sábado, 27 de outubro de 2012

Ministrando superfícies


Por Germano Xavier

"É um estranho desejo, desejar o poder e perder a liberdade."
Francis Bacon


Era assim a cor do dia, cor de laranja. Órion, Vênus e a lua quarto-minguante espocando uma luz tímida lá em cima no céu. Dia de dezembro. Noel chegando vermelho batendo esfomeado nas janelas, um pedaço de amor. Um naco apenas. Não queria tudo, apenas estudar a planície solta e fina e viva nos olhos de quem era. Entregou Calina, os livros. Ele respondeu silenciosamente com um aceno de cabeça confirmando o sair depois. Sentou-se. Um passeio e não há de ser nada demais. De onde estava, fitou o livro ainda abotoado em suas mãos. Pensou: "pernóstica linguagem". Como a filosofia grega estava na constituição do pensamento europeu ocidental e através de que elementos poder-se-ia afirmar com tamanha veemência - "aquela velha-gagá!" - que ela, essa desgraça filosófica, presente no modo de pensar de Calina ainda?, não aceitava. Esquivou-se. Como num golpe de traição, o vento empurrou uma folha baldia na direção dos seus olhos. Veio um choro instantâneo após o contato inoportuno. Duas ou três águas de lágrima como proteção. Calina não quis emudecer por dentro. Teria estudado uma vida inteira para desmascarar aquela professora ordinária. "A filosofia grega constitui um ponto de mutação no modo de pensar na Europa ocidental. Os gregos, utilizando-se de outros meios de esclarecimento para a explicação do mundo e de todo o seu arcabouço constitutivo, acabaram indo de forma contrária, ou parcialmente contrária, ao pensamento vigente naquela época", maturou. Raciocínio coevo com o do Alberto, melhor amigo. "Pernóstica linguagem", pensou novamente, alimentando uma ira de anos. "Emília, aquela idiota!". Não se davam bem. Calina fazia do seu conhecimento uma arma e um poço de divergências, porque tanto mais sabia mais perdia sorrisos. Suas macias comas omegadas se distanciavam demasiado de todo o encarapinhamento dos cabelos da Emília, talvez aí onde se resumia o início de todo esse mal-querer. "A filosofia grega, ao definir o ser humano como racional e dotado de uma alma universal, sua morada, recusa as explicações pré-estabelecidas por meio de narrativas - os mitos - ao passo que ordena uma nova fundamentação para a existência das coisas e, posteriormente, do homem", continuava. Para Calina, Emília tinha de perceber que toda essa fundamentação, antes baseada no "acredite se quiser", utilizando de sínteses e análises argumentativas e debatedoras, acabou por se tornar mais apta para a resolução da maioria dos questionamentos do homem europeu. Professora, cinquenta e quatro anos de idade, Emília denegria o olhar para a filosofia, já cansada de tanta guerra e pouco reconhecimento, não vendo nela um marco, um símbolo humano de vitória. Não acobertava a idéia de que o homem, ao usufruir do poder do julgamento, do debate, da análise, do resumo, de uma produção de ordem própria, de um desejo pela descoberta, deixaria transparecer a sua presença nos nossos dias e em nosso modo de pensar. Calina, vinte e sete, era pura inobservância nas aulas de Emília. Desrespeitava. Peitava. Desejava a morte de Emília. Assassinaria. Seria ela o punhal que esfacelaria órgãos e esquartejaria o corpo. Ulterior ao embate no recanto acadêmico, Calina fungava consigo mesmo um não-concordar com a voz que entrava em seus ouvidos. Era um desejo por poder dizer a verdade. Alicerçar uma verdade, fundá-la, na frente dela, dos colegas. Fazê-la passar a vergonha da ignorância adquirida com diplomas e mais e mais certificados de não sei quê. Adormecia e acordava e tinha sonhos de orgulho, Calina. Tinha para si a inconteste marca da sabedoria. Para ela. O pulso era sinal maior do saber. E isso ela possuía. Pulso. Chegaria um dia na frente de todo mundo e na frente de qualquer um que fosse e a desmascararia. "Passar vergonha, vexame". Emília precisava. Era infilosófica e tinha os cabelos encarapinhados. Um mito pelo que de ruim evolava. Partindo do pressuposto de que o mito é uma narrativa ou estória onde está contida a explicação da vida, da natureza das coisas e de si própria, operando e proporcionando o sentido e a essência da existência do homem na terra, Emília para Calina não passava de uma forma contrária. Uma fazedora de superfícies e de tons sem relevo. Ministradora das superfícies, enquanto ela, dia de dezembro, era o intelecto que acreditava que os filósofos da antiguidade mostraram as diretrizes para o caminhar do homem desmerecendo em grande parcela o mito, que crê no início de uma percepção do homem sobre si mesmo, formação de uma conscientização, na razão que se apodera do mito e passa a ser fonte mais influente na tentativa de explicar o surgimento do universo, ou seja, na existência. Para Calina, a tentativa de retratar a criação de tudo por meio do fantástico, da teogonia e da cosmogonia é revertida numa explicação das coisas pelas coisas e do homem pelo próprio homem, sendo que o pensamento diferencia-se do mito, pois opera obedecendo princípios, leis e ordens universais necessárias e que podem ser conhecidas pelo próprio pensamento. "Pernóstica linguagem", vociferou. Medava. Calina não era de ferro. Titubeava também, apesar. Era insuficiente sempre a menina. Não fincava pés no solo. Uma vez gritou que havia uma tentativa de formar um pensamento filosófico baseado numa ligação com a teologia, e pensar naquilo amolecia seus ossos quase sempre rijos. Afirmou que a igreja possui o poder espiritual e que é ela que regula os pensamentos subjetivos. Ergueu o dizer de que o homem pertence a Deus, sendo assim completamente dependente de Deus. Que a razão torna-se contestável e incerta. Suspeitando que o homem é a mais divina das criaturas, não por causa da razão, mas sim por causa de Deus, bradou que a filosofia obedecia e faz obedecer às palavras da fé - da sagrada escritura -, mostrando que o homem não está integrado ao cosmos e tampouco é portador de uma alma do mundo, mas de um elo da imensa cadeia que nos leva do cosmos a Deus. Que operamos também impondo regras e obrigações, limitando o homem e seus passos num mundo recheado de pecados e de castigos. E lembrou de quando o passado marca a urdidura da pele. O passado invadia o corpo de Calina sempre que pegava da voz para matar de uma vez a pobre da Emília, que não tinha rancor. Era o Deus que já havia permitido um dia. Dentro dela, ruminando, desgastando, corroendo. Era o Deus arrancando sua voz, voz-de-deus, voz-de-deusa, fazendo revolver toda a poeira perdida nos bailes de fúria, monopolizando o órgão rouco das catedrais da alma, penalizando com o silêncio infinito toda a maneira afetada de um não-saber-ouvir.

Um comentário:

Germano Viana Xavier disse...

Crédito da imagem:

"the past is just a memory by =andrea-h"
Deviantart