quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Quando a morte passa e balança os roseirais coloridos



Por Germano Xavier

Não consigo chorar. Mas eu devia. Hoje, sob o sol pernambucano, fez-se surgir a Morte, sempre apressada para os de bom coração, e para a dona de uma das mais belas histórias de vida que já conheci em toda a minha vida. Estelita vai continuar sendo o nome de uma mulher de grande bravura. Os são-bentenses de todas as gerações, mesmo essa juventude sem senso de irmandade, sem sentimentos e artificial, deveriam render a ela suas merecidas homenagens. Talvez o meu choro não significasse nada diante das inesquecíveis lembranças que trago ao lado dela. Quando penso em minha infância, uma das primeiras imagens que me vêm à cabeça é a da minha tia preparando bolos à mão. Era um ritual bonito de se ver. Ela encostava uma pequena bacia plástica ao corpo, na altura do umbigo, e ficava horas misturando a massa com uma colher de madeira. Eram bolos irresistíveis. Ainda mais quando vinham acompanhados de um bom naco de "raspa", um tipo de queijo tradicional naquelas bandas nordestinas. Não deixou filhos, só a certeza de que a Vida é uma criança ou um animalzinho de estimação, que por isso deve ser muito bem criada ou domesticada, para não dizer vivida. Não deixou filhos, mas deixou saudades. Uma coleção completa delas, passando pelas saudades eternas (que nem os ácidos da vida corroerão) até as saudades dos gestos e fatos mais triviais (nem por isso menos inolvidáveis). Estelita, que era e continuará sendo irmã do meu pai, trazia em sua totalidade humana uma bondade demasiado farta. Minha tia sabia viver! Mesmo moribunda, consequência de um diabetes que lhe tirou boa parte da visão, Estelita regava todos os dias as roseiras do seu mundo. Sabia das fontes mais próximas e das águas mais cristalinas e puras, mesmo em terras onde a liquidez das coisas é deveras escassa. Saía de casa quando o sol ainda estava se mostrando infante, numa disciplina e pontualidade suíça, e caminhava a alma do rio Una como se preparasse para uma batalha que sempre estava próxima a acontecer: a batalha por uma vida doada à felicidade dos outros. Certamente o mundo perde uma de suas mais belas atrizes principais, pois ela não se aceitaria no rol das figurantes. Estelita era muito mais que uma personagem, era o próprio elenco, um coletivo de gestos de solidariedade e de amor que faziam-na dona de um grande exército de admiradores de sua índole, de seu caráter e de toda a sua dedicação. Quando a morte passa e balança os roseirais coloridos, só haveremos de perceber a presença do vento, que se esconde por trás do farfalhar das folhas verdes. Mas a Morte se viu retraída diante da fortaleza de espírito que Estelita possuía. A Morte passou e só conseguiu levar a matéria, a carne, a parte que apodrece com a ação do tempo. A verdade de suas palavras, o afeto de seus carinhos, o abraço quente e acolhedor de seus braços, os registros de luta de seus olhos, a transparência de seu gestual sensível e piedoso, assim como a garra fibrosa de sua sertanidade permanece, tudo isto permanecerá vivo e atuante como um exemplo para os que a rodearam... Segue tua viagem, assinalando com suas mãos firmes as rotas mais dignas de serem atravessadas. Com sua missão cumprida, tia Estelita partiu para as nuvens mais alvas do céu, onde somente as almas imortais conseguem chegar.

Este texto foi escrito (In memoriam) em 15 de dezembro de 2005, como preito à morte de Tia Estelita. Porém, boa parte das palavras nele contidas servem também como uma homenagem póstuma à Tia Preta, falecida no dia de ontem (13 de fevereiro de 2008), na cidade do Recife. Que descansem em paz...

5 comentários:

Germano Viana Xavier disse...

Crédito da imagem:

"Rosa Canina at break down
by ~ziddarri"
Deviantart

Anônimo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Janaina Cruz disse...

Morte e vida balançam os roseirais, acompanhados pelos teus olhos de saudades de admiração... Tive tias tão bravas para a vida como a tua tia Estelita, elas não perderam para a morte, elas escolheram no tempo adormecer de tristezas e afazeres, mas nunca nos abandonam estão nas coisas que nos ensinaram, e no gosto de vida que nos deixou...
Sigo com prazer o teu blog, que o próximo ano te traga infinitas felicidades.

Gabriela Guimarães Cavalcanti disse...

Linda homenagem. Diria Caio: "Só quero ir indo junto com as coisas, ir sendo junto com elas, ao mesmo tempo, até um lugar que não sei onde fica, e que você até pode chamar de morte, mas eu chamo apenas de porto."
Que a morte nos separe e nos iguale. E para os que acreditam no Juizo final dos espíritos humanos numa releitura transcendental de todas as vidas, que ela nos aproxime para o sem fim do trampolim do tempo.

Grazy disse...

lendo este texto, me lembrei inteiramente do meu pai, que como sua tia Estelita não aceitava fazer parte da figuração da ação, mas se fazia atuante em tudo, por isso, como dito, a morte só conseguiu levar a matéria e se viu retraída diante da fortaleza do meu pai. Obrigada Germano por este texto.
abraços
Grazy