terça-feira, 15 de abril de 2014

Relato de um defunto fresco



 Por Germano Xavier

O que você faria se hoje fosse seu último dia de vida? Talvez não fosse a melhor hora de se relacionar com o mundo, justamente por simplesmente saber que no dia seguinte você não fará mais parte dele, a não ser como pó, lembranças e, em alguns casos, saudades. Eu não sabia que ontem seria meu último dia. Acordei cedo, mais do que normalmente o fazia. Acho que a vida quis dispor a mim mais alguns minutos para que pudesse vê-la, mas não foi isso que entendi. Na verdade senti raiva, queria continuar dormindo, ainda me sentia cansado. Mas não consegui mais. Levantei mal-humorado, fui ao banheiro, lavei o rosto. “Cara feia”, pensei olhando para o espelho. Poderia ter sorrido naquele momento, diante de um pensamento tão tosco e de uma imagem idem. Mas não sorri, do que me arrependo. Foi um sorriso a menos em minha vida. Segui levando no rosto um semblante pseudo-austero, rabugento, quase infeliz. Fui tomar café. Quando se pensa em morte e sabe-se que antes dela haverá um último momento, imagina-se que tudo nesse último momento será da melhor forma possível. Como em uma despedida de solteiro. Comigo não era diferente. Imaginei que minha última refeição matinal seria como naqueles filmes em que se baba frente à TV e que, em certos momentos, você jura poder sentir o gosto das iguarias. Tudo que achei foi um saco de pães dormidos. Poderia ter ido à padaria e comprar pães novos, ou ainda aqueles biscoitos refinados que há tempos paquerava no balcão, mas que, devido ao preço, nunca tive coragem de comprar. Eles pareciam muito bons de fato, mas não tive como constatar isso. Contentei-me com os pães duros e secos. Abri a geladeira e o que vi foi uma caixa de leite aberta, meia dúzia de laranjas já quase apodrecidas e água. Poderia ter feito um suco. Fiquei com preguiça e acabei comendo só aquilo que um dia tinha sido um pão. Andei pela casa ainda sustentando no rosto a raiva de ter acordado cedo. Sentia-me o próprio Casmurro. Sentei na poltrona, fiquei horas sem fazer nada. Não percebi como estava o céu, se chovia ou se brilhava aquele sol costumeiro. Não senti cheiro algum, não ouvi música, não falei com ninguém. Acho que sequer pensei. Anulei-me por um instante, mal sabendo que em poucos instantes estaria anulado para sempre. Quando resolvi levantar e dar algum rumo àquele bendito dia, o relógio já marcava 10:37. Fui ao banheiro novamente, tomei um banho apressado. Pressa para quê? Sentia-me importante quando tomava banho rápido. Parece que todas as pessoas importantes, que têm reuniões de negócios com outras pessoas que carregam maletas e por isso também são importantes, tomam banho rápido para chegar ao destino no horário. Eu não era importante, não tinha uma maleta nem horário marcado para reunião de negócios. Mas imaginava que um dia teria tudo isso e já ia treinando. Saí do banho, vesti a roupa que vestia quase todos os dias. Uma calça jeans, a camisa amarela com um desenho que nunca entendi o que era na frente. Já estava até meio desbotada. Vi minha camisa nova balançando no cabide. Não cheguei a usá-la. Estava esperando uma ocasião especial, mas acho que esperei demais. Abri a porta resmungando porque ela emitia um ruído insuportável, um rangido que era quase uma canção brega. Poderia ter resolvido com um algodão banhado a óleo de cozinha. Mas acho que preferia perder meu tempo reclamando toda vez que a abrisse. Andei pelas calçadas empunhando minha maleta imaginária, olhando para as pessoas com meu ar de superioridade que me afastava de uma grande maioria. Sentia-me melhor do que os outros, mas por que haveria de esconder isso? Sou branco, bonito e um dia serei um empresário de sucesso, era o que pensava quando via aquele povo feio que tinha a honra de dividir a calçada comigo. Quanta pretensão tola! Hoje sou pó, lembranças e nem sei se saudades. E eles continuam andando pela calçada, agora honrados sem a minha presença estúpida e prepotente. O destino era a universidade. Cursava o sétimo período de administração de empresas. Queria fazer economia também, mas o tempo passou e eu não tive mais tempo. As aulas começavam 9h, mas geralmente eu chegava às 11h ou 11h30min, dependendo da aula do dia. Achava que sabia de tudo, que o conhecimento que me vendiam por um preço altíssimo era desnecessário frente ao meu dom. E por que continuava? Vontade de aparecer e exibir o diploma na sala da presidência de minha empresa. Nunca sequer vendi uma bala. Cheguei, entrei na sala, sentei na última cadeira da segunda fila da esquerda para direita, como fazia todos os dias. Quando se acostuma a uma coisa é difícil mudar. Dá sempre a sensação de que tudo vai passar a dar errado. Era exatamente como acontecia com o tal lugar. Nunca ousei mudar. As horas passavam lentas e eu me agoniava com aquele murmúrio que vinha do professor. Às vezes eles riam e eu nunca ouvia a piada. Sabia que não haveria graça. Tinha alguns amigos naquela faculdade. Uns caras que estudavam comigo, uns de outros períodos ou de outros cursos. Não tinha namorada, mas já havia ficado com quase todas as meninas dali. Nunca dei valor a nenhuma delas, porque eram fáceis demais, interesseiras demais, arrogantes demais. Talvez se espelhassem em mim. Morri sem conhecer o amor. A aula ia até às 13h e eu esperava o momento de registrar minha presença para ir embora. Naquele dia, quando saí era 12h46min. Fui para o restaurante da faculdade, comi o de sempre, um punhado de arroz, macarrão, batata frita, frango e uma coca-cola com gelo e limão. Não foi digno para um último almoço, mas estava realmente saboroso. Só faltou a sobremesa. Voltei para casa e dormi a tarde inteira. Poderia ter ido ver o mar, ou mesmo ter aproveitado alguns instantes a mais ao lado de meus amigos. Poderia ter rido a tarde inteira de besteiras que nos fazem momentaneamente felizes. Poderia ter ligado para meus pais e ter dito o quanto eu os amava e o quanto me fazia falta não tê-los por perto. Mas ao invés disso recolhi-me à minha insignificância numa cama. Dormi pesado, sem sonhos. Quando acordei estava escuro.

Escrito em Salvador, janeiro de 2002.

2 comentários:

controvento-desinventora disse...

Que conto maravilhoso! Lembrei da música do Paulinho Mosca:" O que você faria se só te restasse esse dia..."
Por isso vivo todo o dia, como se fosse o último e, às vezes, tenho tanta pressa de viver...

Sei que o conto vai muito além desta constatação, mas não é posível passar por ele sem levar sobre a cabeça esse sombra.

Urbano Gonçalo de Oliveira disse...

Muito interessante este texto.
Revejo-me em muitas partes, rsrrsrsss.
Dá que pensar, vistas assim as coisas, e ... porque não?!!
Abraço, fica bem.