre litoral e sertão, deixando de lado a representatividade européia relacionada às experiêncas históricas, valorizando as visões inerentes à América, que Nísia Trindade lima, autora do livro "Um sertão chamado Brasil: intelectuais e representação da identidade cultural", vai trabalhar. Esse contraste em relação ao território de uma nação, dando características e identificando-os diferentemente, não é fato exclusivamente brasileiro: "Podemos lembrar, entre outras, a linha divisória entre o oeste e o leste alemães, que mereceu a atenção de Max Weber, a questão meridional na Itália, tal como a abordou Antônio Gramsci, além da busca incessante da historiografia americana pela especificidade do sul (Lima, 1999)".

A posição em que o regional se encontra - quase sempre às margens do processo civilizatório, subjugado à condição de "barbárie" - marca o debate concernente ao posicionamento de uma identidade nacional brasileira. Aqui, o conceito de "fronteira" se destaca por ter uma importância muito grande para que se desenvolva tais estudos, predizendo que fatores geográficos exercem um papel fundante e de primeira instância na produção de conceitos identitários. No caso do Brasil, esse conceito de fronteira deve ser substituído pelo de "sertões".

Os processos de tentativa de se explicar a formação de uma cultura de identidade no Brasil são muito semelhantes: "Em ambos os casos, temos um espaço de contornos geográficos pouco definidos, representado como lugar onde se desenvolveria o mais típico de identidade nacional (Oliveira, 1996)." Só que este pensamento não é compartilhado por todos os estudiosos do assunto, o que faz com que haja alguns intelectuais pensando e refletindo em uma enorme diferença quanto as experiências brasileiras e norte-americanas, por exemplo. "Nos Estados Unidos da América do Norte teríamos com o movimento de fronteira a universalização do núcleo inicial de origem puritana - contribuindo para o deslocamento populacional e para a mobilidade social desse núcleo -, enquanto, no Brasil, fronteira implicou, em grande parte, a simbiose de paisagens, pessoas e culturas. Talvez a evidência mais expressiva desse contraste esteja nos diferentes sentidos atribuídos à palavra fronteira entre os norte-americanos e os brasileiros. A palavra que indica mobilidade, para os primeiros, chegou a ser usada, no Brasil, com referência a pessoas. Os homens eram "fronteiros", vivendo o encontro de hábitos, de etnias, de linguagem, em suma, de culturas. Daí que a figura mais representativa, esse homem fronteiro, visto especialmente como produto do encontro do português e do indígena, seja identificada em diferentes textos com a figura do sertanejo (Lima, 1999)".

É impossível estudar a cultura brasileira sem considerar o fator regional, que sempre, ou na maioria das vezes, é refletida às outras partes do país e do mundo de maneira preconceituosa e muitas vezes inverídica. Há uma caracterização do fator regional - sob uma ótica extremamente mercantil - que leva a uma desconfiguração de seus elementos mais reais, dando-lhe o caráter cômico e/ou de aberração. Isso faz transparecer uma espécie de isolamento das partes interioranas do Estado brasileiro; uma forma de exclusão que marcou e ainda marca a nossa história. "O isolamento em que vivemos não foi apenas do Brasil em relação a outras nações durante todo o período colonial, mas no interior da unidade nacional, entre diferentes grupos e instituições (Azevedo, 1958)".

"O desconforto não se encontra apenas frente aos brasileiros do interior; ele está fundamentalmente no intelectual que também se coloca como estrangeiro - em relação aos habitantes rústicos do interior e aos valores dos copistas que tomam outra civilização de empréstimo e perdem de vista a autenticidade da nacionalidade brasileira (Lima, 1999)". Percebe-se, aqui, a importância e a capacidade de influência dos meios comunicacionais, tanto do cinema (já abordado) quanto da televisão, do rádio e também dos meios impressos. Este último, onde se insere de maneira mais abundante e original a literatura, permite a visualização dos diferentes tempos históricos e contextos físico-políticos em que as manifestações culturais regionais estiveram presentes, sofrendo mudanças - "enfatizando a busca por uma caracterização autêntica do homem do interior e questionando aqueles que associem de forma simplista regionalismo e conservantismo (Lima, 1999)".

Fica então um tanto que dificultoso e sublinhado os meandros da formação identitária nacional; uma identidade cultural que descarta as inúmeras possibilidades do espaço regional, e que é gerada a partir da visão segregadora de intelectuais parciais, por uma mídia alienante e por um outro Brasil que ainda não aprendeu a se valorizar.


* Peço desculpas, mas perdi a última folha desse texto, na qual estava contida toda a bibliografia estudada. Fico em débito com vocês, pois. Este texto data de 12 de dezembro de 2005.

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