Por Germano Xavier
Para Alessandra Pires,
que vez ou outra me recorda este texto.
Para Alessandra Pires,
que vez ou outra me recorda este texto.
São dez e quarenta da manhã, um sol lá fora que já está de rachar pele. Ela se sentou ao meu lado. Ao meu lado não havia presença humana, só mesas brancas, coisas imótuas, coisas inermes, coisas mortas. De chofre, percebi a tatuagem na altura do umbigo. Era um umbigo bem feito, uma cavidadezinha harmônica e até, diria, sensual. Continuei a leitura do meu livro. "A descoberta do mundo" era o título impresso na capa. Era um livro de uns 14 centímetros de altura, pequeno até. Se comparado ao tamanho da tatuagem que a moça estampava em sua barriga, ele se tornaria maior. Três ou quatro vezes maior. Peguei-o emprestado na biblioteca pública da cidade onde moro atualmente. Tantos livros espalhados pelas estantes e eu não sei o motivo que me fez escolher este. Talvez a quantidade de páginas, pois é bem verdade que alguém já teria dito que bons livros são aqueles que conseguem ficar de pé. Algum russo barbudo, imagino. Eram quase 500 páginas.
Cabeça baixa. O ar é cada vez mais denso e pesado. Sinto que os outros olham para ela. Roupa de academia, colada ao corpo. Está um pouco ofegante. Deve ter acabado de realizar sua sequência de exercícios. Agora ela se levanta, eu não quero olhar.
Tudo o que mais quero é não olhar, mas eu olho.
Aparentava seus trinta e poucos anos. Devia ser solteira, morar num apartamento sozinha e trabalhar numa dessas grandes redes de lojas onde se vende um pouco de tudo, desde roupas a calçados, mochilas, bicicletas, equipamentos esportivos, et caetera.
Mulheres de trinta anos, balzacas, eu conheço de longe. Sou bom nisso. Aquele ar de cobra criada, experiente. Aquela bundinha dura e empinada, aquele sorriso de quem já deu para todos os chefes de sua vida, em troca de alguma promoção.
Eu olhava para as letrinhas impressas na folha amarelada do livro. Não conseguia ler. Queria ler aquela mulher, misteriosa criatura.
Tenho vinte e dois e acho que ela não se interessaria por um rapaz da minha idade. Devia me achar uma criança. Apenas vinte e dois, motivo para gargalhadas? Mas eu, certamente, já tinha lido mais livros que ela. Livros difíceis, aqueles russos barbudos. Ela não devia ter tempo para ler livros, trabalhava demais. Devia sair de casa o sol ainda nem havia apontado no horizonte. Morava distante e, apesar de seu extrato bancário viver no positivo, ela não possuía automóvel, imagino.
Eram dois coletivos até ela chegar à loja. Uma hora e vinte de trajeto, quando não pegava um congestionamento que a fazia chegar atrasada e receber uma bronca do patrão. Para não ser despedida, usava a boa e velha tática. Muito fácil, era hora de dar para ele.
Talvez fosse feliz com a vidinha que levava. Não aparentava precisar de nada. Só os olhos eram um pouco caídos e soturnos, mas não eram enfadonhos em demasia. Uma tristeza sutil, apenas.
Resolvi falar com ela, depois de relutar muito:
"Bom dia, moça. É Netuno?"
"Não converso com estranhos."
"Mas eu só estou querendo saber se é Netuno. E eu também não sou um estranho. Moro na mesma rua em que você mora. Rua das Castanheiras, no Alto do Lapão, próximo à travessa Rodeadouro..."
"Está bem, já entendi. Não preciso mais de coordenadas. Eu sei onde moro."
"E então, é Netuno aí, perto do seu umbigo?"
"Por que eu deveria responder? Não sei nem o seu nome..."
"Perdão, pode me chamar de Silva."
"Meu nome é Fernanda."
"E..."
"É. É Netuno. Gostei desse desenho. Acho ele forte. Sou uma mulher forte, combinamos. Netuno e Nanda, um só espírito, um só corpo."
"Bonita e ampla!"
"Olha aqui , seu..."
"Calma, Fernanda! Estou falando da sua tatuagem. É bonita e ampla. Li isso num livro."
"É de algum russo barbudo?"
"Não sei, não lembro."
"Costumo lê-los. Gosto mais dos literatos elisabetanos."
"É uma boa preferência."
"Aceita? Refrigerante..."
"Não, estou de dieta."
"Não está gordo!"
"Tenho de ir. Tchau!"
"É cedo!"
"É sempre tarde para mim. Tchau!"
"..."
Eu devia ter medo dela. Não foi assim tão natural o nosso diálogo. Ela continuava achando que era muito, mas muito cedo para eu ir embora. Mas eu tinha lá minhas razões. Primeiro que não gosto de refrigerantes. Me dão azia. Segundo, é que nunca imaginei encontrar uma alma feminil que curtisse a literatura dos "barbados". Ou seriam "bárbaros"? Confesso que senti um medo, repentino. Não sei o porquê, mas um medo me ocorreu. E foi justamente ele que me fez ir embora naquele momento, de súbito, assim.
Mulheres não foram feitas para lerem grandes autores, do passado nem do presente, tampouco aqueles russos barbudos. No máximo esses livrinhos de auto-ajuda, revistas de fofocas, zodiacais... Grandes autores escrevem para homens, exclusivamente para eles, homens como eu. Mas toda regra deve mesmo ter sua exceção, e ela era diferente. Ela era forte, tinha Netuno tatuado na altura do seu umbigo. Ela e Netuno, sabem como é... um só corpo, um só espírito.
Um comentário:
Crédito da imagem:
"Barbudo by ~Asarrab"
Deviantart
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