Por Germano Xavier
Sinais. Sinais. Primeiro o despertador acendendo o som ao lado, na cama. Um homem que se levanta. Trôpego humano homem com cara de travesseiro. Noite ruim dormida no escuro, um apelo ao incômodo que mata. Desacostumou-se com a beleza do escuro. Pensou vou narrar minha própria epopeia. Minha saga. Sou guerreiro. Sou espada e sou escudo. Ninguém me vence e mesmo assim sabe que um homem lá do alto o observa. Timidamente espreita. Não quer ver nenhuma besteira durante o trajeto, nenhum gato esmagado por rodas de liga leve, nenhuma fratura de pernas exposta ao sol central nem minas despertadas por homens já sem vigor de andar, mulher xingando o marido ou correndo atrás dele com uma faca nas mãos. Sinais. Sinais. Duro carregar todo este peso nas costas, mesmo que seja até ali na esquina do mercadão. Esta vida moderna demais, cheia de coisas que quebram, que caem e se estilhaçam, coisas frágeis. Pensou que seria inteligente pensar em Deus naquela hora. Vida cheia de sentimentos. Pensou para que tudo isso? Vida cheia de coisas sem sentido. Eu mesmo só preciso de um aparelho. Me acredito simples. Apenas um. Tríade: imagem, som e movimento. Sou hoje um homem movido ao desejo frenético da apresentação. Representar não é mais para tanto. Coitado do Belchior que tentou decorar um poema inteiro do John Milton e na hora agá você precisava ver. Um homem sem performance, sem brilho. Cada qual no seu caminho e no seu galho, macacada inteira, e eu que sou mais eu. Só preciso deste aperto. Foi só uma peça. Um ajustezinho de nada, um clickzinho chinfrim e pá pum. Lá eu. Estrela no céu, navegador de mares. Sem esforço nem nada. Porque é lindo demais, concorde comigo. Lindo demais. Lindo. Dá vontade logo de um banquete e lindo demais. Então eu vou lá. Se achegue. Venha comigo. Oi, Rosa, bom dia! Como vai o espinhoso do Haroldo? Foi só um arroubo dentro de minha cabeça. Vizinha maluca. Vive conversando com as plantas. Qual o sentido de se conversar com plantas? Meia volta e a fechadura sempre subalterna a mim eu fechei. Porque em casa sou eu quem mando. Moro sozinho. Limpo, passo, lavo, lustro. Mesa, mármore, mezanino. Olha o gato da Vera, miou a noite inteira em minha varanda. Desgraçado de gato preto! Sinais. Sinais. O carro buzinando um homem. Uma fumaça lá dentro fumando um homem. Uma roda de bicicleta girando um homem. Uma rua inteira passando um homem. Sinais. Sinais. Um homem carregando uma enorme coisa preta nas costas sou eu. Dói só um pouco, mas a Cléo um dia me disse que eu tenho as costas largas e que como como come um operário, prato fundo e água para ajudar a fazer a massa. Por isso pensei sou forte. A recompensa é maior. Dias e dias de alegria. Maria da padaria, a Joana da venda, Maurício assistente social, para todo mundo um bom dia. Educação é mesmo uma coisa sagrada, um legado. Coisa que meu pai não me deixou, aquele rufião. Coisa que minha mãe não me deixou, aquela cafetã. Mas lá em minha casa, onde estive no início desta narrativa, lá em minha casa nada de recordações familiares. Sou um sujeito feliz comigo mesmo, mas devem pensar que eu não conheço a felicidade. Se bem que tem dias que me sinto um feliz sem alegria, como disse certa vez um escritor. Nada de fotografia ou relógio personalizado. Sou muito contente comigo mesmo. Sinto-me apto. Odeio esta obrigação pós-moderna de ter de reviver o que já passou. Tudo isso para reafirmar que sou forte, apesar de não fazer academia. Sinto uma leve dor na altura do meu ombro esquerdo, mas não reclamo de nada. Penso na recompensa e sorrio. Já entrei com os olhos no vislumbrar da loja. Santa loja! Pago o preço que for para ver de novo em pleno funcionamento o objeto que parou. Aconteceu ontem por volta das 17 horas. No exato momento em que eu acionava o chuveiro elétrico, ouvi um pipoco seco vindo do meu quarto. Depois um cheirinho de queimado. Pensei não pode ser. Apressei-me. Shampoo ainda espumando em meu cabelo, saltei do box e nem o chuveiro fechei. De longe constatei. Lá estava, queimada. Minha vida agora sem graça foi o que passou em minha mente. Sem o colorido, sem a voz calmante, sem a dança inebriante. Pensei na perturbação, na falta de sossego, eu sem a minha paz. Depois não pensei em mais nada. Só no calendário. Está na cozinha. Fui ver. Hoje, vejamos, agosto, mês 8, terceira semana, dia 18, merda! Hoje é domingo! Comércio fechado segundo a tradição. Dia de desopilar. Esperar até amanhã para realizar o concerto. Chamou por Deus. Meu desespero era visível. Corpo molhado, cheio de sabonete grudado pelo corpo. Calma. Um suco de maracujá. Flor da paixão. E o maracujá todo murcho, nunca entendeu. Como sua existência agora, murcha, desbotada, insossa. Correu. Uma gigantesca caixa preta em cima de suas costas, quase um jumento cargueiro. Forte. Correndo. Sinais. Sinais. Calçada. Fachada da loja. O ajuste. Bom dia, moço. Quanto custa para consertar... aqui não, soou a voz por detrás do balcão. Mas... como assim? Moço, eu não dormi a noite inteira. Por favor, entenda a minha situação. Tive um pesadelo onde eu estava num lugar bem alto e de repente eu caia interminavelmente, como que num buraco sem fim, tomei remédios, água e açúcar, esperei o dia passar, a noite... Eu não posso voltar para a minha casa com ela assim, inútil. Ela é a minha vida, moço! Sem ela eu não vivo! Senhor, fique calmo, é só uma televisão. Nós aqui só assamos frango. Sinais. Sinais.
2 comentários:
Crédito da imagem:
"Blue Moon by ~midnight00"
Deviantart
É viver despido da burguesia tem um preço, ser feliz de verdade, diria. Outro dia li uma crônica muito interessante onde o cara dizia que sua educação havia sido forjada por três mestres, a empregada, a tv e seu cachorro. O cara que descreveu me fez lembrar dele, mesmo com a ausência dos outros dois. Gostei demais de ler teu texto, nem dá pra falar tudo que passou aqui nessa minha mente inquieta...rs Gr. Bj. G.^^!
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