quinta-feira, 4 de julho de 2013

Orquídeas



Por Germano Xavier

Terminaram o amor e os pratos do dia anterior estocados. Jamais gostei de pia. Casa era um negócio mais tranqüilo. Mete-se um pano úmido nas brenhas das estantes e das mesas e pronto, está feito. Ou uma vassourinha aqui e acolá, e logo a perfeição do brilho. Gostava mesmo era de ficar ali me fingindo de bobo enquanto ela detonava o frasco de detergente sobre a esponja gordurosa, olhando para ela de esguelha no mesmo instante em que as panelas se tocavam umas nas outras, aquele som natural da gente, e ficar ali, sempre que me desse na veneta, olhando mesmo, forte, bem dentro dela. Mas aí vinha com uma conversa estranha para junto de mim, dizendo que lhe faltavam palavras para expressar o que estava sentindo naquele exato momento.

“A noite foi tão especial”.

Eu dizia “deixa disso, menina”, e falava “chegue, pise aqui nos meus pés e suba”, e por um breve instante eu a fazia flutuar. Flutuávamos como quem desce as ladeiras do céu. Ela gostava, eu sentia, algum resquício da infância boiava no seu sorriso branco.

“Um dia desses eu ainda me caso com você”, gritou ela da cozinha no momento em que eu espanava a poeira do velho aparelho de tv na sala.

“Olha, amor, deixa eu falar”, gritei. Ela surgiu bem nas minhas costas com um cutucão na altura dos rins e me disse “que foi?”. Aí fui falando sem antes me esquecer de ligar a radiola e completar “me concede esta dança?”

Som bom, som bom...

“Escuta, benzinho, sei que este não é o meio mais adequado de dizer as coisas de que preciso. Vai lá saber, mas... chega a ser esquisito. É frio, impessoal e distante...”

Venha, deixa tocando.

“Cuidado com meu pé, fiz as unhas ontem”, me avisou com os olhos e o canto da boca, entrando em êxtase.

“Mas também frio e distante tem se tornado cada vez mais o nosso relacionamento. Nós já conversamos bastante, de modo que eu não me sinto em dívida em questão de esclarecimento, diálogo, ou quanto ao compartilhar de sentimentos.”

“Acontece que não é este o tipo de relacionamento que almejo ter, você sabe disso”, continuei.

“Espera, amor, vou abaixar o fogo do arroz”, retrucou ela, escapando dos meus braços. A casa cheirava à pimenta-do-reino e cominho, coentro e torresmo. Voltou saltitando e antes de me abraçar novamente aumentou o volume do jazz. Mordiscou o meu lábio e escutou eu dizer “tenho te atendido em tudo que me é solicitado, inclusive nas cobranças e reclamações. Não, não tenho aqui a intenção de cobrar nem reclamar coisa alguma. Venho aqui com toda a serenidade possível, reconhecer que talvez esse não seja o nosso momento.”

“Não duvido que você até goste de mim, mas devemos ser francos, você não gosta o suficiente para manter comigo um relacionamento amoroso”, fortaleci a idéia.

Ela colocou uma das mãos por sobre minhas nádegas, e ficou apertando lentamente enquanto dançávamos. “Apesar das turbulências que vivemos durante todos estes anos, nunca me passou pela cabeça que seríamos obrigados a por fim em nossa união. Muito menos num momento definitivo em minha vida como está sendo agora. O que vejo é que justamente nesta passagem de fase estou tendo de passar por várias avaliações, inclusive as da vida.”

Naquele momento a casa parecia mais clara, com um ar mais limpo. Um vento necessário aventurou-se pelo interior do cômodo. Vinha da janela aberta que dava para a enseada. Olhei para ela, e sem temer falei “você não quer se apegar, e é justamente o que eu quero. Você sabe de tudo que preciso e não me é necessário repetir. Talvez você realmente não esteja num bom momento para se relacionar com outra pessoa, ou seu problema seja só comigo - não me importa. É fruto de minha observação mais profunda que você não sente necessidade de manter contato comigo, de saber como estou, ou de estar perto de mim. Não sei o que te motiva a "estar comigo", mas também não quero me adentrar nesses méritos. É um problema seu.”

Esquivando-se, depois de um olhar mais perturbado que lhe atirei, perguntou-me se eu já havia regado as orquídeas. Falei que não, mas que não demoraria. Assim que terminássemos nossa dança, eu colocaria um pouco d’água nelas. “Benzinho, do meu lado eu sei o que me motiva a estar com você. Assim como o que está me desmotivando também. Nem de longe a mera curtição é motivo para mim. Beijar por beijar, beija-se qualquer pessoa. Sexo também. Eu reconheci em você, desde o início, um potencial humano parecido com o meu. Mas, ultimamente eu não tenho conseguido enxergá-lo. Mesmo sabendo que existe. Todo esse tempo eu estive aqui disposto pro que desse e viesse, como sugeria a música que te remeteu a mim, lembra? Mas, você não deu e nem veio.”

Da última vez que me esqueci de regar as orquídeas, ela foi para a casa da mãe e me deixou de castigo por um mês. Sem poder vê-la, quase pulei da ponte. Eu sabia que não vinha coisa boa agora.

“Não há mais como permanecer no "eu comigo mesma". Já reconheci e aceitei que não tenho lugar em sua vida, que não sou prioridade alguma e que talvez seja mesmo mera passagem, como um dia você me disse que certas pessoas são. Já reconheci também que não posso viver de passado ou de futuro [imaginário]. Sei que sou apaixonada por aquela pessoa que conheci naquela primeira semana, e admito também que morro de amores por quem eu achei que ela se tornaria com o passar dos dias. Não posso me prender, contudo, ao que poderia ter sido e não foi. E me dói muito pensar no que poderia ser e não é, e ainda mais, no que poderia ser e não será.”

“Então tá”, falei com raiva nos dentes. “Não precisa mais se sentir péssima por me deixar péssimo. Nessa relação experimentei do doce e do amargo, mas permanecer no neutro é simplesmente dar pra trás. Como diz a música, "há tantas pessoas especiais...". Não sou de parar no tempo. Eu corro depressa. Sinto que você não quer ou não pode me acompanhar. Sim, eu te compreendo imensamente, mas preciso pensar em mim. Eu sei que você entende isso. Será até um alívio pra você ler tais palavras. Eu vou por aí, vai se livrar de mim. E um dia, se a gente se encontrar, quem sabe seja a nossa vez de amar.”

O vinil tinha chegado ao final das rotações. É a hora em que se cessam os volteios das leves almas, quando alguma coisa indeterminada fica suspensa, sem conclusão. Eu disse, meio triste, “quero que saiba que nutro por ti imenso carinho, gratidão e grande consideração. Não há espaço para lágrimas aqui, de modo que não pretendo me despedir. Continuarei aqui pro que der e vier. Mas, você sabe, a vida segue o percurso dela e nós não temos todo o tempo do mundo. De modo que não pretendo olhar pra trás e nem me ater a amarras de qualquer espécie. Estarei aqui para o que você precisar. Se quiser conversar, também estarei aqui. Tens, contudo, a oportunidade do "ponto continuativo" se assim considerar que vale a pena. A decisão é tua e a atitude também. As minhas estão aqui, e espero que eu tenha conseguido ser bastante claro pra você.”

Fui ao quarto. Ainda na cozinha o chiado do vapor ebulia um odor de aconchego, os copos ainda com a espuma do detergente esperando o último enxágüe, a toalha estendida no corrimão da escada, nossas roupas de dormir unidas no chão. “O fim de tudo. Quatro anos desperdiçados”, pensei. Não temos mais como seguir assim. Coloquei tudo na mochila e desci os degraus. Ela me esperava na porta, cabisbaixa, com o baby-doll rosinha que usou para se deitar noite passada. Alarguei o passo e sem dizer palavra me afundei no vazio da rua.

“O que será de mim agora?”, balbuciei.

Antes que eu conseguisse alcançar a esquina que dava para o outro quarteirão, senti uma mão suave tocar minhas costas. Era ela. Vestia agora a mesma jaqueta jeans de quando a vi pela primeira vez, próximo ao Solar da Assumpção, no centro, há alguns anos. Lembrei-me do nosso primeiro encontro. Passa um filme na cabeça da gente nesta hora. E me falando mais com os olhos que propriamente com a boca, soltou:

“Você se esqueceu de regar as orquídeas...”

Um comentário:

Cris Campos disse...

Tolinha essa menina que tem nas mãos o "ponto continuativo" e não faz dele reticências, pior, cuida das orquídeas mas esquece delas, a melhor. Gr. Bj. alma linda!