Por Germano Xavier
Eu sempre saía de casa após ter feito a refeição do meio-dia, ali pelas tardes amenas da minha Iraquara de lembranças, com a intenção de encontrar aquela família, meu quase irmão Lucas companheiro de muitas brincadeiras, meus parentes de coração, é certo... Porém, dentre aquelas pessoas, havia uma que se destacava das demais. Nos seus setenta anos de idade, ele ainda esbanjava um vigor de criança. Olhar perdido pelos caminhos da vida, jeito simples, a camisa quase sempre desabotoada, aqueles cabelos alvos de se viver anos, sério e brincalhão ao mesmo tempo. Tempo que ele tirava de letra, sempre driblando os obstáculos mais difíceis. Era quase diário aquele encontro, eu sozinho, depois meu irmão também, cada vez mais assíduos os dois juntos, porque éramos (somos) daquela família.
Coisa de trezentos metros, cinco ou seis postes atravessados, a esquina da antiga amendoeira da casa de seu Haroldo sendo dobrada, e logo estávamos diante do portão. Não raras as vezes, encontrávamos todos juntos na garagem. O Lucas, a Maria, a Deuzir, o Vado, o Neto e ele, o Cícero. Cícero, o contador de histórias.
Sempre sereno, Cícero era uma pessoa a ser ouvida, com os olhos analíticos da alma. Facilmente ficávamos uma manhã inteira, uma tarde inteira ou uma noite inteira ouvindo os seus causos. Nunca me esqueço de uma noite, sentado no banquinho em plena Avenida Sílvio Almeida, ali bem perto do velho posto de gasolina, quando Cícero começou a nos contar histórias de quando ele vestia as ordens da polícia.
Histórias que mesclavam drama e comédia no mesmo ato, corridas contra bandidos e forasteiros nos campos e nas caatingas que recobrem a topografia iraquarense. Falava com uma modéstia sabida, sem exagerar muito, num gesticular esvaziado de detalhamento - talvez fizesse isso para não entregar a graça da trama ao primeiro arroubo imaginativo, nos encantando numa intensidade assustadora -, vendendo sua imagem de bravura com a sutil inteligência desses matutos interioranos que aprendem os segredos de viver sem precisar dos manuais e das cartilhas vendidas em livrarias e academias dos centros. Falava de tudo, sem nunca misturar nada. Foram muitas risadas e suspenses elevados para as horas últimas da noite e, por vezes, até as iniciais da madrugada, sempre alimentando nossas almas, naqueles dias frientos da cidadezinha.
Foi uma historieta que muito me marcou a de quando Cícero, em tom de seriedade, revelou-nos os costumeiros métodos e as táticas que o serviço policial, tanto de Iraquara quando da cidade vizinha Seabra-BA, utilizavam para fazer com que os suspeitos revelassem ainda mais detalhes sobre os crimes praticados. Uma verdadeira tortura era feita, e a gente também sofria escutando tudo aquilo. Choques, agulhas enfiadas calmamente por debaixo das unhas, sovas, provocações de vários estilos entravam para a lista de maldades.
Mas o tempo foi passando, a vida nos carregando para outros lugares, impedindo-nos de dividir mais tempo e aprender coisas para a vida com o grande Cícero. O tempo de cada um, agora crianças já adultas, levadas pelo vento das responsabilidades modernas...
E eis que numa manhã o sol, que era claro e de sorriso úmido, emudeceu. Foi quando recebi um telefonema de minha mãe dizendo que ele, o nosso maior contador de histórias, havia nos deixado para sempre. Eu, mergulhado em provas para corrigir, naquela sala, naquela escola, tão protegido de qualquer infâmia, tão longe daquela morte, confesso que não acreditei.
Como pode uma pessoa que sempre esteve e sempre estará em nossos corações, ir assim para sempre? Tomado por um câncer, Cícero ainda lutaria com todas as forças por sua permanência física entre nós. Tentou, lutou, conseguiu... Mas ele fora chamado, definitivamente, por alguém muito mais importante e, assim, teve de fazer sua última viagem, a viagem que todos nós faremos um dia, com pressa ou sem, para novas descobertas.
Cícero, que jamais morrerá dentro daqueles que tiveram a honra e a sorte de dividir a sabedoria do homem, do cidadão iraquarense, retrato de uma velhice feita de imensidões e sofrimentos, resolveu partir. Tomou banho, penteou os cabelos, como de praxe deixou a camisa entreaberta, permitindo ao vento arrefecer seus pulmões castigados pelo cigarro assassino. Pegou sua bicicleta, a mesma que usava para buscar o leite do dia no roçado do tempo, e saiu pedalando calmamente em sua simplicidade magnífica, pedalando, sobrelevado pelas nuvens brancas do céu...
Pedalando as horas que não o tinham mais, deixando para trás um poço de recordações inesquecíveis, um passado-presente interminável, repleto de saudades...
Uma homenagem a você, Cícero, homem que, com suas palavras e seus gestos humildes, muito me ensinou. Continue a pedalar sua bicicleta mágica, nos horizontes dos mundos invisíveis...
3 comentários:
Crédito da imagem:
"O Velho
by ~marinaaniram"
Deviantart
Bonita homenagem, meu amigo, muito bonita.
Estou de visita ao blogue, depois de por aqui ter passado com pouco tempo. No entanto apercebi-me logo da primeira vez de uma escrita muito boa, natural, e talentosa, parabéns.
Neste post em particular, revejo-me um pouco, o meu Cícero chamava-se Jõao, era sapateiro e eu em miúdo passava tardes a ouvir as suas muitas aventuras.
Grande abraço, serás bem vindo se quiseres passar no meu cantinho, ... até!
Lindo isso ameii...Parabéns
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