terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Em memória de nós


Por Germano Xavier


"Terá sido frio seu súbito abraço?"
(Caio Fernando Abreu, em Pequenas Epifanias)


Um primeiro aviso: não quero estar vivo após escrever o ponto final deste texto. Principalmente não quero me sentir vivo. Ultimamente a vida me tem surgido um tanto carregada, tatuagem de pedra encravada nas costas. É certo que há dias em que a desgraça se instala e fica como na maioria dos finais de semana que vivi em Iraquara. Finais de semana não foram feitos para pessoas como eu, definitivamente.

Hoje é um sábado, amanhã será um domingo. Festanças, comemorações, alívios, gente andando pelas ruas com seus cachorros, papagaios, gatos, cavalos, gnus e rinocerontes de estimação - por que não rinocerontes? Mulheres e homens bebendo, papeando, tagarelando, resenhando suas mais inclassificáveis trivialidades. Outros indo aos mil cantos e recantos da Chapada Diamantina. Crianças nos parques gastando suas infâncias. Velhinhos no dominó e no gamão esperando Godot¹ chegar e eu, um ser estranho, sentindo tudo aqui na clausura do meu quarto razoável.

Estou pensando em minha imortalidade, enquanto os outros não. Os outros nem ligam, não se esforçam para morrer brandamente, como sempre faço. Estou pensando na minha mortalidade, enquanto os outros não. Os outros, iraquarenses como eu, apenas vão, e chamam isso de "ir apenas" de liberdade - estarão certos? Estou pensando em coisas que são desprezíveis aos outros - pelo menos agora, na parte pulsante desta coisa a que intitularam "Vida". Estou pensando - e penando também - em assuntos como a morte, como a vida, como a minha mitologia, como a mitologia do mundo, como a desgraça que é ser assim, sentir dor por tudo, sentir dor por nada.

Não, não é que tenho gosto pela maneira como vejo o mundo, as pessoas e as coisas. Não é isso. Não sei até quando sou feliz por assim agir nem triste, sinceramente não sei. Porém, é quando dias assim como esses me abraçam o corpo sem piedade alguma que sinto ainda não ter sido capaz de obter a permissão para entrar de vez no paraíso. E não sei se é deveras este o destino permanente a que aspiro para o depois daqui. Apenas estou pensando em minha possibilidade de morrer, em minha expressiva potencialidade de deixar de existir, de ir, virar pó, de desaparecer para todo o sempre. Só isso que estou a fazer agora.

Ao passo que não consigo ignorar a morte que caminha comigo - posto que é ela a própria alma da sombra que me projeta maior ou menor dependendo do ângulo de incidência da luz -, assino minha qualidade de ser essencialmente mortal, como todos meus conterrâneos de Iraquara. Borges² me diz que "ser imortal é coisa sem importância", e aceito. Minha imortalidade estaria em não me preocupar com ela, e com nada parecido - o que é, de fato, quase impossível. A afirmação por algo, de ser alguma coisa, é a própria constatação de que não se é ou não se pertence. Ninguém é deus ou será apenas se auto-afirmando como um.

E depois disso, novamente penso nas pessoas da minha cidade com seus rinocerontes de estimação, nas mulheres tagarelando pieguices, nos velhinhos jogando a tarde sobre um tabuleiro quadriculado, nas crianças brincando sem economias brincadeiras quase esquecidas pela “ultra-modernidade”. E penso em mim, mais uma vez. E mais uma vez penso no que será de mim após o ponto que finalizará o texto que agora redijo. Estarei morto mesmo, como que pronto para um funeral ligeiro e sem pompas? Continuarei vivo e mudarei alguns conceitos acerca das minhas imaterialidades tão presentes e indefiníveis? O que será de mim após meu pensamento? O que será da gente, povo de Iraquara? Mas, Borges, eu também não pretendo ser tão débil a ponto de morrer por qualquer coisa. Por favor, não me entenda mal. Eis o meu ponto final.


Notas.
1 – Referência ao livro Esperando Godot, do dramaturgo Samuel Beckett.
2 – Jorge Luis Borges, escritor argentino.

domingo, 27 de janeiro de 2013

Ciranda


Por Germano Xavier

maçã sobre o prato
de flandre,
nódoa
no vestido improvisado,
gavetas, ovos, flores,
batatas...
morrer é uma breve
natureza.

sábado, 26 de janeiro de 2013

Um atraso de hora certa


Por Germano Xavier

Para Natália Macedo


um atraso de chegar
e um porto fechado na manhã frondosa,
um mundo partindo de um encontro,
um farol iluminando
a maré aberta sobre o amor,
de amar e amar o mar se encarrega
de cristalizar a alva cortina
do teu manto.

acreditar de novo no novo
faz a rota inteira brilhar.
ser de volta e ter na frente o eterno mar,
o velho porto, a luzidia manhã
entrecortada em rios de riso...

em que ponto mesmo nos deixamos ser
na imensidão das horas?

vou lembrar da dor salva sobre o peito
e a tristeza jogada às ondas pálidas
de um céu de julho.

vou lembrar do falecimento de minhas angústias
na cor segura do coração que apalpa o meu
universo, para deixar de lado tudo e vislumbrar
o mel dos laços.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Estes Brasis


Por Germano Xavier

Da mesma forma que a cultura serve para denunciar o progresso da sociedade, o tempo serve para reformar e construir novos conceitos e ideias. E, em se tratando do polêmico debate concernente ao estudo de nossa identidade nacional (leia-se, brasileira), isso fica ainda mais evidente após uma análise mais acurada sobre o afloramento da visão de que o povo brasileiro deve ser pensado como a fusão de inúmeros fragmentos raciais que, por conseguinte, desencadearão em uma Unidade/Singularidade frente a outras etnias; ideologia essa que começou a ser mais bem tratada a partir dos anos 60. "Nós somos um povo mestiço e isso não podemos esconder", assim escreveu Darcy Ribeiro em seu livro O Povo Brasileiro. Essa afirmação só vem a corroborar um aspecto identitário nacional que, na pior das hipóteses, é completamente visível e indiscutível - ou alguém aqui sabe dizer a verdadeira origem de seus traços físicos? A formação desse "povo ninguém", como assim designou o autor da obra, mesclado e repartido em trejeitos europeus, africanos, indígenas e tantas outras derivações, acabou implicando, querendo ou não, na produção dessa "unidade multifacetada e multicultural" chamada brasileiro. O documentário, que leva o mesmo título da obra, dirigido por Isa Grinspum Ferraz, apresentando este mesmo discurso através de outra linguagem midiática - neste caso a televisão -, faz brotar impactantes questionamentos referentes ao papel desempenhado pela mídia, ou melhor, que deveria ser desempenhado por ela, no justo desígnio de promoção desse "universo homogêneo" que é o nosso país. O filme ainda conta com depoimentos de Chico Buarque, Gilberto Gil, Antônio Candido, Tom Zé, Aziz Ab'Saber, Paulo Vanzolini, Hermano Vianna.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Loas à Muh! e à Rosa do Povo

Por Germano Xavier


Difícil demais essa coisa toda que envolve a publicação de uma revista de cunho literário no Brasil. Digo por experiência própria. Primeiro porque a prática da leitura ainda é coisa a se emplacar nos quatro cantos deste país-continente. O outros porquês todos aqui podem suspeitar facilmente... E quando a revista - ou seja lá qual for o formato em questão - escolhe como matéria principal a veiculação de material em poesia, a tal coisa fica ainda mais complicada. Por isso, vale a pena tecer elogios a alguns "amalucados" por literatura que ainda insistem nessa saudável ilusão. Meus votos de muitas edições vindouras ao pessoal que faz a MUH! - ONOMATOPEIA CULTURAL e a ROSA DO POVO, revistas recém-pensadas e saídas do forno lá nas bandas de Minas Gerais. Vamos todos juntos nesta levada!

Samuel e eu


Por Germano Xavier

Ao ler Fim de Partida, de Samuel Beckett.


Samuel me assombrará no instante das cabeceiras mornas, sonolentas ainda, em acordes de manhã desdormida. Ele me dirá que não é assim que devo olhar as coisas dessa vida e que a vida é mesmo uma junção de esperanças... mesmo esperanças fajutas, mas esperanças. Eu acordarei sobressaltado, quase indiferente, porque sou um mero mortal e desfaço uniformidades de unhas de pé. Aí o Samuel me dirá vai, e eu ainda dormindo em mim. Samuel dizendo já chega e que já é hora de levantar para a vida, e que é hora já de não haver mais horas nem tempos nem aqueles medos medonhos e medíocres de viver e ser feliz por ser simplesmente o que realmente somos... e eu despertando, paulatinamente, um passo de cada vez, um cílio de cada vez, ainda confuso, aturdido em me prestar ouvidos logo pela matina viva e justo ao homem que li na madrugada inteira, insone. Samuel apontará os indicadores magrelos e sem vida aparente para a lâmpada do meu aposento e me dirá acenda, e me dirá brilhe, e me dirá clareie. E eu levantando o corpo pesado, toneladas de pensamentos, direi que estou, que apenas estou e que ouço a palavra verde da vida, verve que quero no dorso carregar, no vulto e casa que sou. Ele, o homem que li na madrugada de hoje, levantar-se-á da cabeceira morna e começará a caminhar caminhos ao meu lado, me dizendo dizeres de pássaros, mesmo aqueles sem asas, mas pássaros. E na revolta dos meus frios, dirá siga e que eu consiga ser o que sempre quis e sempre desejei e sempre sonhei para mim. E me dirá que a vida é aquele galho que se rompe, talisca, fina, que se acende, gás, torto, que se perde fluido, morte. Dirá, o Samuel, que a vida é morte e que morte sempre haverá de existir para quem se vive a vida, do jeito que se quer viver, independente de tudo. E eu já de pé, ligeiramente acordado em acordos, percebendo que o fim sempre está na partida, e que um dia tudo há de acabar e ter a sua partida e não o seu fim, porque tudo que acaba não acaba, apenas parte, apenas parte... apenas é parte de uma água quebrada capaz de unir-se e fazer-se oceano, imensazul de cores, todas transformadas em azul. Dirá lute, o Samuel, dono de conselhos mil em monossílabos complicadíssimos, mas que os sentidos os decifram, porque literatura é também suor e testa franzida e retesada, dor de coração que se abre e de girassol que se curva. Samuel insistirá eternamente a passear passos ao meu flanco esquerdo, avisando olhe o perigo e tocando meus ombros não é por aí... e eu modelando perplexo a vida que se instaura estância, instância feita de instantes e sangues no papel, aqui, em mim, dentro, fundo, poço, calabouço de mim, masmorra de mim, guilhotina de mim, foice de mim que corta cortes no breu do mundo e que me separa o joio e que me diz vale o joio, não apenas o trigo. Ah, Samuel, você não acha mesmo que vou te esquecer assim foi só um momento, não é? Eu que te provo o gozo de meu deleite no pobre texto que agora redijo, mas que é alma pura o meu texto. Alma pura, Samuel... Eu que sempre lembrarei na revolta dos meus frios, que você, Samuel, você, dirá siga e que eu consiga ser o que sempre quis e sempre desejei e sempre sonhei para mim. Eu que sempre lembrarei você, que me dirá que a vida é aquele galho que se rompe, talisca, fina, que se acende, gás, torto, que se perde fluido, morte. Você, Samuel, que me dirá que a vida é morte e que morte sempre haverá de existir para quem se vive a vida, do jeito que se quer viver, independendo de tudo. Eu que sempre recordarei do dia em que eu, já de pé e ligeiramente acordado em acordos, percebi que o fim sempre está na partida, e que um dia tudo há de acabar e ter a sua partida e não o seu fim, porque tudo que acaba não acaba, apenas parte, apenas parte, Samuel...

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Canto de oaristo distante


Por Germano Xavier

Eu te busco nesta noite quente,
não para afugentar teu sono,
mas para olhar teus olhos
na inexata profundidade que quero.

Eu te burlo, querida,
e não te peço licença. Aliás,
ao que é árvore me lanço verde
e me sustento no que é sorriso,
apesar de tantas paredes.
Os minutos de hoje não foram
os de ontem, enegrecidos diante da turba
da indiferença sadia
que passava em nossa frente.
Os minutos de hoje são os instantes
do amanhã solar, cremoso e em especial reserva
refrescante e bloqueadora.

Por vezes me lanço,
âncora,
ao teu recinto de águas,
e sinto o líquido anímico de tuas puras
distâncias...

Como é bom senti-la, querida,
mesmo se tarde for
este meu apego em delírio e gozo.
Não te entendes dos homens insensíveis -
e como isso me é dor!
Não te entendes das ilusões e das máscaras,
porque em ti não há máscaras. Eu sei...
Mas te busco,
mesmo em nefasta aventura
de não poder com tua fuga.
Mas eu te burlo em não fraudar-te
em enganos nem furtos.
A ninguém é dado o direito do surrupio de sentimentos.
E teu sentimento é rio, e nele as gralhas
dançam em veneração.
Olhe, querida, olhe o alto moinho a rodar
a hélice do tempo e espera,
calmamente, como quem espera o fim
do imorredouro estio,
que o vento, esse deus de forças e magias,
renderá os devidos votos de alegria
e correspondência de que tanto mereces.

Mas, por enquanto, fica comigo.
Fica no meu poema inscrito no ângulo da luz,
que ele necessita do teu arcano para iluminar!
Fica! E não te vais em lâmpadas
a deixar-me no escuro dos sentidos.
Fica, querida, que ainda há homens
em contemplação eterna do que é impulso;
que ainda há homens
que te beberão em seca sede o futuro
de tuas acéquias, de tuas ilhargas
e de teus morangos.

Caminha o lume de cada elaboração
divinamente quista, que teu barco sôfrego de mulher
que me apareces não tombará em desnavios.
Peço que venhas pois, nas noites de doentes frios,
guiar-te-ei em amavios.

domingo, 20 de janeiro de 2013

Viandante


Por Germano Xavier

Um silêncio desordenado comove
o brilho da luz que ataca
os cristais sobre o mármore frio.
O frio corta o sangue viscoso
que caminha pelas catedrais
do corpo e a alma se interrompe
no arroxeado sem vida
da matéria que pende
sobre o peso de sua turba.

O infinito ergue as escadas do mundo
e o movimento dos vendavais
apaga as vozes das ruas cinzas
que, castigadas pela rotina,
celebram com ares risonhos
os clamores roucos e cansados
dos que passam, perdidos.

sábado, 19 de janeiro de 2013

Apontamentos sobre a revista Realidade


Por Germano Xavier


* A revista Realidade foi fundada em abril de 1966 por Victor Civita. Sua circulação foi findada no ano de 1976, exatamente 10 anos após a publicação da 1ª edição (1º exemplar). Durante seus 10 anos de vida, a Realidade foi contemplada com 8 prêmios Esso de jornalismo.

* No total, foram publicados 120 números da revista.

* A sua periodicidade era mensal.

* As primeiras edições de Realidade constituíram-se em preocupações constantes para a censura. A prova disso foi o corte da censura para com a edição nº 10, de janeiro de 1967, que publicou diversos artigos e fotografias sobre as condições e mudanças sociais da mulher brasileira.

* A Realidade seguiu uma orientação jornalística que desafiava constantemente as ameaças de censura.

* Informou e retratou as transformações do Brasil e do mundo.

* Publicou reportagens com os Hippies, com Vietcongs, assim como matérias com Carlos Lacerda e Luís Carlos Prestes. Relatou sobre a UNE e também publicou trechos dos diários de Ernesto Che Guevara.

* Uma questão importante da filosofia jornalística da Realidade era a de que os seus jornalistas/repórteres tinham de ir até onde os acontecimentos estavam ocorrendo, e isso era seguido à risca.

* Destaca-se aí a reportagem de Hamilton Ribeiro sobre a Guerra do Vietnã. Durante a sua cobertura, houve a explosão de uma mina terrestre, o que fez com que ele perdesse a perna esquerda.

* Logo em 1968, a Realidade foi perdendo o seu caráter polêmico e reflexivo, devido principalmente à implantação do AI-5 e também por causa do lançamento da revista semanal Veja - lançada em setembro de 1968 e mais adequada aos limites do jornalismo permitido pelo regime militar -, o que promoveu modificações fortíssimas tanto no conteúdo quanto na fisionomia da revista.

* Entre 1966 e 1968, as reportagens que Realidade publicou foram marcadas pela variedade temática e pela presença de personalidades da época.

* A revista Realidade tentou desnudar o conservadorismo, avançando sobre temas que não eram discutidos e também sobre aqueles que eram discutidos de forma bastante tímida por outras publicações.

* Temas como mulher, juventude, sexo, religião, igreja, ciência, medicina, mídia e consumo foram bastante discutidos em suas páginas.

* A Realidade tornou-se uma espécie de pólo-gerador de polêmicas e inquietações socioculturais para a sociedade brasileira.

* O gênero textual jornalístico conhecido como Grande-Reportagem, influência marcante do movimento New Journalism (Novo Jornalismo) norte-americano, foi bastante praticado pelos repórteres de Realidade, e isto lhe era um diferencial frente às outras revistas da época.

Flor da paixão


Por Germano Xavier

Sinais. Sinais. Primeiro o despertador acendendo o som ao lado, na cama. Um homem que se levanta. Trôpego humano homem com cara de travesseiro. Noite ruim dormida no escuro, um apelo ao incômodo que mata. Desacostumou-se com a beleza do escuro. Pensou vou narrar minha própria epopeia. Minha saga. Sou guerreiro. Sou espada e sou escudo. Ninguém me vence e mesmo assim sabe que um homem lá do alto o observa. Timidamente espreita. Não quer ver nenhuma besteira durante o trajeto, nenhum gato esmagado por rodas de liga leve, nenhuma fratura de pernas exposta ao sol central nem minas despertadas por homens já sem vigor de andar, mulher xingando o marido ou correndo atrás dele com uma faca nas mãos. Sinais. Sinais. Duro carregar todo este peso nas costas, mesmo que seja até ali na esquina do mercadão. Esta vida moderna demais, cheia de coisas que quebram, que caem e se estilhaçam, coisas frágeis. Pensou que seria inteligente pensar em Deus naquela hora. Vida cheia de sentimentos. Pensou para que tudo isso? Vida cheia de coisas sem sentido. Eu mesmo só preciso de um aparelho. Me acredito simples. Apenas um. Tríade: imagem, som e movimento. Sou hoje um homem movido ao desejo frenético da apresentação. Representar não é mais para tanto. Coitado do Belchior que tentou decorar um poema inteiro do John Milton e na hora agá você precisava ver. Um homem sem performance, sem brilho. Cada qual no seu caminho e no seu galho, macacada inteira, e eu que sou mais eu. Só preciso deste aperto. Foi só uma peça. Um ajustezinho de nada, um clickzinho chinfrim e pá pum. Lá eu. Estrela no céu, navegador de mares. Sem esforço nem nada. Porque é lindo demais, concorde comigo. Lindo demais. Lindo. Dá vontade logo de um banquete e lindo demais. Então eu vou lá. Se achegue. Venha comigo. Oi, Rosa, bom dia! Como vai o espinhoso do Haroldo? Foi só um arroubo dentro de minha cabeça. Vizinha maluca. Vive conversando com as plantas. Qual o sentido de se conversar com plantas? Meia volta e a fechadura sempre subalterna a mim eu fechei. Porque em casa sou eu quem mando. Moro sozinho. Limpo, passo, lavo, lustro. Mesa, mármore, mezanino. Olha o gato da Vera, miou a noite inteira em minha varanda. Desgraçado de gato preto! Sinais. Sinais. O carro buzinando um homem. Uma fumaça lá dentro fumando um homem. Uma roda de bicicleta girando um homem. Uma rua inteira passando um homem. Sinais. Sinais. Um homem carregando uma enorme coisa preta nas costas sou eu. Dói só um pouco, mas a Cléo um dia me disse que eu tenho as costas largas e que como como come um operário, prato fundo e água para ajudar a fazer a massa. Por isso pensei sou forte. A recompensa é maior. Dias e dias de alegria. Maria da padaria, a Joana da venda, Maurício assistente social, para todo mundo um bom dia. Educação é mesmo uma coisa sagrada, um legado. Coisa que meu pai não me deixou, aquele rufião. Coisa que minha mãe não me deixou, aquela cafetã. Mas lá em minha casa, onde estive no início desta narrativa, lá em minha casa nada de recordações familiares. Sou um sujeito feliz comigo mesmo, mas devem pensar que eu não conheço a felicidade. Se bem que tem dias que me sinto um feliz sem alegria, como disse certa vez um escritor. Nada de fotografia ou relógio personalizado. Sou muito contente comigo mesmo. Sinto-me apto. Odeio esta obrigação pós-moderna de ter de reviver o que já passou. Tudo isso para reafirmar que sou forte, apesar de não fazer academia. Sinto uma leve dor na altura do meu ombro esquerdo, mas não reclamo de nada. Penso na recompensa e sorrio. Já entrei com os olhos no vislumbrar da loja. Santa loja! Pago o preço que for para ver de novo em pleno funcionamento o objeto que parou. Aconteceu ontem por volta das 17 horas. No exato momento em que eu acionava o chuveiro elétrico, ouvi um pipoco seco vindo do meu quarto. Depois um cheirinho de queimado. Pensei não pode ser. Apressei-me. Shampoo ainda espumando em meu cabelo, saltei do box e nem o chuveiro fechei. De longe constatei. Lá estava, queimada. Minha vida agora sem graça foi o que passou em minha mente. Sem o colorido, sem a voz calmante, sem a dança inebriante. Pensei na perturbação, na falta de sossego, eu sem a minha paz. Depois não pensei em mais nada. Só no calendário. Está na cozinha. Fui ver. Hoje, vejamos, agosto, mês 8, terceira semana, dia 18, merda! Hoje é domingo! Comércio fechado segundo a tradição. Dia de desopilar. Esperar até amanhã para realizar o concerto. Chamou por Deus. Meu desespero era visível. Corpo molhado, cheio de sabonete grudado pelo corpo. Calma. Um suco de maracujá. Flor da paixão. E o maracujá todo murcho, nunca entendeu. Como sua existência agora, murcha, desbotada, insossa. Correu. Uma gigantesca caixa preta em cima de suas costas, quase um jumento cargueiro. Forte. Correndo. Sinais. Sinais. Calçada. Fachada da loja. O ajuste. Bom dia, moço. Quanto custa para consertar... aqui não, soou a voz por detrás do balcão. Mas... como assim? Moço, eu não dormi a noite inteira. Por favor, entenda a minha situação. Tive um pesadelo onde eu estava num lugar bem alto e de repente eu caia interminavelmente, como que num buraco sem fim, tomei remédios, água e açúcar, esperei o dia passar, a noite... Eu não posso voltar para a minha casa com ela assim, inútil. Ela é a minha vida, moço! Sem ela eu não vivo! Senhor, fique calmo, é só uma televisão. Nós aqui só assamos frango. Sinais. Sinais.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Da coragem intelectual


Por Germano Xavier

Em se tratando de crítica literária, todo olhar inteligente sobre algum texto ou alguma produção intelectual maior ou mais bem elaborada deveria ser, antes de tudo, um olhar ingênuo, possuir dentro de si e de seu campo de visão um primeiro foco baseado essencialmente na ingenuidade. É somente o olhar destituído de maquinações ou estratégias de ação mais contundentes que pode melhor construir toda uma esfera de complexidade crítica de que se necessita para o desempenho de qualquer atividade de investigação. A ingenuidade dos olhos é quem produz a mais verdadeira causticidade, elemento indispensável para o leitor profissional ou mesmo para qualquer tipo de pessoa que se legitime enquanto bom leitor. Deste modo, o caminho para o urgente distanciamento existível entre o leitor e a obra se abre de maneira facilitada, o que ajuda – e muito – no processo de construção do discurso crítico. Assim, o sujeito de criticidade invade o objeto com mais firmeza de análise e sobrepõe-se a ele, fazendo com que o objeto passe a estar inteiramente em seu domínio. Hoje, nos mais diversos meios de comunicação, seja no Brasil ou no mundo, o que se enxerga é um bando de intelectuais (como eu poderia dizer?) maquinados, robotizados, manipulados por ordens expressas de método e técnica, capacitados para complicar o que muitas vezes é simples, habilitados para descomplicar o descomplicável com receitas baseadas numa estética do adorno calculado. Falta a eles – e a nós também, críticos por natureza – o redescobrimento da ingenuidade e de seu poder de persuasão. Falta-nos o primeiro olhar, mesmo que corrompido, mas o primeiro olhar. O olhar que é feito de espanto, de um susto irremediável, um olhar apaixonadamente lúcido, um olhar amante por excelência, que por sua vez é também um olhar de dúvida, de incerteza, um olhar perdido e com medo da multidão no objeto. Mas um olhar sem covardia, que olhe para o interior das coisas sem precisar descascá-las, um olhar mágico-mítico, ou melhor, um olhar corajosamente ingênuo.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Luz de corrimão, de correr mão


Por Germano Xavier

Veio de vestido, aparentando bucolidades de pureza. Mas ela não me engana, pensei na hora, não..., mulher varrida. Subiu os degraus, passo a passo, eu pressentindo internidades outras. Olhar para baixo, sorriso escondido no queixo, perdidinha. Vou fazer festa, vou rumar para longe, paraíso ou Patagônia – tanto faz, um lugar longe. Flores no vestido, cores no vestido, a aparência nua. Imaginei a temperatura de seu sexo quando cruzou as pernas junto a mim, Saara!, Saara!, seara. Sentamos, quase unidos, fui professando. Aqui é assim, ali é daquele jeito. Não descuide, vá com calma. Tudo pode acontecer, tudo pode ser, o acaso existe ou não, vale tudo. Espera anoitecer, por que não fica aqui esta noite? Há camas vazias como há noites sem nada dentro da noite. Eu sou a noite e você pode ser a noite. Não toque em mim, você não sabe o que faz. Me aperta a mão, sou hiena, sou lobo, rio e uivo. Oh, menina, são teus dedos enluarados, e tão febris. Culpa toda tua, não pedi para subir. Tem água fria, tem água quente. Vais beber? Você não pensa em mim, você é simples. Você só pensa, não faz cantiga. Não tem conversa, mas tem querer. Você se engana, eu estou certo. A formula é que... Pode ir, não tenho pressa. Eu sei que você volta. Ninguém agüenta, todo mundo é fraco, todo mundo é forte. Você pode ficar, e não estar. Vai assim do mesmo jeito. Pode dormir, e acordar, nascer amor-perfeito. Você diz paixão, eu não. Não sou assim. Sou assim. Assim. Vou ler meu livro predileto e você vai duvidar do meu verso. Se você quiser, se não quiser vai ser o fim. Você volta e pode ser que não, pode ser que... não é a vida? O que temer, por que fugir? Nesta festa, o que impera é, imperra-te? Você mansa, amansa-me, mas sou tigroso. Aquele animal preso e com fome do conto de Stockton, que surge da escolha, da porta quista, de abraço ou de morte. Poema epitalâmico ou elegia. Você descobre tudo se não descer. Senão um pulo, janela aberta, eu pulo. Você vai me fazer pular? Você me acha estranho? Tanhar-te, retrocesso algoz, melhor um beijo. Vai-te embora, peste, mas me deixe um peixe de aquário, respirando em mim, para eu fingir alegria. Ninguém suporta tristeza pura. Ao menos um volteio de cor, um golpe com teu vestido, que é para eu lembrar. Um tiro do teu olhar, para eu cair, na sanha da minha cama noturna. Ou um rasgo de unha, na pele, tatoo, de tu, está tudo bem? Pisa de leve em mim, anima-me de dor, não vivo assim, sem. Ao menos o ardor, o calor, a mentira do amor - pois já não é amor? Que hora mais rude para um degrau, tu me iludes ou não sei que horas são.

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

O coração da estrada


Por Germano Xavier


o coração da estrada
está na hora marcada para desmarcar
o tempo para desmascarar
a espera pela partida e pela chegada
está como uma pedra o coração
duro em ser aquilo só
um pulso louco espocando idas
escorando vidas escorregadias
escorregando como num córrego
o homem criado com pernas
preso no destino
no vazio que tem os destinos
no não sabido

é o coração da estrada que há em nossos pés
látegos plangentes placas absolutas de se quilometrar
andanças e perdições (orgasmo-passos)

numa encruzilhada está o coração da estrada
aos mansos fôlegos de quem ainda respira
arfando bufando pois sedento é o que trazemos
no peito na memória nessa toda e patológica vida quente
de perambular errante errando
errando errando
errando

tum-tum



Está aberta a temporada 2013 do blog O EQUADOR DAS COISAS!
Sejam muito bem-vindos, bucaneiros!

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Bucaneiros


Por Germano Xavier

Experimenta. Não é mácula somente
o ardido gosto da derrota.
É que vence
e quebra um elo duro
este querer.

Aprende com entusiasmo meninil,
de compreender estréias.
A gente sempre começa,
mesmo quando investigado
o órgão íntimo da vida.

Insacie-se, de olho aberto.
Os assombros inconduzem-nos às belezas impostoras.
Fragmenta-te, pigmenta-te, fazes de novo
se esconder a morte marulhante.
Inquieta a voz do teu desejo,
inquieta-te!

Aproxima-te, do muro, do negro regato que te transporta,
da curva turva, do ar caindo findo sem paz,
e entrega-te, de rosto
e solto em teus deslizes,
na essencial palidez dos teus instantes,
como quem maneja inundações.

domingo, 13 de janeiro de 2013

O assassino do silêncio


Por Germano Xavier

A hora do fazer o atiçava. Era quase um maníaco. “Um homem estando velho é capaz de produzir filme indiano com ator polaco no papel principal, que usa peruca, no início da película, e em tom acaju”, dizia sempre. Era um suplício cada apresentação. Apresentar a explosão que é a vida é sempre um ato de porra-louquice. Sofria, mas gostava. “As vésperas nos fazem envelhecer”. Esperas e espelhos que tanto amava podiam ser vistos muito facilmente por toda a extensão do camarim. Alguns cinzeiros com cinzas de preocupação. A vida tinha passado muito rapidamente para ele. Pó, rouge, pasta, pincel e muita cor. Dez ou doze perucas, manequins enfileirados e todos parecem robôs. Gostava de seu aspecto nas vésperas e nas antevésperas. Ficava se olhando, se amando. E se odiava também.

Dado à sétima arte, Osman tinha pelo teatro um amor adolescente. Apaixonite aguda, daquela que faz chorar na primeira desilusão. Desilusões que foram para sempre. Psicólogo por formação, o ator de 75 anos atuava e pesquisava sobre teatro com o mesmo gosto. Era mesmo prazer. “Amo o que faço. É minha casa!”, fulgurava vozes. Comprava livros sobre teatro, lia peças, gostava de Beckett e Brecht e de café pelando de quente. Não poderíamos considerá-lo um profissional bem-sucedido naquilo que mais gostava de fazer, mas aprendeu desde cedo a não aceitar migalhas. Não se interessava em comer tudo. Para ele, restos sempre tinham de sobrar. Entrou para a escola no tempo certo, apesar das dificuldades da família, e serviu às forças armadas por dois anos. Lá aprendeu a disciplina e o rigor da vida. Não precisou dar o rabo para nenhum de seus superiores. E por nunca obter a consagração ou promoção das insígnias condecorativas, Osman foi mesmo ser ator e viver de teatro. Na bem da verdade, Osman pouco se importava com medalhas de honra ao mérito. Queria mesmo era ser luz, clarão. E sua vida se confundia com uma encenação, cortinas abrindo e fechando, atos e atos, catarse e platéia em frenesi.

Todo dia, geralmente pela manhã, atravessava a rua Edgar Chastinet, vestido até às botas com roupas e mochilas e trapos pendurados por cordinhas. Fazia isso sempre, pois sabia se virar na vida e não cair da gangorra, como sabia que próximo ao armazém do seu Liosvaldo, havia uma velha casa, cujo dono não conhecia. As paredes brancas, já meio amarelecidas pela ação do tempo, contrastavam com o interior sombrio. Tal afirmação construía, apesar de jamais ter entrado naquela residência, mais devido as enormes janelas de madeira que se encontravam sempre abertas e que, portanto, fazia tudo se tornar visível quando olhado do lado de fora da casa. Não existia muro, mas a casa era enorme. Simples, porém enorme.

“Eu não sou a única pessoa que não conhece o morador dessa casa. Creio que ninguém o conhece. Até bem pouco tempo pensei que aquela casa estava era mesmo abandonada. Talvez o dono tivesse ido morar em outro lugar ou, talvez ainda, o proprietário fosse um homem solteiro, sem filhos, que morrera de alguma doença culpa da velhice, deixando sem herdeiros a sua morada”. As crianças, que saíam à noite para brincar de esconde-esconde, diziam que aquela casa era mal-assombrada, que era possível escutar alguns barulhos estranhos depois da meia-noite, entre tantas outras coisas.

(...)

Osman era muito cuidadoso para com julgamentos e opiniões. Nunca foi de futricas nem de paparicos sem pé nem cabeça. Adorava observar e ver e ver e ver. Dizia sempre que observar é uma virtude do verdadeiro e grande homem...

“Susto mesmo foi quando vi pela primeira vez, depois de todos estes anos, um vulto bem nos fundos daquela antiga construção. Na hora, era quase o sol nascido. Eu estava do outro lado da rua. Esperei um carroceiro passar e fui me aproximando, meio que sorrateiramente, daquela casa misteriosa. Já na outra margem da rua, andei disfarçadamente sobre a calçada e, de maneira ainda mais dissimulada, coloquei-me a espiar delicadamente todo o útero daquela velha mansão. De chofre, veio-me outro sobressalto. A casa estava completamente mobiliada. Eram peças de mobília bastante trabalhadas, desenhadas, fornidas e quase todas de madeira. Deviam ser seculares. Um enorme sofá negro tomava quase toda a extensão da sala. Mais adiante, sob um rutilante lustre de cristal, enxerguei quatro estantes repletas de livros e uma escrivaninha de mogno. Foi tudo o que vi. Muita coisa estagnada, muitos objetos estáticos, imótuos, mas nenhuma pessoa, nenhum vulto, nenhum fantasma... Aí chamei por Deus e perguntei “como podia?”... “de onde vieram todos aqueles móveis, e quem seria o leitor de todos aqueles livros?”...

(...)

Osman sempre gostou do mistério. Era um adorador das coisas mais difíceis e mais inquietantes. Osman era homem de teatro, sem nada de óbvio, monitor de improvisos, professor de horas e instantes.

“Voltei para casa decidido em retornar à rua da casa misteriosa para, quem sabe, tentar resolver o enigma. O relógio marcava nove horas em ponto. Caminhei tranqüilamente para evitar qualquer suspeita. Confesso que tenho medo do escuro e que, por algumas vielas, saí em disparada. Minha casa fica a uns quatro quarteirões daquele logradouro, daquela minha curiosidade, de toda aquela apreensão. Chegando lá, um terceiro assombro. As janelas ainda permaneciam abertas. Aproximei. No fundo, uma lâmpada clareava uma velha máquina de escrever. Havia um pão pela metade e uma xícara de café. Todo o restante da casa estava coberto por uma fina camada de penumbra. Logo após um olhar superficial percebi, numa análise detetivesca e mais profunda, uma tênue e quase viva linha de fumaça saindo de um cigarro fumado havia pouco. A partir daquele instante, imaginei a possibilidade de haver uma pessoa ou qualquer uma outra criatura viva dentro daquele aposento”.

(...)

E Osman lembrou dos contos do Poe e dos contos fantásticos do Maupassant. Havia lido quase tudo desses autores. Desde o poema fatal do pássaro negro de mau agouro do inglês, ao aterrorizante Horla. E lembrou de tudo e pensou que a fantasia é mesmo muito mais real do que a realidade... O véu da noite tornava o céu escuro e com um certo ar fantasmagórico, devido às faixas vermelhas de nuvem que cortavam as distâncias mais horizontais. Talvez fosse nessas horas do mundo que, no Empíreo, morada celestial divina, Deus recolhia os seus lençóis brancos e se descobria sonhando sobre a maciez de um nimbo.

“Olhei para o meu relógio. Era já madrugada e as janelas teimavam em permanecerem abertas. Tudo como numa manifestação provocativa. Qual a razão para o amor e para o ódio que desenvolvo pelo escuro? Nunca imaginei que janelas abertas e escancaradas pudessem nos defender de alguma ação marginal... sei, mas o marginal, naquela situação, era eu. Toda a quietude do lugar me sufocava. Estava pensando em ir embora. Só um louco como eu faria o que estou fazendo. Foi quando um ancião, aparentando seus setenta e poucos anos, desceu os degraus de uma pequena escada que havia ao lado de uma das estantes onde ficavam os livros, a maioria peças teatrais. O velho vestia uma camisa de algodão de cor branca, uma calça amarronzada e uma sandália de fivelas. Passou a mão na testa e sentou-se na cadeira da escrivaninha. Após um instante de reflexão, o velho pegou de uma folha de papel, alimentando a máquina. Depois foram teclas batidas, batidas de um jeito silencioso e amável, como se as teclas fossem feitas do vidro mais frágil. Os dedos do velho pousavam sobre as peças metálicas com uma suavidade inefável. Ele devia ser um escritor. Pessoas que gostam de escrever são mesmo assim, taciturnas e caladas, donas de uma misteriosidade inabalável e de solidões inenarráveis.”

(...)

Osman não gostava de textos que não podiam ser vividos dentro de um teatro. Chamava esses tipos de “textos mortos”. Lia e sempre necessitava ver um ator ou uma atriz sendo aquela personagem, repetindo aquelas frases, aqueles monólogos que lia no papel. Osman precisava viver, sempre.

“Fiquei ali durante quase toda a madrugada. Fui para casa. Estava com muito sono. Mas aquela situação não saía de minha mente. Eu tinha de desvendar aquele mistério. Quem era aquele homem? O que ele fazia ali? Por que ele vivia trancafiado naquela casa? E porque ele não fechava as janelas, mesmo quando era noite?”

(...)

Osman era do tempo da vida. Não sabia morrer. Tinha sorriso escondido, mas alma de quem quer a felicidade. E desejo maior é esse, causador de sonhos e sonhos. “Sonhos são peças humanas em teatro de mundos”, sempre mais.

“Repeti a rotina dessa minha espionagem por quase um mês inteiro. Todo dia era tudo igual. Um velho perto dos oitenta anos de idade, uma velha máquina de escrever, alguns cigarros fumados na sala de estar, pães dormidos pela metade e algumas xícaras de café espalhadas pelos cantos. Aquilo começou a me aborrecer. Eu não conseguia entender como uma pessoa pode viver assim, se podemos chamar isso de vida. Como pode uma pessoa renunciar a vida de tal maneira, mesmo que essa mesma pessoa já esteja em seus últimos dias?!”

(...)

Osman tinha paz e era do tempo. Se chovia, era gota d’água. Se sol, era raio e queimava. Não tinha dentes bons, mas era bom escravo de si mesmo e das artes. Aliás, amava.

“Ocorreu-me uma vontade insana de matar aquele velho. Ele já não devia querer mais a vida. Talvez esperasse que a morte viesse lhe beijar a face na sempre próxima lua cheia”.

(...)

Passaram-se alguns dias. A casa continuava com suas janelas abertas.

“Eu estava decidido. Iria tirar a vida daquele pobre homem. Talvez, agindo assim, estivesse eu fazendo um favor. O velho deveria ser um homem frustrado no amor, em sua profissão. Talvez pensasse em suicidar-se, mas não tinha força para se jogar de uma ponte ou de um prédio qualquer. Nunca tive tanta certeza em minha vida. Estava decidido a ceifar a vida do velho e, para isso, resolvi pegar o revólver do meu irmão emprestado. Tinha uma certa prática, pois sempre gostei de treinar a pontaria em garrafas de vidro, no quintal de casa. Só para não perder a noção aprendida em quartéis e batalhões por onde passei. Eu estava deveras resoluto quanto ao que ia fazer. Certamente, seria um ato de total loucura, ou quem sabe não”.

Osman era homem de matar o seu tempo, mas nunca tivera coragem de burilar em relógios. “Seria muita ousadia”, confabulava.

“Arrumei tudo, até a data da morte do velho. Nada poderia dar errado naquele momento. Tinha de ser apenas um tiro, seco e certeiro, na calada da noite. Não podiam existir testemunhas.”

(...)

Era chegado o dia. Manhã do dia 23 de setembro.

“Aprontei tudo. Pacientemente, limpei o canhão do revólver. Não podia falhar. Eu não podia falhar.”

Osman era, por vezes, seu próprio texto, sua própria palavra.

(...)

Noite. O relógio marcava dez horas. Estava tudo pronto.

“Eu jamais tinha matado um ser humano. Naquele dia eu passaria a ser um assassino, mas ninguém iria saber. A cidade dormia. Andei. Alguns quarteirões adiante e logo vi o local do crime. Rua Edgar Chastinet. Lá estava a casa com suas janelas descerradas. A rua dormia seu sono mais silencioso. Só se ouvia o barulho do farfalhar das folhas nas copas das árvores. Provocadas pela ação do vento frio da madrugada, as folhas dançavam uma valsa quase réquiem. Aproximei. O canto era fúnebre. Olhei o relógio. Os ponteiros marcavam uma hora e trinta e cinco minutos da manhã do dia 23 de setembro. Um corvo me espreitava do telhado. Sentia alguém me tocando, sussurrando em meus ouvidos, como no conto do francês. A fantasia é mesmo muito real. A lua clareava pouco a superfície da terra. Aproximei. Passos silenciosos. O corpo tremia, minha boca tremia, meus lábios tremiam, minha mão suava. Últimos passos. Lá estava ele, o homem, no auge de sua velhice, quase calvo, sentado, fumando um cigarro e escrevendo alguma coisa. O homem e suas peças teatrais, literatura elisabetana. Sem mais tempo e pensamento perdido, resolvi atravessar a rua e me esconder atrás de um poste. Atiraria dali mesmo. Não haveria problema com relação ao aumento da distância, eu era mesmo um bom atirador. Coloquei a bala no revólver. Tudo pronto. Esperei o velho terminar de fumar o seu cigarro. Sem pensar mais nada, apertei o gatilho, num golpe de pura sanidade. O projétil singrou o ar, cortando-o velozmente, penetrou a casa, fez acender uma chama gigantesca que desencadeou uma série de explosões no interior da mansão, até culminar num estouro de proporções quase nucleares. A terra tremeu por longos minutos e uma cortina de fumaça negra cobriu toda a cidade”.

O relógio havia parado. Pouco se sabe do que aconteceu depois. Não se sabe do paradeiro do velho da casa nem de Osman. O que se sabe é que Osman era, por vezes, e também, o seu próprio teatro.

Cortina abaixada.

sábado, 12 de janeiro de 2013

De grandes para pequenos


Por Germano Xavier

Grandes são - digo, imensos - os escritores que conseguem ou conseguiram escrever bons livros para o público infantil. O escritor russo Máximo Górki, exímio frasista, já dizia: "Escrever para crianças é igual a escrever para adultos - só que mais difícil". Não sei até onde a assertiva dele pode ser levada em consideração, mas deve ser mesmo um exercício fantástico, parafraseando Drummond, penetrar surdamente no reino mágico das crianças. Por outro lado, se olharmos com mais atenção na direção deste campo da literatura, iremos perceber como as coisas mudaram - e muito. Boa parte do encantamento presente neste mundo de fantasias livrescas cedeu lugar para a produção em série de histórias banais, muitas das quais sem nenhum ou com pouco potencial para mexer com o imaginário dos pequeninos. Dois bons exemplos de livros "infantis", daqueles que todo pai ou mãe deveria ter em casa para ler e reler para seus filhos, são Quase de verdade e O terno tanto faz como tanto fez, escritos por Clarice Lispector e Sylvia Plath, respectivamente. Não são historietas óbvias, mexem com a gente - até quando a opinião de um marmanjo como eu vale para esses casos? Não tive oportunidade de lê-los quando tinha menos idade, mas certamente a estória contada - latida, melhor dizendo - pelo cão Ulisses à sua dona Clarice, em Quase de verdade, e o sonho realizado de Max Nix, caçula de sete irmãos, no livro de Sylvia Plath, fariam de mim uma criança com boas caraminholas na cabeça, como diria o outro. Fica evidente as marcas textuais que caracterizaram os textos adultos das duas escritoras, principalmente em Quase de Verdade, onde a autora recorre a figura do ovo para embalar a pequena trama e no fim põe em nossas mãos uma pergunta. Já Plath brinca com o acaso e no fim revela que tudo pode funcionar perfeitamente se soubermos olhar uma determinada coisa ou fenômeno com outros olhos. As ilustrações de Quase de verdade são assinadas por Mariana Massarani e por Rotraut Susanne Berner, em O terno tanto faz como tanto fez. As publicações são da editora Rocco. Eu me diverti. Veja se você consegue também. Boa leitura!

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

O cão, este amor


Por Germano Xavier

Tenho motivos suficientes para só pensar em mim. Saí meio mal da sala de cinema. Um misto de sonolência e ânsia de vômito. A história por trás da história me fez desacreditar no poder transformador do ser humano. Foi como viver o Mito da Caverna; pele e osso. Não faço a mínima idéia de onde estou. Não sei se sou um dromedário, se sou um furão ou se sou um homem. Alguém assassinou o real e eu passo o dia perguntando “quem?”. Do momento anterior à minha entrada no cinema, guardo apenas a lembrança de alguns semblantes, de algumas vitrines e de algumas cores. Lembro muito bem de uma parede amarela. Como também lembro de uma bunda gostosa grudada em uma mulher sem gosto. Eu não matei a realidade e não quero sofrer por isso. Tenho seis livros publicados e dois no prelo. Jamais sofri os amargores da crítica. Eu sempre soube sobrepujar a virulência das críticas e dos críticos, nem por isso sofri afetação de me comer, canibal que era, dizendo sempre que era merda o que eu mesmo escrevia. Aprendi cátedra de criticidade pois viajei no Pequod. Aventura ultramarina, navio baleeiro, Leviatã do mar, féretro que bóia, vida à deriva. Meu obituário que escrevo assim que ponho os pés no chão quase sempre gelado dos lugares que visito. Sou sintaxe intrincada antes de querer ser ou parecer um bom samaritano. Minha beligerância está em me querer guerreiro. Você diz que passa a vida beijando a boca do que não serve, para eu aprender manha de eterna adolescência. Você que apenas foi e que já não é mais. Sou monomaníaco e não escondo. Mantenho relações homoeróticas comigo mesmo. Minha outra metade também é homem e meu egoísmo é aberto. Dizer amo você, minha outra metade, é quase suficiente. Sou labirinto sem centro, escrito de Borges, vindo dele, amando. Sou o tom azul do céu da cidade e eu sei que cidades foram feitas para matar os homens. Cidades são tudo o que não sonho. Um poeta muito triste, alemão, escreveu isso. Era maldito. Matou gentes. Ele, sim, matou a realidade. Mas eu não. Encontro-me embaixo duma árvore sem frutos e o regolito de meu corpo é seco e igual. Eu quase sempre não me acho em procuras que empenho. O outro de mim, apesar de estar e viver em mim, é sempre fuga. É seco, mas eu tenho um livro, e livros matam fomes. Ando com meu caderno, duas esferográficas pretas e um orgulho em meus dentes amarelecidos. Sempre ando com um papel no bolso, pois acredito que um dia eu irei precisar dele para conquistar uma garota. Garotas escrevem diários e gostam de papéis. Mas, ainda assim, preferem palavras. Quanto à cor das canetas, não sei explicar este meu gosto pelas de tintas enegrecidas. Gustibus non dispuntandem, diria meu professor de Latim, um grande homem. Ainda hoje lembro, e eu tenho memória!, não sou mais o rapaz tonto do fim do longa-metragem, das aulas nas noites sem estrelas e sem paixões. Suava feito a tampa de uma panela em dia de reunião familiar dominical. Usava lenços para secar o excedente, que brotava de sua tez morena e repleta de pêlos. Eu nunca usei lenços. Sempre gostei de babas. Talvez a medicina explique o fato ou, então, é tudo reflexo de uma profissão sacrificante: a de professor. Patologia a minha? O certo é que nunca suei daquele jeito tão, digamos, jorrante. Nem mesmo quando comi a boceta da garota do 802, no centro da capital do meu estado e no penúltimo andar do prédio. Confesso que suei, mas nada se compara ao meu professor de Latim. Na verdade mesmo, a cidade onde estou não é minha de origem. Minha e de origem? Estranha conversa. Nasci e fui criado num pequeno lugarejo com pouco mais de quinze mil habitantes. Por dentro, sei que nenhum homem possui a sua cidade. Cidades são mães, que nos parem e que são desgraçadamente abandonadas pelos seus filhos, até antes de se tornarem adultos. Eu já escrevi isso em algum lugar. Hoje, já com suíças negras na lateral de minha face, não posso mais esconder a saudade que tenho de minha infância distante. Aproveitei-a ao máximo, mesmo sendo excessivo ou, às vezes, tímido e recluso. Cada um tem uma maneira específica de aproveitar os seus momentos. Meu maior divertimento era ir à casa da Érica. Isso é apenas coisa que passou. Sou um ser nostálgico. Admiro velhices. Érica pode ser muito bem o nome que resume toda ou boa parte da minha infância. Era sagrada a tarde em sua companhia. Quando isso não acontecia, sentia que tinha envelhecido uma semana e que, com a coisa funcionando daquela maneira, acabaria não vivendo muito tempo. Havia fatores que ajudavam na efervescência de algum sentimento extra. Eu gostava dela, é óbvio. Já valia por tudo. Érica jamais desconfiou que eu amava aquelas pernas enormes que iniciavam nas curvas deliciosamente arredondadas de sua bunda gostosa. Tinha um corpo esguio, seios mínimos, mas com bicos proeminentes. Não sei as vezes em que fui recebido por ela e com ela vestindo uma camisolinha cor-de-rosa transparente, onde se via facilmente aqueles mamilos negros e rijos de menina adolescente. Eu ficava com vontade de chupá-los, de lambê-los, colocá-los inteiros na boca, sugá-los. Quando jogávamos videogame, ah... era um castigo! Aquelas duas laranjinhas saltitando, balançando no campo adversário, como se disputasse comigo uma partida sem tempo. Aquilo me desconcentrava e isso dispensa comentários sobre quem terminava vencendo as partidas. Eu adorava aquele jogo e, principalmente, perder para ela. Nunca disse a ela o quanto eu a queria. O amor, naqueles idos, não passava de uma esperança de retorno depois que a tarde caía e se ia quando Érica fechava o portão. O resto da noite passava sonhando no dia próximo que viria ainda mais enlouquecedor, ainda mais fantástico. Érica era fogo. Faz mais de nove anos que não a vejo. Últimas notícias me disseram que estaria pelas bandas do sudeste. Coisa de separação, pai e mãe. Adultério. Você sabe que tudo nesta vida se acaba, que tudo tem um limite. E o que acaba não era pra ter começado. Até o amor. O amor, como eu disse, não passa de uma esperança perdida nas mãos do que é apenas desventura. Como gostei. Talvez tivesse sido este meu medo absurdo a essência para estas minhas palavras partidas. “Queria tocar piano, acho lindo uma menina que sabe tocar piano”, dizia ela, apontando para uma fotografia que estava sobre a parte superior da estante e que revelava sua tia em um enlace quase carnal com um velho piano branco que, segundo ela, pertenceu ao avô. E todo dia eu ia e voltava e o céu sempre perdia um de seus azuis e eu sentia um amarelo-mostarda cobrir a minha já natural apatia. Era quando, na esquina que dava para a rua dos alfandegários, encontrava um velho de aspecto rústico, encostado num latão fedido. Estava sempre com muito frio e ele gemia como geme um animal em dor. Olhava o rosto coberto por uma fina camada de uma coisa verde, gosmenta e bastante pegajosa. Eu duvidava da realidade e o real me sufocava. Iniciava uma conversa rápida para saber o que ele estava sentindo e do que precisava, mas ele não dizia nada. Eu forçava. E nada. Mais uma vez. Nada. Tentei mais uma, mais uma e, depois de quase desistir, ele, com a face molhada por lágrimas cortantes e estranhas, dizia-me com a voz tropeçada em soluços: “é tudo culpa desse cão, que nos persegue quando ludibriados por faces angelicais”.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

O chão do amor


Por Germano Xavier

- Velha infame – disse a mulher.

O homem abaixou o portão da garagem, trancou com chaves as duas portinholas que funcionavam tal qual um olho-mágico, olhou a caixa de correspondências, viu que nada havia lá dentro, fechou. Percebeu que o gramado da área frontal estava precisando de mais adubo, pensou em amanhã e se queixou:

- Também não foi meu dia hoje.

O homem, garboso em seu terno xadrez, sapato bico fino, legítimo couro, chegou à porta que dava para o interior da sala de estar. A mulher o esperava com respiração arfante, só ele poderia abrir. Aparentando nervosismo, ela fazia um movimento de ir-e-vir com uma das pernas inclinando calcanhar e pé sobre os dedos, de modo que muito lembrava uma bailarina quando esta se eriça rodopiando na ponta dos artelhos dos membros inferiores. O homem era jovem, branco-aloirado, traços escandinavos. Um lenço de cor sóbria lhe adereçava a lapela, tinha o colete em perfeita combinação de tons com o restante da vestimenta, gravata cinza. Tudo muito bem ajustadinho, apertado, como se uma costureira tivesse tirado suas medidas e feito a amarradura das linhas no calor das próprias mãos.

A mulher foi à pequena mesa-bar e encheu um copo com conhaque, o homem observou sua face irritadiça, e do mesmo modo a mecha cacheada de cabelos negros que lhe encobriam o olho esquerdo como um tapete de plumas acariciando-lhe a pela macia. O homem falou algo sobre o seu colega de escritório e percebeu-se vencido pela tentação despertada pelo rastro de perfume deixado pela mulher na extensão do cômodo.

A esta altura, qualquer um que adentrasse no local teria percebido o cenho modificado do homem, a cor rosácea sanguínea preenchendo seus contornos, provavelmente liberada por estímulos ulteriores. Atingido de tal forma, pôs a aproximar-se da mulher que bebia, soluçando de raiva. Tocou o ombro, imprimindo-lhe uma pressão para que ela se voltasse à direção em que estava agora. O homem lhe sorriu com uma suavidade rigorosa.

Mais de um quarto de hora já se passava quando o homem, afrouxando os botões do terno, resolveu sentar, num momento de só pensamento, copo de conhaque seguro pelas duas mãos apoiadas no joelho. Chateado, desconfortavelmente perdido em suas idéias, fitou languidamente um fio de cabelo da mulher preso ao carpete, sob a mesinha de centro.

- Sente-se aqui – falou, fazendo sinal com a cabeça.

- Aquela velha desgraçada.

- Calma, você tá tão linda hoje.

A mulher encostou o rosto no ombro do homem, tinha tensão no canto dos olhos e no queixo, não podia disfarçar. Morena-clara, trejeitos indiáticos, corpulenta, propícia para os lampejos maternais. Ficou ali respirando um ar confuso, imaginando mil coisas, parada, dando pequenos goles no líquido alcoólico.

- Quase perdemos tudo - rompeu a voz da mulher o curto silêncio que ali se instalara.

- Não diga isso.

- É porque você não viu como a expressão do rosto daquela velha mudou hoje.

O homem a abraçou, mesmo estando meio torto no sofá.

- Nem olhou na minha cara.

- Tem gente que é mesmo muito desconfiado.

- Não consigo tirar isso da cabeça. Amanhã ela vai ter comigo quando aparecer no escritório. Não vou deixar isso barato – disse, engolindo de uma só vez o conteúdo do copo.

O homem pensou no dia atribulado, mas não deferiu nenhuma palavra. Antes que a mulher lhe dirigisse mais descontentamentos, o homem aplicou um beijo longo na boca carnuda da mulher.

- Mas ela não perde por esperar – disse ela, no justo instante em que descolaram os lábios -, jogo até praga se preciso for. Aí ela nunca mais inventa de vender um terreno assim, tão sem querer, tão sem vontade.

A mulher olhou em torno, novamente pousou as vistas na mesa-bar. Foi buscar mais conhaque. Já estava amolecida com o efeito provocado pelo primeiro copo. Copo cheio dessa vez, transbordando.

- O estagiário errou um cálculo de área e por pouco não perco o emprego.

- Me dá um beijo – sussurrou a mulher, malemolente -, me faça esquecer aquela velha louca.

- Dou sim.

- Me ame.

- Vem, meu bem...

O homem pôs o copo sobre a mesinha de centro e abraçou a mulher antes mesmo de ela chegar ao sofá.

- Ponha o copo junto ao meu.

- Desgraçada! Bandida! – exclamou a mulher, enlaçando-se nos braços do homem.

Estavam embebidos num ar confortável de delírio e ira, ambos compenetrados nos acontecimentos do dia, nos desenredos do trabalho, nos descompassos dos trâmites morais e de negócios. Não conseguiam amenizar a cólera, tampouco desfazê-la totalmente. O homem a olhou nos olhos, puxou-a pelas mãos e foram em direção ao quarto.

- Eu te amo.

- Por que não tira a minha roupa? – bramiu a mulher, jogando-se de bruços no colchão.

- Confessa que estamos bem, amor, me sinto tão bem com você.

- Estamos.

- Se não fosse as desavenças lá na empresa, eu diria sem medo que hoje foi um dia perfeito. Teu cheiro...

- Alguém deve ter enchido a cabeça dela de caraminholas pra ter pensado em desistir da venda – disse a mulher, passando a mão libidinosamente sobre a calça do homem, na altura do pênis.

- Tenho quase certeza disso. Deu conta de que pediu muito pouco por terreno tão bom. É uma espécie de arrependimento sufocante, que fere ambas as consciências, tanto a de quem compra quanto a de quem comercializa. Lembro de muitos casos assim. Não seremos os últimos.

A mulher descerrou o zíper da calça do homem, tirou da casa o botão e arriou-a. Passeou a face por toda a coxa direita dele, com a bochecha roçando os pêlos macios próximos à virilha. Sentiu o membro ganhar forma e atacar a barreira da cueca. Naufragava em calores úmidos, descidos desde o couro cabeludo até sua panturrilha. Silenciosa, ébria, apalpou o membro do homem com uma das mãos, quase deitada sobre a cama, num esforço tripudiado pelas lembranças castrantes do afetado dia.

- Porra de mulher!

- Amanhã você vai ao fórum e pega a assinatura com o velho Gomes. Aí tudo se resolve. E vê se não olha pra cara deslavada dela novamente – vociferou o homem, já tomado pelas pulsões do sexo febril.

- Hoje fiquei sabendo que ele está caduco, não sei se vai conseguir assinar o documento.

- Ele está vivo, é o que importa. Não aceite nem as digitais. Faça com que ele assine nem que for com a ajuda de alguém. A letra é a melhor prova. Dispensa até as testemunhas – completou, olhando para baixo e vendo a mulher lamber seu pênis, colocando-o inteiro na boca, enquanto atravessava seu corpo grande por cima do seu.

- Parecia até que estava com raiva de mim, como se fosse eu que tivesse feito a besteira de vender o terreno a preço de banana.

- Penso que ela não fez nenhuma consulta antes.

- Ah, Ah... – gemeu a mulher.

Estavam os dois deitados. Tórax sobre tórax. A mulher em cima, fazendo movimentos lentos. Começavam a suar. O ar no quarto tornara-se abafado, um pequeno espelho na cabeceira da cama iniciou uma espécie de embaçamento. Amavam-se, indubitavelmente. Loucamente, desmedidamente, ferozmente. Mas os olhos abertos dos dois provocavam um ruído na engrenagem natural das horas. Era como se não suspeitassem de que estavam ali, um dentro do outro, em escavações corpóreas e fabricando rituais de dança. Os olhos, vivos como nunca, emprestavam àquela transa um sentimento de completa estranheza. Estariam cegos? Presos às amarras do cotidiano? Encaçapados no duro jogo da vida?

- Vou preparada amanhã – disse a mulher, saltando ininterruptamente sobre o homem, devidamente atenta para que o pênis dele não tomasse outro caminho senão o do interior de sua vagina.

- A melhor defesa é o ataque, já diz o ditado.

- Humm, humm... – gemia a mulher, baixinho, agora recostada no abdômen do homem -, a gente bem que poderia ter um filho. Mas sem aquele terreno, sem a nossa própria casa, fica inviável.

O homem explodiu em gozo, regou com o branco leite seminal todo o órgão feminino. A mulher tombou para o lado, ainda nele enroscada. Inspiravam e expiravam sofregamente. Tinham os aspectos faciais bons, aparentavam felicidade. Há muito tempo não sentiam tanto desejo como naquele momento. O casamento partia para o sétimo ano e parecia que a casa em que viviam de aluguel estava impregnada de uma monotonia aterradora. O amor começava a ser tratado como um fator opcional, coisa de domingo, quando não se tem nada por fazer e o tédio massacra. Um edredom aveludado fazia-se de roupa de cama. A cor creme das paredes trazia um pouco de paz aos olhos dos dois, esgotados pelo dia estafante.

- Te amo.

O homem voltou-se.

- Nos amamos muito, não?

A mulher meteu-se a levantar, indo de pronto à sala. Encheu mais um copo com bebida, agora vodka, e consigo mesma disse:

- Nem que eu mate a sua mãe, amor, mas aquela terra amanhã será nossa.

domingo, 6 de janeiro de 2013

Cangaceiro


Por Germano Xavier

aperta o gatilho!
olha o tiro!
a malvadeza no peito!
olha que sujeito
sem respeito!
mata até no leito
o sertanejo suspeito!
que sujeito
sem respeito!
não sofre do coração?

sábado, 5 de janeiro de 2013

Degraus de escola



Por Germano Xavier

Tomando como pressupostos as indicações legais oriundas tanto de textos presentes na Constituição Federal de 1988 quanto na Lei de Diretrizes e Bases de 1996, os autores fazem uma espécie de delimitação dos perfis dos diferentes territórios abarcados pela educação escolar brasileira, que, em primeira instância, divide-se em dois níveis: educação básica e superior. A primeira, que tem seu ciclo completo no percurso que vai da educação infantil até o ensino médio, é constituída de três fases e objetiva a formação geral do indivíduo, apresentando ferramentas indispensáveis para sua inserção do mesmo nos mais diversos segmentos da sociedade. Durante a fase da educação infantil (primeira etapa da educação básica), a instituição educacional funciona de modo a complementar as ações da família e da comunidade a qual o educando pertence. A educação infantil é dever do Estado, mas sua manutenção por parte dos municípios arca nos dias atuais com uma série de entraves de ordem financeira, o que impossibilita seu bom funcionamento. A educação infantil é um nível educacional menos entronizado no quesito dos resultados, sendo de caráter apenas observador-formador da criança até a idade de seis anos. E para sua melhor gestão, conta ainda com o norteamento das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs). Já na segunda fase da educação básica, ou seja, no ensino fundamental, o ensino pretende atender a todos, sem exceção, que não foram atendidos devidamente nos anos anteriores. São visíveis as irregularidade na oferta de vagas ou em seu funcionamento propriamente dito quando analisada na esfera educativa nacional. Configura-se como parcela essencial no desenvolvimento intelectual do indivíduo, pois é aqui onde se dá a apreciação mais aprofundada da leitura, escrita e, por conseguinte, a iniciação da consciência crítica. Para melhor organizar este período, legou-se dividi-lo em ciclos, o que também oportunizou maior e melhor distribuição dos recursos por parte dos municípios. É obrigatório e sua jornada tem por característica ser variável, podendo suceder durante o tempo mínimo de quatro horas ou ir em extensão até tempo integral, o que demanda maiores recursos para a sua manutenção. Segundo dados oficiais, cerca de 36 milhões de alunos matricularam-se no ensino fundamental no ano de 1998 na tentativa de efetuar a melhoria e construção de princípios requeridos para uma cidadania plena, enveredando-se por um currículo amplo e diversificado. A terceira fase da educação básica é a que denominamos de ensino médio. Apresenta-se ainda muito deficitária no atendimento aos indivíduos que estão na faixa etária apta, porém vem revelando nos últimos anos índices mais animadores. O ensino médio não tem caráter obrigatório e tem duração de, no mínimo, três anos. Segundo a nova LDB, é o momento de consolidação dos conhecimentos, preparação para o trabalho, autonomia intelectual e maior correlação entre a teoria e a prática. Colocado sob prismas diferentes, o ensino médio tanto pode funcionar como uma porta de passagem para o ensino superior, como também levar o aluno diretamente para o campo de trabalho ou, numa última e mais complexa acepção, levá-lo a combinar os dois aspectos – propedêutico e técnico ao mesmo tempo. Os pilares norteadores do currículo do ensino médio vão desde a identidade, passando por diversidade e autonomia, e indo até os quesitos ligados aos termos interdisciplinaridade e contextualização, cada um deles interferindo de forma positiva na produção do pensamento e na prática social. O segundo nível da educação escolar brasileira atende pela denominação de educação superior. É justamente aqui onde se dá a formação profissional em variados setores do saber, assim como a maior parte da produção de cunho científico-cultural e tecnológico de nosso país. Cursos seqüenciais, de graduação, de pós-graduação e de extensão formam o aparato de ferramentas educacionais constituintes do ensino superior, sendo que cada um dos instrumentos visam a atender parcelas com necessidades intrínsecas e múltiplas. A LDB regulamenta a operacionalização destes recursos em universidades, centros universitários, faculdades integradas, faculdades e escolas superiores. O acesso ao ensino superior ocorre através de inúmeros tipos de processos seletivos, não só acontecendo por meio do vestibular, modelo de seleção de candidatos mais tradicional no Brasil. Partindo para as modalidades de educação, pode-se fazer a devida separação: educação de jovens e adultos, educação profissional e educação especial. O EJA é uma modalidade que pretende suprir as pendências de quem não pôde ter acesso ou não concluiu o ensino fundamental e médio na idade correta. Tem caráter obrigatório diante do texto constitucional e apresenta-se como um direito público subjetivo, de aplicabilidade imediata. A educação profissional dialoga com segmentos vários, mas tem como base proporcionar capacitação para a produção. Envereda-se pelo ensino dito regular e atende quase a totalidade de tipos de alunado, esteja em que nível de ensino estiver. Subdivide-se em três níveis: básico, técnico e tecnológico. A educação especial também é dever do Estado e vem, através dos anos, sofrendo significativas melhorias. É entendida no âmbito do ensino regular, num processo conhecido por inclusão. É obrigação de toda e qualquer escola acolher o portador de necessidades especiais, alicerçando assim o conceito de integração, tão caro à história da educação. É um processo que demanda adaptação por parte do professorado e das instituições, para que as aptidões sejam trabalhadas de forma a tornar mais opacas as incapacidades do deficiente. O texto cita a Declaração de Salamanca, que expõe a precariedade com que este setor do ensino é encarado em diversas nações, incluindo o Brasil. Por fim, tem-se a educação a distância (EAD) que, mesmo reconhecendo o papel fundante da escola, objetiva ser mais uma extensão para a educação, o que faz com que possamos desmistificar a noção arcaica de que é a instituição escolar a única fonte para o saber e desenvolvimento do homem enquanto ser construtor de saberes.


LIBÂNEO, José Carlos; OLIVEIRA, João Ferreira de; TOSCHI, Mirza Seabra. Educação Escolar: políticas, estrutura e organização. 5.ed. São Paulo: Cortez, 2007.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

É o fim da filosofia?


Por Germano Xavier

Para aqueles que adoram “assassinar” ciências, correntes de pensamento, idiomas, idéias, e tantas outras coisas, eu tenho uma má notícia. E olha que não sou do tipo que gosta de sair por aí feito um daqueles arautos medievalescos, distribuindo alvíssaras ou lamúrias pelos quatro cantos. É que esse modelo de informação eu tenho prazer em divulgar, transmitir, pois me causa um embaraço dos bons.

Ei-la: A Filosofia, assim como a Poesia e o Latim, não morreu. Pelo contrário, a ciência da reflexão está vivíssima e demasiado atualizada. Eu já suspeitava disso e, confesso, nunca dei ouvidos às vozes daqueles que preconizavam e preconizam o fim dessas “entidades”. Acredito que são maiores que nossas imaginações ou construções interpretativas. Calma, não estou me referindo ao boom mercadológico de obras como “Quando Nietzsche Chorou” ou “A cura de Schopenhauer”, do escritor e psiquiatra norte-americano Irvin D. Yalom, só para tomar como exemplos. É com base nas palavras do professor de Filosofia da Unicamp, Osvaldo Giacoia Junior, em especial, que pronuncio essa afirmação.

Em entrevista à revista “Filosofia – Ciência & Vida”, o professor enfatiza o vigente uso e a atual interferência do pensamento filosófico nas diversas áreas da sociedade mundial. Além de afirmar a vivacidade da ciência do saber, corrobora que o retorno à filosofia é extremamente positivo. Para o acadêmico, “a matéria nunca deixou de lado a problemática humana; pelo contrário, nasceu dela.” Talvez seja por esse motivo que a ciência de Sócrates e companhia jamais perderá seu valor, por simplesmente tratar-se da humanidade ou daquilo que nos remete a ela.

Giacoia diz que as aparições da filosofia em debates nos variados meios de comunicação ajudaram no retorno triunfante da disciplina, porém defende que a filosofia não pode se tornar mercadoria, não pode ser vulgarizada.

Giacoia cita, como exemplo da atualidade da matéria, as recentes discussões sobre as crises ética e moral da política brasileira, o caos da racionalidade científica e a problemática da significação do termo “sujeito”, colocando a teoria nietzscheana e o Idealismo Kantiano como os alicerces fundamentais para as possíveis sugestões e explicações acerca dessas questões.

Eu diria que a Filosofia despertou, pois esteve num estágio de sono, digamos, preocupante. Feliz do homem, que ganha em conhecimento, que se encontra diante de mais uma porta em direção ao saber, que tem na atuação filosófica o perfeito distanciamento do que é realmente importante e do que é apenas superficialidade.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Fone e a Copa do Mundo


Por Germano Xavier

“Fone” não era nada, mas “Fone” também era tudo. O "nada" a que me refiro está ligado a laços sanguíneos, parentesco ou qualquer coisa que dialogue com árvores genealógicas. Já o "tudo", por ora eu explico.

Foi num dia muito chuvoso que o conheci. Resolvi jantar em um restaurante que ficava a quatro quarteirões da minha casa, quando fui surpreendido, na volta, por um pé-d'água daqueles nada econômicos. Estávamos completamente encharcados de cabo a rabo, sob o toldo de uma loja, na principal rua do centro de Iraquara. Ele, com os cabelos já grisalhos escorridos pelo rosto moreno e com sua inseparável bicicleta super-hiper-mega-enfeitada, trazia consigo, embrulhado cuidadosamente em uma sacola plástica, o que me pareceu ser uma pequena agenda na cor preta.

Confesso que fiquei muito curioso em saber o que guardavam aquelas páginas, tão salvaguardadas por aquele senhor que devia contar os seus 60 anos de idade. Ficamos ali por longos minutos, entre receios e ansiedades. Creio que foram quase duas horas e, não obstante termos iniciado um diálogo, nossa conversa não apontou nenhuma pista para as tais anotações.

Finalmente, o temporal havia cessado. Resolvemos partir para os nossos destinos. Durante todo o percurso, feito a passadas largas e velozes, pois um chuvisco ameaçava se transformar num temporal, repletos de trovões e relâmpagos, percebi inúmeros barbantes preenchidos por bandeirolas nas cores verde e amarelo esticados pelo chão ou, ainda, enrolados em árvores e nos fios da rede de energia elétrica.

Era tempo de Copa do Mundo de futebol e, a esta altura do campeonato, todos os logradouros, becos e vielas da cidade encontravam-se enfeitadas e coloridas com os tons do uniforme da seleção canarinho. Como era bom se sentir vivo e fazer parte de toda aquela corrente positiva, de todo aquele espetáculo de grandiosidade e beleza. Apesar do visível estrago causado pela chuva, nada faria com que aquele sentimento de alegria e felicidade perdesse um pouco do seu brilho. Certamente, no outro dia um mutirão seria formado no intuito de reerguer as bandeirinhas e repintar, agora com demãos ainda mais encorpadas, os muros e os pisos que ficaram descaracterizados devido à ação da água que batia contra as paredes.

O torneio mexia com toda a nação, ou melhor, com todas as nações do mundo. E mexia com Iraquara, e muito. Trinta e duas seleções disputando o mais importante evento esportivo do planeta. Trinta e dois países lutando uma guerra pacífica, onde o vitorioso não é aquele que devasta um povo, extermina centenas de famílias ou arrasa os sonhos de milhares de crianças, mas sim o que mais balança a rede do adversário, fazendo nascer milhões de sorrisos orgulhosos por terem nascido justamente naquele país brioso e triunfante.

Encontrar o sono, naquele dia, tornou-se uma tarefa quase impossível. Fiquei em meu quarto, com a lâmpada desligada, matutando sobre o teor dos registros que preenchiam os brancos daquele ementário misterioso. A imaginação correu solta. Não havia limitações ou fronteiras para qualquer pensamento hipotético.

Após várias cogitações, decidi acreditar que “Fone” era um cientista social, um antropólogo ou qualquer pesquisador ligado a esses segmentos. Sim, esta era a melhor forma de eliminar todas as minhas titubeações concernentes ao homem e sua enigmática caderneta. Deveras, seria uma atitude demasiado inteligente da minha parte pensar assim.

Então, só me restava elaborar as devidas conclusões. Talvez aquele homem estivesse concatenando sobre como a rotina da vida de todos os iraquarenses muda drasticamente durante este ciclo de jogos. Seria ele integrante de um destes órgãos internacionais que a cada ano injetam novos dados sobre o andar das civilizações?, como, por exemplo, mortalidade infantil, expectativa de vida, explosão demográfica, analfabetismo, índices de pessoas infectadas pelo vírus HIV e demais moléstias que, infelizmente, ainda assolam várias regiões...

Talvez fosse esse o meu desejo mais profundo e sincero. É que tudo fica ofuscado quando chega esta época, até mesmo quando olhamos por detrás dos muros iraquarenses. As mazelas e os fantasmas que rondam a nossa realidade custam a aparecer. Parece que tudo vai de vento em popa, quando na verdade outros milhares choram as suas misérias e fomes.

Minha vontade era a de que existissem milhares de pessoas como “Fone”, trabalhando arduamente em prol de um mundo melhor, mais humanizado, menos desigual, enquanto multidões se divertem e se lambuzam em esplendores artificiais e quase sempre mecânicos. Apesar de, por inúmeras vezes, ter ouvido falar que ele, o “Fone”, havia se estirado na pista com sua inseparável bicicleta a fim de apressar as horas de sua vida. Que seja força da imaginação, não importa. O que interessa é a certeza de que já havia sido dado o primeiro passo, já que toda atitude humana tem de, antes de qualquer coisa, passar pelas aléias mais arborizadas de nosso universo ficcional.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Casa retomada




Por Germano Xavier


os pirilampos adormecidos
acendem suas luas,
insetinhos cochicham entre si
- o que dizem as Esperanças, tão verdes,
pousadas no armário da cozinha?

os talheres se orquestram, prontificados.
grilos na moita serram os punhos,
a água se cristalina, cristaliza-se, água fina,
puramente diamantina.
- por que é que eu, semitonto,
ainda bebo deste ar?

lar, doce lar, prado e campo,
onde dormem todos? eu cheguei,
eu cheguei, avisem a todos!

e que me zombem os fantasmas
nas horas insones,
que me abracem as sombras
quando eu atravessar o corredor,
que me venham todos, seres e não-seres
da minha eterna casa,
e que me recebam com a tradicional festa
dos reconquistadores imperiais.

terça-feira, 1 de janeiro de 2013

Anjo e demônio (ou um surto na noite)



Por Germano Xavier

Eu tinha que falar sobre o tempo. Muito difícil. Muito difícil. Terminei e não disse nada. Um sermão. Um sermão que veio do pai. O pai sempre agonizava. Não sei fazer. O livro não entendo. Há uma mala na história. Na porta, uma carta. Um ator que deixou. Fiz um ensaio. Eu não era o personagem. Duplo, que vive aquilo da interpretação. Há um resultado na interpretação. Vivi aquilo. Viver. Viver é um verbo que eu acho bonito. Vivência. O poeta é elucidação. Digo a poesia é. Explicação é ser as coisas. Retiro em meu retiro. Não precisa entender. A teoria não existe. A prática não existe. O que existe é a experiência. Inusitada. Sou eu. Recebi convites. Nunca recusei nada. Sou assim. Não admito recusas. Foi quando voltei a atirar o meu filho ao vento e seguir a lida da minha vida. Não quero ser tratado como pai. Os atores sempre fazem transferências. O nível de respeito não é o mesmo dos atritos. Afinidades são respeitadas. Camponeses são importantes num filme de época. Eu não devo ser. O personagem aqui é masculino. Cada vez que lemos inteiro e forte no corpo os personagens entram na gente e aí viramos bichos. Que castigo a caminhada que damos. Que castigo a mocinha morrer no fim. A fotografia é um farto furto. Tanto forte é a presença de uma árvore no pousar de um pássaro. Passarinhos são humanos, como os seus cantos. A circunstância emocional é a própria emoção, uma coisa esquizofrênica é a verdade. A fala nem sempre diz. Pra falar, a gente precisa compreender. O personagem fala com a personagem que há. O trabalho da gente é botar a alma pra fora. E tudo é necessário. Igualamos a sensibilidade de cada um e oferecemos a troca possível e não tivemos defesas nem medos. O uivo é triste e macabro. A mãe está feliz porque vive intensamente a dor e o trabalho e o quarto é a vaca que dá o leite e o leito e o peito mudo infante cotidiana morte da personagem. Camponeses não viajam porque não sabem onde vão. A lua cai e a impressão é o melhor que existe. A existência e o despojamento, um estado de graça. Passamos a não nos achar fáceis. E o menino que existe sempre corre porque o canavial existe e as folhas existem e ele sabe os braços querendo ser anjo e ser o dono dos teus pés dono dos teus pés dono de teus pés de tuas pás e ele agora vai e ele agora vai porque precisa e deixará a família e deixará o irmão e a fotografia esquecida ficará na nuvem da família negra e o som do fim é o som da vida que vai começar porque ele não é igual ao tempo que amanhece na madrugada... porque ele não é.