quarta-feira, 9 de março de 2011

Anúncios de primavera


Por Germano Xavier

Uma homenagem a todas as mulheres do mundo.


“Mulher bonita, mais que bonita: impressionante. Talvez nem fosse bonita, mas bastava olhá-la para nunca esquecê-la”. Certamente o Heitor me perdoaria por fazerem minhas estas palavras. Em certos casos ou ocasiões, o perdão é a melhor resposta. Sim, tenho certeza que o Heitor me perdoaria. A verdade sempre há de ser absolvida. Mas, o que é mesmo “Verdade”? E o que é mesmo o indulto, perante as diversas faces da Simbologia? Ah, como me perco...

Sei, mas duvido... Esta marca em teu rosto, a fazer-te madura espécie. Eu sei, mas duvido que esta marca que fere as campinas de tua infância lhe fora incrustada pela fumaça de teu cigarro. Não houvera incêndio. Não houvera cigarro na boca e a faísca que tocaria o carpete vermelho; outras seriam as chamas, outras seriam as conflagrações. Sei que não as cirurgias; não era hora de reparar disfarces. Realmente, as combustões oriundas daquele semblante rasteiramente ferido a tornavam uma mulher verdadeiramente bonita.

Aí surgiria o Heitor, de cara fechada, dizendo: “Complete a frase, pobre escritor!”... Sei, mas duvido... E quem sou eu para desrespeitá-lo. Logo eu escreveria: “Mais que bonita: impressionante”. É esse o ofício de um pobre escritor e homem, copiar os verbos dos outros. Todavia, para não ficar tão desfalcado de originalidade, escreveria, talvez: “Mais que bonita: deslumbrante”. Ou, quem sabe, “inebriante”. Ou, melhor assim, “apaixonante”. Não haveria dúvida, mas o que eram aquelas dúvidas em mim? Eu haveria de saber, mas se soubesse não haveria dúvida em mim... e não havendo dúvidas, perceptivelmente, eu de nada saberia. Talvez nem... o que seriam “Dúvidas”?

O que seria das “Lembranças do grande peixe fosforescente”, se não fosse a fome por palavras que alguns animais desenvolvem? O que seria dos correios das manhãs, se não fossem esses esfomeados? Nestas horas não me sinto tão dispensável assim. E como é bom sentir-se vivo, mesmo que viver, ultimamente, não seja tão prazeroso. Existiria vida sem as palavras? Para mim, certamente que não. Ah, como me perco...

Não foi assim que quereria minha primeira página. Fosse menos metamorfoseada em nuvens, e eu seria mais entendido. Fosse menos tumulto, e eu seria menos incerteza. Fosse menos poesia, e eu seria mais prosa. No entanto, já foi. Outros diriam “já é”. A comunicação, dessa maneira, também seria feita. Prefiro o meu “já foi”, pois assim lembro-me mais da palavra “Passado”. E é para isso que existem as marcas: para nos elevarmos a um novo estágio de vida, fazendo-nos esquecer de termos de outrora.

O rosto projetado para frente, um tipo européia, com seus cabelos esvoaçantes, longos, loiros, acastanhados, ruivos, pupilas palradoras que olham o mundo sem nunca deixar de ser singular – sua pátria era ela mesma (assim ela diria). Sei, mas duvido... Duvido que eu, com meus vinte e um anos de insignificantes palanfrórios, seria a criatura mais aconselhável para descrevê-la. Porém, quando penso que já me enveredei por inúmeras cavernas, encho-me de coragem para desbravar um pouco de todo esse mistério escondido sob aquela suavidade. Eu deveria ser um tipo descobridor dos sete mares, dos sete sóis, das sete luas.

Não recordo de quando a conheci. Talvez não tivesse eu olhado para o lado, visto meu complicado universo interno. Lembro das portas se abrindo, o seu passar pela sala de aula, seu caminhar tornado em cigarras cantantes, seus perfis a estibordo e a bombordo; toda a magnitude de um gigantesco cachalote branco em tão fina e delicada carne.

Mais tarde conversaríamos sobre arte, leitura, amores, amor, um pouco sobre política... pouco tempo depois tornaria minha mais sedosa pétala, pétala rosa branca. Saberia que podia avistar o longe vôo se estivesse do meu poema. Mas como afugentar tua presença? Aquele longo olhar instinto e cria... Qualquer um se perderia em tão imenso oceano. Seria ela a sereia de Ulisses?

Por sinal, o que são as estrelas? Ela teria sua luz própria e, com ela tão luzidia, tocaria assim minha alma, fazendo surgir a chuva em mim, os vendavais, os dias do meu mundo; fomentaria por suas singelas mãos de cristal a essência da vida. E essa mesma vida far-me-ia acostumar com toda a sua docilidade e delicadeza.

Como sempre acontece comigo, tinha o título, mas não tinha a história. Ela teria a história de que tanto precisava, ou melhor, ela seria a própria história. Quão grande presente recebi ao te conhecer! Quão iluminado presente!

Sua arte, sua beleza, só vinham quando mergulhava nua em si mesma. Branca, enorme peixe fosforescente, iluminava com surpreendentes centelhas o mundo submerso no qual vivia. Bem se quis trigueira, se alva ou se feminina. Onde as velas? O amor? O amor na proximidade distante e cega de um amor-amigo conquistado.

Algum sapo assim coaxaria, vendo o melhor do Mar de sua lagoa. Tão vasto mar, Marazul Mulher. Pode-se medir a vastidão percorrida pelas asas de uma falena azul? Ser alado que atua em tua esfinge, quando o olhar se esconde da alvorada mágica do poço.

O que seria das tardes, sem tuas tardes? O que diriam as manhãs, imaginando a possível e discreta anunciação? O que seria dos juazeiros, sem a clara rosa das petrolinas? O que das minhas indagações? O que?

Tudo seria coto, roto, morto...

A vida assim lhe quis.

A vida assim lhe fez.

Tantas cenas desconexas, perdidas no tempo que teimava em passar, bem devagar, como quem espreita as ânsias no afã inconbatível de se tornar delírio. Um delírio. Devia ser este o único sentimento que se pudesse cultivar após passar alguns instantes ao lado dela. A mulher e o seu vôo. E o vôo dos homens.

Diferente. Teus cantos pontiagudos num rosto de marzipã, capaz de espantar qualquer tristeza, qualquer desânimo aflorado em outros rostos. Seria impossível se ater ao silêncio da solidão ao se estar de encontro com a totalidade de expressão que a acobertava de certos defeitos. Devia haver defeitos em tão perfeita maquinaria. Difícil era percebê-los. Agora, voava alto, cada vez mais, e mais alto... e se distanciava, como quem foge de um pesadelo. Sei, mas duvido que ela saiba. Quanto mais longe e último o seu planar, mais viril o meu rebento inspirador.

Quais os seus mistérios mais escusos? O segredo de sua origem se contrastava com a liberdade que os seus cabelos premeditavam, no balanço de sua dança, ao sabor dos banquetes mais naturais. Seriam os mais respeitosos anúncios de primavera, numa revoada de sentimentalismo eufórico sob a tez macia e imaculada daquela mulher bonita, mais que bonita: “cativante”.

Estaria eu mentindo, na vontade resoluta de se querer pronunciar as frases que jamais foram ditas? Quem possui a patente de uma boa e sadia amizade? Por que não poderia dirigir-me a tão reluzente ser, como quem busca a fonte da vida, com a finalidade solitária de alcançar as mãos da felicidade? E o que seriam das mentiras, posto que verdade não há? Por um átimo, imaginei que as palavras e todos os outros símbolos escondessem em suas entranhas toda a vivacidade e vicissitude de uma mentira. Talvez, se procurássemos bem, acabaríamos encontrando, não a explicação (duvidosa) da vida, mas a poesia (inexplicável) da Vida; isso já se ouvia falar nos logradouros das Minas Gerais. Fosse essa a nossa missão aqui no mundo, e a poesia seria tudo, menos um retrato falso de corisco humano.

Onde os esconderijos das clarices? Onde suas fórmulas? Onde seus lampejos e suas lamparinas incandescentes? O mar, certamente o mar te furtaria as espumas do teu ser, levaria para a maior das profundidades e lá, sob o olhar de Netuno, transformar-te-ia na mais bela das falenas azuis, que, como um projétil, arrebentaria a densidade das águas, tomaria o céu feito o sopro do vendaval mais insano e desapareceria em meio aos girassóis...


Este texto foi uma espécie de diálogo que fiz com a crônica "O grande peixe fosforescente", de Carlos Heitor Cony, publicada no jornal Folha de São Paulo. Escrito originalmente para Ayala Lopes, quando do seu aniversário em 27 de setembro de 2005. Todavia, dedico este texto a todas as mulheres do mundo... e dizer que o mundo seria caótico sem vocês... Feliz dia Internacional das Mulheres! Todo dia, certamente, é dia da mulher..

Um comentário:

Germano Viana Xavier disse...

Crédito da imagem:

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Deviantart