quarta-feira, 8 de maio de 2013

Toda parte de um fogo


Por Germano Xavier

O leitor do que acontece comigo e com minha vida sou eu mesmo. Sou quem lê as páginas, quem as marca com qualquer objeto, sou quem se esquece do que leu e também aquele que atua sobre o lido. Pouco há sobre a terra e sob o céu que me faça caminho de perdição, que me faça frágil homem sem local, e sobre a brevidade da vida me refiro sempre a você que não se refere a nada. Você que se especializou em partir destinos, que autorizou o que nunca imaginei para mim, eu penso que nem penso mais depois de você. Vida seca? Não mais, certo fico. Ultrajes sempre habitam quem se arrua muito, mas e a pomba na praça em abril? Para entender o texto basta abrir a porta. Toda porta esconde um rumor de morte. Toda porta é parte do que parte. Toda porta é parte de outra porta. Toda parte é um grande sertão – e toda porta não? Atrás de toda porta há um convidado por demais especial. Ao lado de toda parte há um vácuo de universos. E quem lê o vazio é capaz de ler tudo. O convidado é o sol para todos. O sol é para todos, Harper Lee? O sol não se basta por ser tão quente. Ou em toda quentura se esconde também um frio de fim? Me faz um romance realista! Me faz uma pintura de Cézanne. Nossa jangada é de pedra? Pra onde corre o rio de nós? Duzentos anos de solidão, pra onde quero morrer? Pra que parte parto além da porta? Duzentos anos de solidão, já pensou? É mais que realismo fantástico a batida da tua música em meu peito. Onde você aprendeu a arrombar portas? Em agosto vou partir, você vem? Você parte comigo, arromba a porta? Em minha cabeça vejo você de vestido saindo em disparada, sagaranada, tipo belicosidade de lua. A fugitiva. E o moreninho da taverna se questionando “pra donde ela vai assim?”, meu deus! Em agosto, contra o gosto, partiremos pela porta, parte de um todo, todo de uma parte de partir – partidas? Bem verdade, partir é partilhar. Partida, partilha. Ninguém vai só, aquela coisa de andorinhas. São todos os fogos. É o fogo. Tem coisa mais linda que o fogo quando a madeira crepita em gemeção? Pense no sacrifício da madeira, o quanto ela se entrega inteira para do seu corpo brotar a luz amarela e vermelha. É o fogo. É o fogo a única coisa que se vê. O fogo e esta insustentável leveza de ser fogo. O fogo só mata a sangue frio. No restante, ele mantém vivo. As vítimas soam como prêmios. Depois alguém se exorciza e de que adiantou querer tanto ver o fogo que a vida pode queimar? Ao fogo não se dá nada. Nem ele dá. O fogo se entrega. Quem se dá ao fogo está se entregando em definitivo. E toda entrega, ladies and gentlemen, toda entrega é um porto. Não se entrega nada com a esperança de que um dia o que se entregou possa voltar para o lugar onde foi originado. O fogo é maior que Gênghis Khan. No diário do fogo somente as confissões de queima. A labareda do fogo queima arquivos. O único fogo que realmente existe é o fogo que queima em terceiro grau. Se não for assim, não perca seu tempo, porque não é fogo. É outra coisa. O fogo é à parte. O que parte do fogo entra pela porta do porto e não regressa mais. Se regressar, já sabe... No porto se guarda as entregas. E é um guardar para partir no adeus sem cena. Desde pequena você era a menina que arrombava portas, que guardava entregas, que via partir partes no porto. Teu mal secreto era toda uma gramática de arcanos que só você sabia. Não foi você quem escreveu a Antologia da Literatura Mundial em lendas, fábulas e apólogos? Toda poesia, a misteriosa chama da morte você sabe apagar. Toda vez que apagamos um fogo fica uma cicatriz. Germinal. Fica todo um dicionário amoroso como estampa de pele. O fogo que não terminou é a parte que não partiu. O porto rejeita a não-partilha. No navio, vai à tábua. O que fizemos de nós que não sabemos do mar após tantos portos? Qual o teu melhor conto sobre portas, partes e portos? Em que lugar você aprendeu a desajeitar rotas assim? - vamos à tábua. Quem parte primeiro?

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