Por Germano Xavier
Para Caio Fernando Abreu,
porque “quem tem um sonho não dança, amor”
(Cazuza)
Para Caio Fernando Abreu,
porque “quem tem um sonho não dança, amor”
(Cazuza)
Numa velha garagem perdida no tempo parece se esconder a letal arma do mal. Uma peça mitológica de aço e ferro fundido, cujo sangue negro percorre as grossas artérias do órgão maior desumano, e cujas veias carregam o sal poluído na direção do tubo de escape, o cano que desfaz a matéria. Estamos num imenso galpão arqueado num V invertido, produtor de uma sombra estranha que mata o alimento do sol. Estamos pisando em parafusos retorcidos plantados no chão como sementes enferrujadas, adquirindo o tétano dos despojos maquínicos inúteis que adornam toda a paisagem metálica, arriscando-nos com ferramentas que não mais consertam, agora instrumentos de somente aperto e dor. Um virabrequim encravado na terra refaz o instinto do descanso assassino. Bielas serradas, pistões carbonizados, bronzinas tortas, cabeçotes empenados e pesos afundam o piso que abre a relva do caminho. Nada interrompe a potencial vitalidade da besta, mesmo parada há tanto tempo, adormecida dentro do casco.
Fora da penumbra artificial habita um verde bonito, sem artificialidades. Este verde tão intenso e tão capaz de iluminar o breu dentro e fora da noite ainda não caída. É realmente a presença e a certeza do verde mais perfeito. Um campo inteiro de grama como num tapete floral de algum império passado. O verde gerando todo o colorido possível, louca cor introduzida sem licença no tempo cinza, matando-o, pintando os imaginários enegrecidos com a claridade dos brilhos ígneos, mais adentrosos. Árvores silvestres passeiam sobre as costas das aves, que vão a vôo sedento. Um homem ali andando sentiria a fortaleza de um teatro feito de bem e mal, uma recôndita grandiosidade da história universal de duas almas controvertidas, contraditórias. O verde que é a vida, a cor da sombra que é o escuro.
Você está vendo uma garagem manchando um campo de flores, com uma besta adormecida dentro dela, velha, imótua, porém fatal. Patas enormes tem o animal, seus aros oxidados. Vinte e seis porcas lhe prendem os pés, seus sapatos de borracha, pneumáticos. A cor gerada na parca carenagem é um vermelho vivo, voraz, algoz. Vermelho sangre. Fios vários lhe atravessam o corpo modelo naked, expondo as ranhuras cerzidas pela mortal brevidade de sua existência. Adamastor da terra, que pode arar e tornar frígida a vau mais fértil, o grão melhor, lestrigão do mar quadrado. Vê-se um chassi corpulento e preto, manchado e intumescido de óleo, aparentando queimaduras e vazamentos. São sinais de assassínio. Os faróis amarelados abrigam insetos sem asa, insetos tristes. Toda uma selva arrependida tende de algum modo a se vingar. Mas ainda tudo é suspeito.
Há de denunciar o bloco negro gerador da força, da brutal alavanca. Onde todos os ruídos vigoram, todos os soluços, todas as mazelas, todas as pestes, todas os sarcomas, cânceres de nós que somos vítimas e alvos. Um rumor pondera dentro do esqueleto graúdo, rubor e vinda inquista. Se existisse um ali naquele instante, poder-se-ia fantasiar a ópera do barulho que ensurdece, que toma de nós o nosso aprendizado de dúvida. Mas isso é apenas uma possibilidade, quiçá uma fuga do pensamento. Não há homens, não há viventes no curto derredor que aquele galpão abrange. A garagem fecha tudo.
- Eu tinha medo da rosa. Medo do medo. Medo de não sentir mais medo, porque tudo iria se acabar. Porque o primeiro que iria seria eu, pobre, amargo, insosso, sem poder fazer nada. Eu tinha medo e relutava em fazer o que me pediam, em ir apenas, atravessar a rua. Mas quando vi a rosa de perto, quando toquei tua petalagem, quando adormeci meus olhos sôfregos de tanto imaginar mortes na suave casa daquela rosa, eu tive a impressão que tudo, dentro do meu maior susto, iria incapacitar meu falecimento. Eu tinha medo da rosa, mas isso era antes. Agora tenho medo de mim. Este que nasceu. Este outro.
Só delírio e os restos mortais de uma paz. O verde ainda havia, mas era um verde frio, cabisbaixo. A relva amassada por um suplício de deus. O negro da sombra chegando, como a tornar vazio toda a constelação etérea. Várias foram as histórias contadas por todo um conjunto etnográfico baseada em lendas e circunstâncias. Rostos patéticos, corpos destronados, árvores partidas, idas sem volta, desretornos. E nenhum homem.
Se olhássemos para o lado direito do céu, perceberíamos uma tempestade adentrando o espaço em azul. Ouviríamos pios agourentos das aves de rapina, toda a fauna se escondendo, os vegetais se cobrindo em espera, cerceados. Se olhássemos, enxergaríamos uma torrente satânica arregaçando o ventre da terra, vadiando com as presenças das coisas, das cores. Havia um sentimento de subalternidade pairando, airosa.
Perto demais para qualquer tentativa. Se houvesse alguém, este alguém teria de enfrentar. Este alguém olharia para seu flanco esquerdo e fundiria aversão e incerteza ao ouvir um ronco rouco de um motor e um tufo poeirento de fumaça perfumando a garagem perdida. Alguém? Quem teria acordado o mal de seu sono letárgico? Quem, das profundezas, resolveria vir e apagar de uma vez por todas toda a sanidade da mente? Para que alimentar o caos? Deus, potestade inalcançável em fúria e bem e mal, terias sido tu?
- Obra do demo! Vamos dançar nossa ciranda de pedra, baile instaurador das pragas! – gritou o homem que não existia. – O sol não é dádiva para todos, alma. O sol é uma invenção dos que traem o corpo!
Da garagem a besta acesa afana o silêncio. Está ligada em chamas, cuspindo no chão do céu a mácula árida. A besta está vomitando solenemente um grito soberbo. Vai devastar tudo, todo o corpo, todo o orgânico templo habitante do mundo. Vai engolir as vaidades, a poesia aplicada ao impreciso, fazer desgraça alterada. E o volume incendeia o galpão enquanto lá fora trovejada a terra não agüenta. Tudo o que vive instantaneamente desbota, como se fossem vertigens. Tudo aprende a morrer, a dar sinal de fraqueza. O fim é um relógio sem pilha.
A fera esbraveja, engatado na marcha de força, sussurra, brame, bufa. Salta ao campo e fere o pouco verde que resiste. Os pneumáticos sufocam as sementes. Espera o fim se afirmar de todo. Passeia pelo solo maltratado a procurar sobreviventes. A tempestade cessa. O firmamento não se aclara. A bruma escorrega com o vento e viaja para o distante. Está feito, o trabalho, a vitória é certa. Glórias, glórias. É tempo de a besta adormecer novamente, por muitos e muitos anos. A besta vai dormir o seu descanso merecido. Mas, espere!
- Não, não é possível! A flor que surfa permaneceu. Está intacta, como se nada tivesse acontecido ali. A flor amarela dos que bóiam sobre as ondas, marinheiros solitários. A flor que surfa permanece!
Reviravolteia-se, a fera indomada. Irada, colérica. Teu nome é sanha. Ruboreja-se enquanto instala-se frente à flor. Vai esmagá-la, não perderá tempo. É a última cor. Aviltante cor teimosa. Vai ser agora... a besta arranca na direção daquela que quebra a ordem. Um som fumacento tapa a ilusão dos olhos. Nada, por enquanto, pode ser visto. Teremos certamente de esperar um pouco. Talvez o desfecho.
Mas, espere!
- Pai Nosso, não é possível! A flor que surfa permanece.
Um comentário:
Um texto inteligente e, acima de tudo, carregado de poesia. Maravilhoso!
Postar um comentário